#01 Cena e Censura | Hipóteses artísticas como mirantes – Censura, colonialismo e ambivalências
Imagem – Bruna Valença | Arte – Rodrigo Sarmento
Por Roberta Ramos
Professora Doutora do Curso de Dança (UFPE) e Programa de Pós-graduação em Artes Visuais (UFPE/UFPB)
Este texto foi inicialmente motivado pelo episódio recente reportado pelo primeiro texto deste dossiê: o nu censurado pela gestão municipal de Recife, na cena inicial do espetáculo de dança Zoe, na ocasião de sua temporada de estreia, em junho de 2017. Entretanto, proponho aqui hipóteses para pensar sobre aspectos mais abrangentes do nosso país, da nossa história e as reflexões que a arte nos oferece a respeito.
Outra motivação, então, coloca-se em primeiro plano: um diálogo com as conexões, feitas por Bruno Siqueira (autor do referido texto AQUI), entre os legados do colonialismo e modos brasileiros de recepção de arte. E, para tanto, voltar-me-ei (para usar uma construção verbal cara ao presidente ilegítimo e empolada como os mares que nos permitiram ser “descobertos”) às relações entre a censura e as ambivalências peculiares ao colonialismo protagonizado pela metrópole lusitana e cujo legado se reflete, portanto, nos piores desdobramentos da colonialidade brasileira.
A história da censura no país remonta ao período colonial (antes, durante e um pouco depois da prática da inquisição na Europa), durante o qual os jesuítas assumiram a missão de cuidar de boa parte dessa violência epistêmica dos indígenas do Brasil, através da associação de seus hábitos e ritos a ações demoníacas (por meio das representações feitas destes hábitos, por exemplo, nos autos teatrais), para sua posterior proibição, bem como do investimento (através da interdição) na erradicação dos idiomas indígenas. Tal violência estendeu-se, certamente, aos escravos provenientes da África, que também encontravam bastante dificuldade para darem continuidade às suas práticas culturais anteriores à sua colonização e escravização.
As descobertas imperiais, conforme Boaventura de Sousa Santos, em seu texto O Fim das Descobertas Imperiais, caracterizaram-se por duas dimensões, uma empírica (o ato de descobrir) e outra, conceitual, que precede o ato da descoberta propriamente dito (a ideia que se projeta do que vai ser “descoberto”). A dimensão conceitual (cuja especificidade é a projeção do outro como inferior) é o que comanda o ato da descoberta, bem como seus desdobramentos, que, conforme o autor, consistem nas inúmeras estratégias para aprofundar a noção de inferioridade, através da violência física e epistêmica desse outro “inferior”. Boaventura identifica o Ocidente como o principal dos descobridores, e o “Outro” descoberto pelo Ocidente encarnou-se, sobretudo, nessas três formas: o Oriente, o selvagem e a natureza.
Com cada um desses “outros”, a dimensão conceitual da descoberta estabeleceu relações específicas: alteridade, para o Oriente (pois se trata, para as representações ocidentais estereotípicas, de um outro de fato – exótico e ameaçador); Inferioridade, para o selvagem (pois este, para o descobridor, nem sequer constitui um outro, pois não é visto como “plenamente humano”); e exterioridade, para a natureza (pois o descobridor ocidental nesta não se implica, tratando-a infinitamente como recurso a ser explorado, até a sua escassez ou aniquilação).
Todas estas noções, somadas às especificidades que este mesmo autor confere ao colonialismo do qual o Brasil foi partícipe, um colonialismo subalterno (que explicarei mais à frente), conforme o sociólogo português, nos oferecem pistas interessantes para discutir, inicialmente, as associações entre censura e colonialismo, mas também para compreender os duplos entre realidade atual e hipóteses que se estabelecem em dois espetáculos que abordarei nesta reflexão.
Refletirei sobre hipóteses-mirantes que se depreendem de duas produções recentes do contexto das artes cênicas recifenses: o já mencionado Zoe, dirigido por Francini Barros, e estreado em 15 de junho de 2017, no Teatro Apolo; e o mais novo espetáculo do grupo Magiluth, Dinamarca, cuja primeira temporada teve início em 2 de agosto, no Teatro Marco Camarotti. A princípio, haveria pouco ou nenhum ponto em comum às duas obras, para além do fato de fazerem parte da cena atual da cidade. Porém, veremos como ambas parecem estabelecer relação entre duas realidades: uma da qual se olha (o mirante, uma hipótese para pensar a realidade posta) e outra para a qual se olha (a “terra à vista”, a realidade posta), e, em ambos os casos, há entre esses polos “opostos” relações complexas que sugerem sua indissociabilidade e a associação disso com os processos coloniais, e em especial tais como vividos aqui no Brasil.
O primeiro parte de uma pesquisa que englobou o estudo do livro Homo Sacer, do filósofo italiano Giorgio Agamben, abordando duas representações gregas para a vida: Zoe (a vida natural, norteada pelas normas da natureza e dos instintos) e Bios (um estágio mais elaborado, correspondente à vida política, possibilitada pela linguagem). A partir disso, o espetáculo estabelece uma dramaturgia pautada numa suspensão temporária de uma vida predominantemente regida pela noção de Bios, através de imagens, ações e relações, criadas em cena pelos dançarinos, que nos remetem às possibilidades de uma vida um pouco mais regida por Zoe. Já o segundo, Dinamarca, através de uma retomada performativa do clássico Hamlet, de William Shakespeare, cria uma analogia entre o “golpe” do qual foi vítima o rei da Dinarmaca (pai de Hamlet), cuja vida e o poder foram tomados pelo seu irmão, e o golpe de estado do qual o Brasil foi vítima recentemente e que culminou com a retirada de Dilma Rousseff, eleita democraticamente, do poder da Presidência do país.
Em Dinamarca, como pode ser conferido na crítica A Dinamarca (não) é Aqui, igualmente de Bruno Siqueira, expõem-se os aspectos motivadores dos tempos sombrios que vivemos no Brasil e em boa parte do mundo: “a ganância, as disputas pelo poder, a traição, as hipocrisias”. Não seriam todos esses danos resultantes de uma sociedade, tal como regida por Bios, que, historicamente, vem se construindo de modo a aniquilar-se, conforme a crítica de Agamben, retomada pelo trabalho Zoe?
O que há de mais instigante nos meios do grupo Magiluth abordar esse contexto em vias de auto-aniquilamento é o fato de que a construção discursiva dá-se através de um deslocamento irônico para a Dinamarca, como se a partir dela (como um mirante) olhássemos para nós mesmos, mas sem mencionar explicitamente que a terra degradada à vista é o Brasil. Irônico, pois a Dinamarca definitivamente, não é aqui. Ainda que uma matéria de 2013 da Folha de São Paulo (veja aqui) aponte a necessidade de ajustes aos benefícios sociais em decorrência da crise mundial, a Dinamarca ainda é considerada como “o lugar mais feliz do mundo”, com seus índices baixíssimos de desigualdade social e corrupção, em um Estado de bem-estar social. A lente da “Dinamarca” magiluthiana é sarcástica ao “impressionar-se” (com sustos irônicos, uma vez que, na verdade, os performers, como de resto ninguém mais, já não se surpreendem com nada disso) com o que ainda é uma realidade em países como o nosso (e agora, certamente, por muito tempo será): a miséria, a pobreza, a injustiça, entre outras mazelas, bem como o individualismo e a corrupção na política, que aprofundam, a cada dia, tal quadro.
O Brasil que se pinta através de um paradoxo (a menção a essa realidade é sutil, e não, ao mesmo tempo) parece fruto de sermos resultado de um colonialismo subalterno, conforme ainda Boaventura de Sousa Santos. Trata-se de um colonialismo (o português), que se fundou na ambivalência de ser, a um só tempo, colonizador (na América, na África e na Ásia) e colonizado (pela Inglaterra). Boaventura, coincidentemente com o fato de que tratamos aqui de uma recriação livre de um Shakespeare, usa dois personagens em posições opostas da peça A Tempestade (também de Shakespeare) – Próspero (como referência ao colonizador e àquele que tende a obter sucesso) e Caliban (um anagrama de Canibal, para representar o colonizado visto como selvagem pelo “descobridor”, pelos seus ritos antropofágicos). A partir disso, Boaventura identifica que Portugal, em seus processos coloniais, assume, ao mesmo tempo, o papel de Próspero (para as suas colônias) e Caliban (para o seu colonizador, mas também aos olhos da Europa nórdica).
Nos “jogos de espelho” do processo colonial e do eurocentrismo, Portugal aparece, para a Europa, como um Caliban, igualmente aparentado com o selvagem, primitivo, atrasado; para as suas colônias, aparece como um Próspero calibanizado (uma vez que sua condição de Caliban para a Europa impregna sua construção identitária); e, portanto, constitui-se em uma alternância entre os momentos em que se sobrepõe sua condição de Próspero, e outros, em que se sobrepõe sua dimensão calibanizada. Quanto aos reflexos dessa ambivalência em suas colônias, em especial o Brasil, Boaventura levanta a hipótese se esse Próspero “incompetente” (porque calibanizado) não seria uma “pesada herança, um constrangimento incontornável das possibilidades de desenvolvimento pós-colonial” (SANTOS, 2008, p. 275).
A ironia hipotética e apocalíptica (o que veríamos se fôssemos a Dinamarca olhando para nós mesmos?) lançada pelo Magiluth, através de uma festa (uma alusão ao banquete de Temer?) que comemora/lamenta a morte do pai (com ações ritualizadas de quebrar e remontar tudo, como se talvez precisássemos “manter isso”, eco retomado em Dinamarca a partir de uma fala corrupta flagrada em nosso país), parece (re)afirmar essa “pesada herança” na degradação em que nos vemos implicados. “Há algo de podre nesse bolo, há algo de podre nesse bolo, há algo de podre nesse bolo”, repete-se ao final, fazendo ecoar a frase original do drama shakespeariano, “Há algo de podre no reino da Dinamarca”. A pretexto de um falso “desenvolvimento” e “saída da crise”, aprovamos “projetos de lei que fazem concessão ao mercado global” (texto de Bruno Siqueira sobre Dinamarca), negamos, vendemos e destruímos o que temos, e, com tudo isso, nos constituímos como a pior versão do que pode ser o capitalismo.
Reafirmamos, portanto, as mazelas peculiares que Boaventura enxerga como parte de nosso colonialismo subalterno: excesso de colonização e déficit de capitalismo (ao menos de suas aplicações mais bem sucedidas, talvez por serem mistas, como no caso da Dinamarca).
Por outro lado, em Zoe, vemos lançar-se uma hipótese utópica através da qual podemos imaginar – através das imagens, dinâmicas e jogos corporais estabelecidos pelos dançarinos -, uma versão da vida menos guiada pelo princípio Bios, que os gregos, sobretudo Platão e Aristóteles, consideram como um estágio mais elaborado do que os instintos animais. A diretora, Francini Barros, explica que o exercício e o esforço também racionais dos quais uma obra é fruto nos certificam de que somos Bios, mas, ao mesmo tempo, Zoe é o título escolhido para esta obra, como que a suspender, através dessa hipótese utópica (e se nossa vida fosse fruto de outras escolhas, mais afetivas?), uma realidade em que o instinto e as conexões com a natureza são negados.
Não seria essa negação a mesma que resulta nas noções de inferioridade e exterioridade com as quais os “descobridores imperiais” enxergam os nativos de suas colônias como “selvagens” e a natureza como algo que lhe é exterior, como recursos a serem explorados até sua escassez, ou, mesmo, aniquilação? Em Zoe, podemos enxergar a dicotomia entre princípios de vida menos ou mais racionais, que acabam por resultar em visões etnocêntricas, através do contraste entre os fluxos livres de vida (quando Zoe se sobrepõe) e a condição estática dessa vida pelo instinto que é abafado, escondido por trás de uma relação sempre representacional com a natureza (que se materializa na árvore em videomapping que faz parte do cenário).
Assim é que enxergamos os pontos de encontro entre Dinamarca e Zoe: ambos lançam hipóteses-mirantes. Através da hipótese do primeiro, que nomeei aqui como uma ironia hipotética e apocalíptica, somos impelidos a olhar com a lente do melhor do que poderíamos ser (talvez o lugar mais utópico a resultar do princípio Bios?) para o pior que realmente somos. E, por outro lado, pelo mirante da hipótese utópica de Zoe, somos convidados a imaginar que, se não fôssemos frutos da colonização dos instintos animais e da natureza, talvez construíssemos modos mais felizes de viver. No final das contas, parece, tragicamente, estarmos fundados no pior que a racionalidade foi capaz de inventar (a exploração, os individualismos, concepções predatórias de vida) e fadados ao pior da “selvageria” que nossos colonizadores usaram como estereótipo daquilo que deles mesmos aceitaram tentar suprimir, seus instintos e sua implicação na natureza. Afinal, onde se localiza, de fato, a condição “selvagem”? Nos animais, na natureza, e no instinto que lhes é inerente? Ou nos homens que vêem o poder como algo intransitivo, um fim em si mesmo, almejado por uma humanidade que não enxerga nos seus gestos o seu próprio fim?
Por fim, ainda há de se perguntar pela censura em toda essa discussão. Em Zoe, o episódio originalmente motivador deste texto, que exigiu a supressão do nu artístico da cena inicial, parece atualizar um sintoma do quanto negamos, antes, durante e depois dos processos coloniais, a vida Zoe, nua, natural. A censura (que foi real) em pleno século XXI nos machuca, por um lado, em heranças muito profundas das violências epistêmicas que fundaram nosso país (entre as quais a imposição do vestir-se). Por outro lado, se Dinamarca não sofreu (ao menos até o momento) nenhuma interdição, é inevitável refletir que a sua forma alegórica de abordar nossa aniquilação (sem em nenhum momento pronunciar a palavra Brasil) nos remete às metáforas das quais vários artistas brasileiros já tiveram que lançar mão em momentos duros e de alta censura como o da Ditadura Militar.
Assim como Hamlet refaz o drama da morte de seu pai em uma teatralização desse acontecimento para atingir seu culpado, seu tio Claudius, vemos a recriação dramática de nossa degradação política e social, através das chaves metafóricas de Dinamarca, como se de nós não estivéssemos falando. Como se, em tempos em que nosso “progresso” deságua em retomadas de modos sombrios e fascistas de organizar a vida, já precisássemos entender que só nos resta operar na metáfora, nos cuidados com as interdições e novas violências – físicas e epistêmicas. E, no fim, resta ainda uma ironia. A censura, como fruto indigesto de uma vida “racional”, política, “civilizada”, parece revelar sua própria estupidez: interdita, por exemplo, a superfície da nudez, sem compreender a complexidade do que a arte de fato desnuda.
Para quem quiser conferir:
SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. Vol. 4. 2.ed. São Paulo: Cortez, 2008.