#01 Cena e Censura | O que o nu revela?
Imagem – Renata Pires | Arte – Rodrigo Sarmento
Por Liana Gesteira
Artista e Pesquisadora (Coletivo Lugar Comum e Acervo RecorDança) e Mestranda pelo PPGDança (UFBA)
Essa escrita se inicia instigada pela questão importantíssima colocada por Roberta Ramos no final do seu texto, no dossiê Cena e Censura, do Quarta Parede: “compreender a complexidade do que a arte de fato desnuda”. Diante dos acontecimentos de censura de algumas obras brasileiras por conta da presença do nu, como relatam os textos de Bruno Siqueira e Matilde Wrubleski desse dossiê, desejei trazer um desdobramento da discussão para dentro da cena, para o fazer do artista, que antecede o contato com o público, mas que, desde já, cria sua teia de relações com o contexto e a sociedade.
Ao ver um corpo nu em cena, sempre me pergunto o que, de fato, ele revela e o que ele ainda consegue esconder. E como artista, essas questões ficam ainda mais latentes na hora de decidir se a nudez é um elemento interessante para construção dramatúrgica das obras que crio. Em minha trajetória, já atuei nua em quatro diferentes trabalhos, com pesquisas e poéticas distintas: no espetáculo Dark Room (2011), da Cia Etc; no espetáculo Segunda Pele (2012 e 2016); no solo Topografias do feminino – versão Morro da Sereia (2016); e na apresentação da pesquisa Cicatriz do Esquecimento (2017), esses três últimos como integrante do Coletivo Lugar Comum. E a experiência desses processos me levam a desejar trazer para esse texto a complexidade das questões envolvidas na hora da decisão de se estar nua em um trabalho artístico.
Para compor essa reflexão, convoquei alguns artistas para relatarem também seus processos com o desnudar do corpo para a cena. E, assim, criar um diálogo de experiências e pensamentos que compõem esse fazer invisível, que é criar, e que se materializa no encontro com o público, propondo, então, colocar em tensão o aspecto invisível e o visível da arte.
Desnudando o fazer do artista
Quando participei da criação do espetáculo Segunda Pele, eu já tinha estado nua em cena com o trabalho Dark Room. Não existia um receio pessoal de me expor, afinal já tinha passado por esse processo anteriormente. Mas sempre que o desejo de me colocar nua aparece em uma criação ele sempre vem junto com uma dúvida, com o questionamento de se essa nudez é necessária e interessante para construção dramatúrgica do trabalho. Afinal, ela pode se desdobrar em muitos entendimentos diferentes do que imaginamos.
Segunda Pele discutia a questão da vestimenta, da roupa como nossa segunda pele no mundo. E em nossas pesquisas sobre o tema, três fatores eram recorrentes como justificativas históricas, geográficas e sociais para o ato de vestir: necessidade de proteção; uma relação da roupa como adorno e o vestir-se como maneira de lidar com o pudor. E foi esse último ponto que me deixava intrigada.
O livro O animal que logo sou, de Derrida (2002), se desenvolve a partir do relato de seu encontro, saindo nu do banheiro, com o gato que habitava sua casa. E veio a pergunta: “Quem está nu? Eu ou gato?”. Para o autor, o animal está nu sem saber de sua nudez, pois somos nós que inventamos a nudez a partir do momento em que nos vestimos. E, junto com isso, criamos o sentido de vergonha, de pudor.
Como Roberta Ramos traz em seu texto, essa discussão está diretamente relacionada com a atitude do homem de ver a natureza como algo exterior, como se não pertencesse a ela. Mesmo lidando cotidianamente com nossos corpos nus, a ideia de “civilização” por nós assumida nos faz encarar a nudez apenas em nossos momentos de privacidade, como se fosse algo que não nos pertencesse. Nascemos e morremos nus. E decidimos nos vestir por inúmeros motivos. Não se vestir, portanto, também pode ser uma decisão guiada por várias outras justificativas, assim como vivem alguns indígenas.
Diante desses questionamentos existenciais e filosóficos, e também dos laboratórios práticos guiados por Sílvia Góes ao longo da criação de Segunda Pele, o nu foi se fazendo presente e confortável. E levar ele para cena foi um desejo de olhar para o público e perguntar: “Quem está nu? Eu ou você?”. E o pudor se revela.
Para Rancière (2009) “as práticas artísticas são ‘maneiras de fazer’ que intervêm na distribuição geral das maneiras de fazer e nas suas relações com maneiras de ser e formas de visibilidade”. Pensando por essa perspectiva, entendemos que, quando o artista está em processo de criação de uma obra, ele faz escolhas conscientes de que está dando visibilidade a modos de pensar e existir no mundo. Ele coloca a arte como um espaço para se propor outras possibilidades do real.
Silvia Góes, em seu relato sobre o processo de criação e de transformação do solo OSSevaO, revela que foi se despindo ao longo dos anos de apresentação do seu trabalho e a partir do contato com diferentes públicos e realidades. Ela traz essa contradição vivida pelo artista, de saber que, ao se encontrar com o espectador, vai ter que sustentar, por vezes, um choque de mundos, ou uma comunhão deles, além de todas as gradações que existem no entremeio desse encontro de mundos. E fazer uma escolha cênica pode ser um trabalho infinito, a ser repensado a cada vez que nos colocamos em cena.
Mas nossas escolhas são guiadas por desejos conscientes de dar visibilidade a discussões que atravessam nossos contextos. No caso de OSSevaO, as opressões decorrentes de algumas práticas religiosas e as desigualdades de gênero vivenciadas por muitas mulheres ao longo da história se faz presente pela nudez de Silvia:
OSSevaO é o espelhamento de OaveSSO, dentro da palavra, nesse jogo de minúsculas e maiúsculas, Eva e Osso… Eva, a primeira mulher, ela, que por sua nudez e liberdade em morder o prazer de estar, vem sendo apedrejada há tantas gerações cristãs… Ser mulher e despir-se porque simplesmente assim é, pelo direito de ser mulher e despir-se… Quanta coisa entranhada! (leia versão completa do relato AQUI)
Para José W. Junior, o medo do clichê permeava seus pensamentos na decisão de usar o nu no espetáculo Dark Room. Mas o desejo de trazer outras possibilidades de corpo e de sexualidade, para além das normatizadas em seu contexto, foi o que construiu a sua nudez:
Em Dark Room, está lá o macho, a bichinha, o viadinho, o travesti, a maricona, o pai, o marido, o filho…Lá está o lugar da liberdade de colocar pra fora todas essas máscaras que sou e as que colocaram em mim mesmo sem eu querer. Lá está o lugar de ficar nu em cena. (leia versão completa do relato AQUI)
Na criação do espetáculo Loucas do Riacho, realização da Gameleira Artes Integradas, de Salvador (BA), a decisão pela nudez só se concretizou três dias antes da estreia, que aconteceu dia 8 de março de 2017. Loucas do riacho é um trabalho que tem o feminino como espaço de discussão sensível e existencial. E mesmo com os figurinos prontos, as artistas optaram por assumir o nu em cena, possibilitando a experiência do corpo e seu limiar, como conta Olga Lamas:
Pensando hoje sobre a nudez, creio que a roupa – para mim – agia como um item de opressão em meio àquele espaço cênico em que eu buscava agir artisticamente com força, coragem, na minha máxima potência. Para mim, era essencial criar uma dissolução entre meu corpo, os outros corpos, o espaço, o tempo… diluir essas barreiras um pouco que fosse. A roupa, nesse sentido de opressão, era um símbolo de catequização, colonização, capitalismo e patriarcado… E nossa busca em cena, a minha busca em cena, era atravessar, furar, transformar, transmutar isso tudo. (leia versão completa do relato AQUI)
A rede invisível e visível
A partir dos relatos trazidos aqui nesse texto, podemos perceber uma trama complexa de camadas de sentido que o artista tece na hora de fazer escolhas cênicas. Por trás de cada corpo nu, existe uma série de questões que os artistas desejam visibilizar.
E não é que o espectador não saiba ler a nudez proposta pelo artista, ou que alguns entendem mais do que outros, pois, assim, estaremos reproduzindo a lógica colonizadora também na relação artista e público, de que o olhar de quem vê deve ser submisso à intenção de quem cria. Pois imagino um espectador também ativo, que, conjuntamente com o artista, cria o sentido da obra, no tempo e no espaço em que acontece.
O artista tem consciência de, ao levar esse corpo nu para cena, ele está propondo um diálogo com o espectador, com a alteridade. A intenção do artista não impera diante da leitura que o público faz, pois, a obra de arte se materializa na relação entre quem está em cena e quem está na plateia. E nessa relação, visões de mundo se chocam e o fazer do artista emerge como um espaço de dissenso (RANCIÈRE, 1996). E é justamente esse o fazer do artista. De outra forma, a gente nunca colocaria a público o que diariamente investigamos em salas de ensaio.
O dissenso aqui não pode ser encarado apenas como um desejo de chocar o outro, mas também de partilhar outras sensibilidades, de transformar o que é percebido como fixo e imutável. Dar a ver modos de existir que estão invisíveis em nossa sociedade. Pois diariamente construímos hierarquias de existências no sistema político e econômico em que vivemos, que valorizam certos modos de viver em detrimento de outros. Não é à toa que esta semana nos deparamos com a notícia de que uma comunidade indígena inteira foi dizimada na Amazônia. E pergunto, o que faz seres “civilizados” matarem e esquartejarem uma comunidade inteira de velhos, mulheres, homens e crianças? Parece-me que alguns pensam que algumas vidas valem mais que outras. E questionar essa hierarquia de modos de existência é o que muitas vezes move o artista.
Imagino que precisamos assumir que existem visões de mundos divergentes de quem apresenta o nu como possibilidade estética e de quem apenas vê o nu como representação de uma moral, por exemplo. É esse choque de mundos sensíveis que se coloca em evidência numa situação de censura como no espetáculo Zoe ou na obra DNA de Dan. Nos dois casos, os passantes da rua que supostamente reclamaram a presença do nu em espaço público, só conseguem ver esse corpo por uma visão de mundo restrita ao seu contexto e valores. Mas como Bruno Siqueira bem apresentou em seu texto, se existe uma lei que regula o “atentado ao pudor”, também existe outra que defende a “livre circulação de ideias e o pluralismo das concepções políticas, ideológicas e artísticas”. E esse é nosso choque de mundos.
Essa escrita não se propõe a diluir os dissensos, nem levantar bandeiras. E sim, lançar reflexões. Cotidianamente, me questiono antes de me apresentar nua artisticamente, pois compreendo a complexidade e a potência desse ato. Mas nunca deixei de fazê-lo.
Talvez o que o corpo nu, de fato, desnude é tudo aquilo que nos veste: nossas ideias do que é corpo, nossas construções morais, nossos preconceitos de raças, nossas intolerâncias de gênero, nossas repressões sexuais, nossas identificações religiosas, nossas hierarquias de poder, nossas desigualdades econômicas, nossas heranças colonialistas… E assim nos coloca em frente ao espelho, diante do que não aceitamos enfrentar ainda nos dias de hoje: nosso conceito de civilização, que é falido, pois não nos garante uma convivência em comunidade que realmente sustente nossa existência de maneira plural e múltipla.
Referências
DERRIDA, Jacques. O animal que logo sou. Jacques Derrida; tradução Fabio Landa – São Paulo: Editora Unesp, 2002.
RANCIÈRE, Jacques. O dissenso. In: A crise da razão. Organizador: Adauto Novaes (Org.). São Paulo: Companhia das Letras,1996. Tradução de Paulo Neves.
_________, Jaques. A partilha do sensível: estética e política/ Jaques Rancière; tradução e Mônica Costa Netto – São Paulo: EXO experimental org; Editora 34, 2009 (2ª edição)