#02 Arte Para Tod_s? | Precisa ter imagem para ser dança?

Imagem – Filipe Marcena | Arte – Rodrigo Sarmento
Em 2017, a Cia Etc. estreou o espetáculo TANDAN!, voltado para crianças, um público ainda muito carente de espetáculos de dança. Criado pelas bailarinas Elis Costa e Renata Vieira e pelo bailarino Marcelo Sena, que também assina a direção e a trilha sonora original, o espetáculo toma a questão da acessibilidade do espetáculo às pessoas com deficiência visual como um estímulo criativo (e não somente a tradução do espetáculo).
Partindo de pesquisas que questionam os limites do pensamento sobre dança, como Audiodança: A Ventura do Corpo no Som que Dança, e de referências como Helio Oiticica e Lygia Clark, TANDAN! propõe a cada criança uma experiência de imersão com o uso do contato corporal direto com os bailarinos, jogando com uma apreciação sensorial mais ampla da obra (leia mais sobre o espetáculo AQUI).
Nessa entrevista com nosso editor-chefe, Márcio Andrade, o diretor da companhia, Marcelo Sena, desdobra as questões que envolveram a criação desse espetáculo.
A Cia Etc. parece investir suas pesquisas numa relação entre imagem e movimento (nos espetáculos, videodanças etc.). Como vocês se desdobram na audiodança e em TANDAN!?
Creio que, mais do que imagem e movimento, tem algo de perceber o corpo como sensação, enquanto potência de percepção (tanto do movimento como dos estados corporais). Algo que a gente sempre debateu muito no grupo era como provocar diferentes estados no corpo a partir de uma dramaturgia em cada construção artística. Nesse sentido, desde 2004, com a criação do espetáculo Silêncio, que a gente começou a entender que o corpo precisa ser atravessado pelo que a gente está querendo olhar e tratar. E não apenas que os elementos em volta do corpo retratem esse tema ou mote. Então, de certa forma, o corpo sempre esteve no foco.
Quando a gente vai, de fato, pensar no corpo, não tem somente o corpo sendo percebido pelo olho, numa relação visual. E a gente foi encontrando outras possibilidades de entender como esse corpo pode ser posto no espetáculo. No espetáculo, Silêncio (2004), que, para nós, marca um pouco desse outro entendimento de dramaturgia na dança, tem uma pessoa que fica parada o tempo inteiro. Então, assim como a partir dos usos que a gente fazia do silêncio, fazia a gente se relacionar de forma diferente com o som (como John Cage trazia na sua filosofia artística), outros elementos nos faziam entender a pausa como movimento.
Uma das coisas interessantes em John Cage era como as trocas dele com o parceiro/namorado dele, Merce Cunningham, ajudam a gente a pensar as relações possíveis entre dança e música, entre som e corpo. E eu, por ser músico, vi isso com muita curiosidade e também passei a investigar bastante para que a companhia pudesse enveredar por essas outras percepções de arte, corpo etc.. E assim a gente foi encontrando várias coisas: o vídeo chega por aí também. A ideia de uma imagem plana, uma dança que não precisa ser uma dança presencial, que vai para a tela. Até o corpo que está na tela não é o corpo que você vê presencialmente: é uma representação do corpo, uma imagem do corpo. Então, até certo ponto, tudo que está na tela é passível de dançar: não somente a representação do corpo humano. Inclusive, tem uma videodança (chamada Birds, de Yolande Snaith) que ganhou um prêmio em um festival anos atrás, que não tem corpo humano dançando, somente os pássaros se movendo.
A gente foi mesmo ampliando esses limites do que seria dança, do que seria o corpo humano em si como representação do local onde a dança acontece, e encontrando vários caminhos. Eu, por ser músico e compositor da maioria das trilhas sonoras da companhia, também trazia muito essa relação para a sala de dança e pensava na troca inversa: sentir o corpo no momento que estava sendo coreografado, trazer essa sensação para o momento de compor a trilha. Entender a sensação que eu tinha no momento de dançar e como a música poderia suscitar aquela ou outras sensações. Nesse momento, música e dança começaram a ter uma relação mais próxima pela minha prática, assim como a atravessar também as pessoas que trabalhavam comigo, porque esses vocabulários e entendimentos partem, de fato, de um pensamento mais amplo da arte da dança.

Espetáculo ‘TANDAN!’, da Cia Etc. | Imagem – Filipe Marcena | #4ParedeParaTod_s – Imagem borrada de três bailarinos com roupas pretas conduzindo uma criança por sentada em uma cadeiras de rodas em uma sala.
E assim fomos chegando na audiodança. Por trabalhar com videodança, a gente começou a testar os limites. Até quando algo é videodança? Precisa ter corpo humano? Precisa ter um movimento reconhecível como coreografia? O que é coreografia? E pensando nesses limites, chegamos na imagem. Precisa ter imagem para ser dança? Será que ela pode ser sentida por outras sensibilidades que não pelo olho? Nessas provocações, uma pessoa que colaborou muito nessa outra possibilidade de pensar a dança sem a visão foi Caio Lima, quando, na companhia, começamos a criar as trilhas juntos. Tivemos vários diálogos sobre isso e pensamos em formas criativas de uma dança que não fosse visual. Daí, surgiu um termo que a gente nunca chegou a registrar, mas também nunca encontramos ninguém citando esse nome, mas criamos esse termo: audiodança. Falamos isso quando começamos a ter essas conversas e colocamos no nome da pesquisa, pensando o que seria uma criação artística em dança que não precisasse estar sendo vista. A audiodança como uma possibilidade criativa pelo áudio.
Nessa pesquisa com audiodança, a gente pesquisou bastante coisa sobre som e encontramos alguns pensadores da música, como Murray Schafer, que foi o idealizador das paisagens sonoras. Era uma concepção dele de fazer um mapeamento sonoro do mundo, na década de 70. Ele viajou para diversos lugares para fazer esse mapeamento, construindo algo como um mapa mesmo, uma cartografia do que tinha de som naquela época. Mas isso extrapola um mapeamento geográfico e auditivo e passa para outros pensamentos sobre música, quando ela pode ser percebida até mesmo no que identificamos como ruído e, a partir disso, entender como a ideia de ruído foi se construindo historicamente: de como a gente entende ruído e como o ruído pode ser transformado em música. E, além disso, pensar na possibilidade de criar música não somente com instrumentos tradicionalmente dedicados à composição musical, mas também transformar outros elementos em instrumentos musicais. E uma delas é o próprio corpo. Como ele pode produzir som não somente pela voz (que é a forma mais comum) e, a partir dessa ideia, como o pensamento sobre música se amplia.
Também tem John Cage, que traz outro sentido de percepção auditiva, chamando mais atenção para a plateia, para esse apreciador, pensando em como estar na posição de escutar algo pode ser considerado uma arte – e não necessariamente que a arte seja algo que está somente no outro e precisaria ser acessado pelo espectador. Então Cage tem um papel fundamental de olhar pr’aquilo e percebê-lo como arte. A gente foi construindo algumas audiodanças e levamos para o Instituto de Cegos, fazendo uma instalação sonora com fones de ouvido, caixas de som, microfones etc.. Usamos vários recursos que a gente estava pesquisando na época de como captar e emitir sons e como fazer as pessoas ficarem imersas nesses sons. E, a partir disso, a gente pensou que poderia montar um espetáculo com aquilo. Muito do que a gente estava criando ia para um certo divertimento, certa ludicidade com as pessoas que estavam no Instituto de Cegos.
A partir disso, a gente pensou em como criar uma obra para alguém que, de fato, não enxergue, que ele não precise ter a referência visual de alguma coisa para poder apreciar. O desafio surgiu aí: vamos criar um espetáculo de dança para cegos com as possibilidades que as pesquisas em audiodança mostraram para a gente. E o lúdico foi aparecendo no próprio processo de formatar qual seria o caminho de pensar uma dramaturgia mais específica para o espetáculo. Foi uma pesquisa que a gente fez em paralelo com a criação, já pensando no próprio espetáculo.
Como a acessibilidade foi se tornando uma questão no grupo? TANDAN! é o primeiro espetáculo de vocês com acessibilidade?
Quando começou a existir essa pontuação (de certa forma, até uma exigência) no Funcultura, para a gente, sempre foi um desafio. Afinal, a gente não tem essa educação, né? A nossa geração não passou por escolas em que isso fizesse parte do nosso dia a dia. Então, é uma grande novidade e um desafio nos nossos projetos: como pensar (ou traduzir, quem sabe) a arte que já fazíamos a essas pessoas através de intérpretes e recursos diversos. Num primeiro momento, a gente começou a descobrir o que era isso, quais eram os recursos possíveis e que a gente também pudesse ter ‘acesso’ (risos). E fomos experimentando com libras, audiodescrição, legendas para surdos e ensurdecidos (LSE), inicialmente atendendo a uma exigência.
Mas, quando a gente estava pesquisando sobre “audiodança”, entramos em contato com algumas pessoas pensando a própria audiodescrição como poética – e não somente como uma tradução mais crua ou direta. Nesses elementos de pensar uma poética da audiodescrição, fomos percebendo que nos incomodava um pouco pensar em criar uma obra e, depois, fazer uma tradução para chegar a essas pessoas. Na verdade, a gente pensava que, nesse caminho entre a obra e quem não teve acesso a ela, estava o espaço da criação: fazer da audiodescrição a própria poética e concretude da dança, mas também não fazer da dança uma audiodescrição, mas um espetáculo pensado como outras possibilidades de, a partir dessas poéticas de tradução para se tornar acessível, nos ajudar a pensar outros caminhos para nós artistas e para o público também.
Então, quando a gente foi criando TANDAN!, fomos trazendo as questões da sensorialidade, da visão, da falta de visão, da audição, com deficiências de motricidade e tentando entender como trabalhar com isso tudo. Tivemos um acompanhamento de Andreza Nóbrega (você pode conferir nosso podcast sobre acessibilidade com participação de Andreza AQUI). Infelizmente, a gente não conseguiu que ela estivesse muito presente no processo inteiro, mas a gente teve um encontro muito importante de momentos-chave para pensar o espetáculo. Então, inicialmente, o que era apenas uma questão da visão, ampliou-se para outras questões. Uma delas foi a falta de espetáculos de dança voltados para crianças: como ter acesso a esse universo e, ao mesmo tempo, como fazer a criança ter acesso a um espetáculo de dança.
A gente não queria fazer um espetáculo para crianças em um molde mais tradicional, em que os clichês do universo infanto-juvenil, da brincadeira e tal, aparecessem de forma exaustiva, e fomos tentando encontrar outras densidades, de possibilidades de lidar com o corpo da criança: com as instabilidades, a vertigem, a sensação tátil, a própria audição como guia do espaço onde se está e as direções que se podem tomar… Assim, a acessibilidade foi encontrando espaço para o processo criativo em si. Então, não foi um espetáculo criado de uma forma X e, depois, encontrado um caminho de acesso: o próprio caminho de acesso foi a questão da criação.
Como as pesquisas e referências ajudaram vocês a criar essas formas de fazer “ver” o movimento por outros sentidos?
É interessante esse uso da palavra ‘ver’ para os cegos, pois ela não é tomada somente no sentido de visão. Eles costumam falar uns para os outros (assim como a gente mesmo) “Vem ver isso aqui!”, que, na verdade, quer dizer “Vem perceber isso aqui!” ou “Vem conhecer isso aqui!”. Então, o verbo ‘ver’ também está muito nesse espaço da percepção do que propriamente da visão. No jeito de pensar a visão para a dança, a gente foi ampliando esse ‘fazer ver’ para um ‘fazer perceber’: fazer com que o corpo perceba a sensação de movimento, interferindo no jeito de lidar com o próprio corpo no contato com o corpo do outro… O espetáculo inteiro vai usando as outras sensorialidades do corpo para poder ativar isso. A gente faz a criança caminhar pelo espaço, a gente guia segurando pelas mãos, permite que ela se mova na vertigem…
O próprio espaço sonoro é construído com caixas de som móveis e sem fio que fazem o som, enquanto espacialidade e fisicalidade, também se mover junto com essa criança. A própria utilização de sons mais reconhecíveis, como água, vento ou trânsito entra no espetáculo como espaços reconhecíveis, mas que são transformados poeticamente durante o espetáculo para uma grande trajetória onde é quase uma sala mágica. A gente recebe a criança dizendo justamente isso “Seja bem vindo à sala mágica de TANDAN!”. É um momento em que cada criança passa seis minutos numa sessão individual, experimentando coisas que são muito importantes para nós que se relacionam com o pensamento de corpo e de arte que a gente acredita, procurando ativar nosso corpo nas suas potências de sentido que não caminhe somente pela visão. Então, essa ideia da simetria, de que é necessário ver a beleza do gesto… Ver o bailarino dançar, agora, se coloca no mais radical que artes contemporâneas têm tentado trazer: de que a própria plateia precisa se colocar nessa prontidão de perceber arte, de transformar o que está em volta de si como algo passível de ser arte.
Então, está no tato, quando a gente toca essa criança ou a coloca em lugares mais instáveis para pisar, provocando outros movimentos e fazendo-a dançar junto com a gente… E criando essa trajetória lúdica. Lúdica não somente pelo movimento em si, mas pelas espacialidades que a gente pode provocar na própria experiência do corpo. Tanto sozinho, quando eu percebo o que está tocando minha perna ou de onde está vindo determinado som ou cheiro perto de mim, por exemplo, mas também no contato com o outro: quando eu toco a pele do outro ou percebo outro corpo também se movendo comigo. Que forma de compartilhamento eu crio ali e o que ele me provoca a potencializar?
Foi assim que a gente foi construindo a dança de TANDAN!: uma dança que não está nessa imagem visual externa, mas em uma auto-imagem, em um corpo que se infla de possibilidade para perceber o movimento.
Além de dança e música, tua formação sonora inclui também um interesse pela tecnologia (bem exemplificado no podcast). Como tu vê essa influência colaborando na criação desse espetáculo?
Vou tentar formular algo para te dizer, porque para mim é tudo meio misturado (risos). Eu não tive aulas de Educação Artística na escola quando era criança. Era tudo muito vago: as aulas de artes acabavam sendo muito precárias. Enfim, aquelas aulas de artes em que você acabava fazendo basicamente desenho, geometria… Até mesmo a literatura não é abordada por um viés artístico, como acredito que deveria ser.
Focando nessa minha relação entre música e tecnologia, tem um aprendizado de ter de lidar com aparelhos eletrônicos desde o início da minha carreira como músico. Eu comecei fazendo aulas de piano, que é um instrumento acústico, que tem uma força material bastante presente. Junto com isso, eu comecei a fazer também teclado e trabalhava com alguns sintetizadores, aprendendo como criar som dentro deles, como salvar nos disquetes… Enfim, um monte de equipamentos bem diferentes do que a gente tem hoje. Isso foi me dando uma certa familiaridade em lidar com uma certa imaterialidade do som.
Talvez o instrumento musical que fosse a representação mais concreta disso também se abstrai quando a gente começa a criar esses sons eletrônicos. Isso também foi me deixando à vontade e curioso de trabalhar com outros equipamentos. Durante um tempo, eu toquei numa banda também e acabava tendo muito contato com os equipamentos de som de show e conhecendo outros sistemas de captação e transmissão de áudio. Tudo isso que parece muito cru, sem poética ou arte envolvida, vai ampliando nossa forma de entender a produção de som e a expansão disso para outras áreas.
Quando comecei a fazer trilha sonora para dança, foi para o espetáculo Silêncio, em que eu gravei as músicas com gravador e depois manipulei no computador com os softwares de edição de áudio. Fui descobrindo outras possibilidades de distorcer e sobrepor essas sonoridades e encontrar outros modos de escutar. Isso abre seus ouvidos para escutar o mundo de outro jeito. O próprio ato simples de você gravar um som para depois escutar já faz você ouvir diferente, faz você pensar isso como possibilidade de composição artística na música, amplia ainda muito mais.
Isso também é o que me dá facilidade de pensar nas gravações de voz: ter descoberto o mundo do podcast, com sotaques tão diferentes… Isso é algo que me apaixona muito: escutar pessoas de outros lugares falando. De vez em quando, escuto podcasts até em outras línguas (não tão frequentemente) por conta da musicalidade da voz, do ritmo e o jeito da fala. E foi me dando curiosidade de também experimentar fazer isso na prática. E é todo um caminho que foi me dando as possibilidades de, quando chegar em TANDAN!, usar esse conhecimento para abrir um campo muito rico na trilha sonora, que se faz muito essencial para a experiência do espetáculo. Não somente pelos elementos musicais em si, mas também de fisicalidade, de tentar construir uma espacialidade coreográfica no som.
A gente usa três caixas de som independentes que se movem junto conosco e tem locais específicos em que elas precisam estar, por causa de som que vai sair de cada uma delas. Então, a gente coreografa essas caixas de som também, pensando em como manipular a execução desse som ao vivo, mesmo que ele seja gravado previamente. Então, é tocar um instrumento durante o espetáculo que não é necessariamente produzir um som, mas colocá-lo dentro de uma espacialidade. Então, a referência da música vem muito para mim nesse momento: é a música ocupando um espaço, aproximando ou distanciando essas questões.