#04 Bits & Palcos | Teatro via streaming – A co-presença em ‘Como é que abre aqui?’

Imagem – rawpixel | Arte – Rodrigo Sarmento
Por Leonardo Torres
Mestrando em Artes da Cena (UFRJ) e Crítico e Jornalista (Teatro em Cena)
Um espetáculo teatral sem limitação de público. O Coletivo Mastruço, formado por mulheres do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo, perseguiu essa ideia em 2017 com Como é que abre aqui?, dirigido por Laura Mollica. A curta temporada de quatro semanas, com apenas uma apresentação semanal, realizada no Instituto Kreatori, no Rio de Janeiro, não impôs a limitação deduzível de espaço e tempo. Utilizando o ciberespaço, a montagem buscou ampliar seu alcance: todas as apresentações foram transmitidas ao vivo pela página do espetáculo no Facebook. Desta maneira, o elenco trabalhou com dois públicos: o físico, que pagou R$ 20 para estar na sala, e o virtual, que acessou o mesmo trabalho gratuitamente por streaming. A proposta tenciona o paradigma da co-presença, determinante para o entendimento da arte teatral, e trabalha com novas nuances de presença, decorrentes dos adventos tecnológicos.
Primeiro, é preciso entender o que se chama aqui de co-presença. Historicamente, a representação teatral é fundamentada no espaço e no tempo: trata-se do que acontece “aqui e agora” (RYNGAERT, 1998). Partindo desse princípio, o fenômeno teatral se dá com a comunhão de um ou mais atores diante de um ou mais espectadores no mesmo espaço e tempo. O alemão Hans Thies-Lehmann, pensador contemporâneo do teatro, cunhador da teoria do teatro pós-dramático, define bem esse entendimento ao afirmar que o teatro ocorre “em um período de tempo em que atores e público passam juntos em um espaço no qual ambos respiram e ocorre tanto a representação quanto a observação”[1] (LEHMANN, 2006, p. 12). O surgimento de novas mídias tanto fortaleceu quanto confrontou essa noção. Foi justamente o aspecto da presença física que manteve a sobrevivência do teatro quando se disseminou o cinema, que era apontado como aniquilador óbvio do primeiro. O teatro passou, mais do que nunca, a buscar métodos de reforço do ideal de presença – seu diferencial – com exploração do corpo nu, odores, contato físico, interação, excrementos biológicos e atos performativos. Contudo, o surgimento da Internet e a disseminação da comunicação digital impuseram uma nova realidade.
As mediações tecnológicas implicam declínio da presença física e sua substituição por um corpo virtual – já estamos cercados por dispositivos que virtualizam os sentidos e, simultaneamente, reduzem a utilização do corpo. (…) Conseguimos estar em vários lugares ao mesmo tempo graças às técnicas de comunicação e de telepresença, o que implica mudança de nossa percepção sensorial, da temporalidade humana, agora confrontada com o tempo tecnológico. (MATESCO, 2009, p. 41)
Em outras palavras, o ciberespaço desassocia a noção de presença da necessidade do corpo físico. O avatar, a virtualidade, os messengers, os chats e as redes sociais permitem que usuários estabeleçam relação de presença em condições distintas de espaço e tempo. Isto é, o próprio conceito de presença é flexibilizado. Ao pensar nessa questão levada para as artes cênicas, Fewster (201) estabelece três classificações de presença: clássica (aquela que fundamentou o teatro), virtual (com projeções, às vezes em justaposição com corpos físicos) e intermidial (entrelaçamento da clássica e da virtual). Esta terceira se aproxima do caso de Como é que abre aqui?: dois atores, uma plateia física, e outra plateia, dispersa em sua formação, assistindo a tudo em tempo real pelo Facebook. Contraria parcialmente a definição de teatro cunhada por Lehmann: atores e público vivem uma experiência juntos, mas em lugares separados, respirando em diferentes ambientes. A representação ocorre em um espaço e a observação em outro, o ciber, por intermediação de suporte tecnológico. A cena é expandida:
No teatro, chamo de cena expandida aquela que não se circunscreve apenas ao fazer teatral, como àquele associado aos modos de produção e recepção teatrais convencionais, mas também se articula diretamente a áreas artísticas distintas, em uma espécie de convergência que tangencia conhecimentos oriundos das artes cênicas, visuais, das mídias audiovisuais, da performance, da dança, da literatura, da fotografia. (LÍRIO, 2016, p. 40)
Em Como é que abre aqui?, existem duas experiências simultâneas: a que a autora chama de “modos de produção e recepção teatrais convencionais”, mediante a representação do elenco na mesma sala que a plateia física no Instinto Kreatori, e a convergência com o ciberespaço. Neste segundo caso, o streaming estabelece outra maneira do espectador se relacionar com a representação – através de uma tela. Para quem vê pela Internet, há diferença entre um vídeo no Youtube, um filme no Netflix e a transmissão de um espetáculo teatral no Facebook? As formas de consumo, de fato, se associam, mas a diferença implica na informação prévia de que o espetáculo é “ao vivo”. O espectador sabe de antemão que os atores fazem o que fazem naquele mesmo momento, em outro lugar. É importante sublinhar o aspecto “ao vivo” da transmissão do Coletivo Mastruço, toda semana: a qualidade do efêmero, portanto, era mantida. Não são todas experiências teatrais envolvendo ciberespaço que prezam por isso.
A plataforma Cennarium, uma espécie de Netflix de teatro, trabalha com filmagem profissional de espetáculos teatrais e um catálogo como de locadora. O espectador escolhe o que deseja e assiste a uma gravação datada. Outra iniciativa conhecida, o Teatro Para Alguém também trabalha com um arquivo de espetáculos para streaming – criados especificamente para a Internet. O coletivo tem como regra que a primeira transmissão seja ao vivo, e depois ela fica disponível como qualquer outro vídeo. Além disso, por ser voltado exclusivamente para a Internet, a representação só desfruta de plateia online: não existe público na mesma sala que os atores. Ali, só a equipe técnica. Não é o que se propõe o Coletivo Mastruço: ao longo das quatro semanas, com espectadores fisicamente presentes, as apresentações foram transmitidas pela Internet e apagadas do Facebook logo após o fim. Só a última sessão ficou disponível na página, em caráter de registro. O intuito era justamente que o público virtual compartilhasse aquele momento, naquele momento. Desta maneira, diferentemente dos outros casos citados, o espectador teve acesso a diferentes apresentações do mesmo espetáculo: era possível assistir à encenação e retornar à página na semana seguinte para ver outra sessão. Em entrevista, a diretora declarou:
Uma peça teatral vista presencialmente sempre será mais potente, mas por que não dar a opção de escolha às pessoas? O teatro, hoje, tem essa opção de não ficar limitado ao bairro, cidade em que se apresenta, chegando até outras pessoas. Então vejo as tecnologias como forma de ajudar o artista a divulgar seu trabalho (MOLLICA apud TORRES, 2017)
O Coletivo Mastruço exerce uma pesquisa sobre utilização de espaços não convencionais para apresentações (o próprio Instituto Kreatori pode ser entendido como um deles). Já fez intervenções e performances em locais públicos, como a rua, e privados, como supermercados. Levar um espetáculo para a Internet é uma continuidade dessa pesquisa, explorando um espaço virtual e um físico simultaneamente. De acordo com a diretora, o coletivo, que já se apresentou na Alemanha e na Inglaterra, dialoga com artistas e colaboradores que não estão no Brasil, então transmitir seu espetáculo pelo Facebook constitui também uma maneira de chegar a essas pessoas. Ela acredita que não há porque se cercear de barreiras territoriais e ignorar as possibilidades de expansão estabelecidas pela Internet para valorizar um paradigma teatral, que já vem sendo confrontado e questionado por experiências intermidiais – isto é, aquelas em que se estabelece o hibridismo entre diferentes mídias.
Sobretudo porque a intermedialidade, uma realidade no teatro contemporâneo, “designa trocas entre os meios de comunicação, principalmente no que diz respeito a suas propriedades específicas e a seu impacto sobre a representação teatral” (PAVIS, 2011, p. 2012). Neste caso, o impacto está justamente na limitação de espectadores inerente a uma sala de apresentação. Da mesma maneira que a transmissão pela Internet permite que uma pessoa assista ao espetáculo de outro lugar, ela dá o mesmo acesso a dezenas, centenas, milhares de usuários do Facebook. Torna-se imprevisível o alcance, o que é uma realidade nova. Afinal, o “teatro intermedial pode se dar tanto fisicamente quanto na tela; as experiências podem ser tanto reais quanto virtuais; os espaços podem ser tanto público quanto privados; os corpos podem estar tanto presentes quanto ausentes” (NELSON, 2010, p. 17). A diretora da montagem sublinha, inclusive, que o mesmo caráter de transformação se deu com outras artes e mídias com o aprofundamento das relações sociais com o ciberespaço.
Esse cruzamento entre as artes é necessário hoje. Poder ouvir músicas da Nigéria, Sri Lanka, Espanha através da internet é uma forma de ter acesso a outras culturas. Por que não fazer o teatro ganhar a mesma oportunidade? (…) A transmissão ao vivo é um meio de você possibilitar outras pessoas a conhecer o trabalho, sair do circuito carioca (MOLLICA apud TORRES, 2017)
A expansão das possibilidades de recepção da cena implica ainda na complexação do endereçamento, ou seja, o destinatário do discurso teatral. Originalmente, todo e qualquer espetáculo trabalha com endereçamentos interno e externo: o primeiro significa os diálogos entre os personagens (a quem eles se destinam), e o segundo é referente à comunicação entre ator e espectador (caso principalmente dos monólogos). Na verdade, mesmo quando os personagens dialogam entre si, também existe o endereçamento externo – porque os personagens dialogam para que o público tome conhecimento da história, ou seja, a plateia também é uma destinatária. No caso de Como é que abre aqui?, um celular com câmera estabelece um terceiro endereçamento: a representação para a Internet. Contudo, segundo a diretora, os atores não atuam para a câmera. Em outras palavras, ela não interfere na representação habitual na sala de espetáculos.
A câmera “está mais como um objeto passivo. É o olho do observador” (MOLLICA apud TORRES, 2017). É uma circunstância nova, porque o espetáculo também se destina ao ciberespaço, embora os atores não o façam diretamente. “Nas dramaturgias imediatamente contemporâneas, a questão do endereçamento é ainda mais importante na medida em que seu uso acha-se em vias de expansão” (HEULOT e NAUGRETTE, 2013, p. 13). O uso do celular para transmissão ao vivo do espetáculo no ciberespaço, neste caso, aponta um endereçamento externo intermediado. Uma circunstância distinta, portanto. Ainda que os atores não atuem para a câmera, têm conhecimento de que ela está lá do início ao fim. Eles sabem que a câmera representa um público potencialmente maior do que aquele que os cerca fisicamente presente na sala – maior do que aquele que eles podem ver ou perceber reagir. A câmera abre a representação para um público que não é visto nem percebido em cena, mas que existe.
O membro da equipe responsável por segurar o celular durante a apresentação fica posicionado entre os espectadores. Imóvel, a maior parte do tempo. Mas existe uma cena itinerante no espetáculo – a atriz pergunta quem fuma, distribui cigarros e convida parte da plateia para outro ambiente no Instituto Kreatori, para que possam fumar. Nesta cena, o membro da equipe, de pé, se movimenta em torno da atriz e dos espectadores fisicamente presentes, mudando o ângulo da cena para o espectador virtual algumas vezes. Depois, ele retorna com a atriz e essa parte da plateia para a sala principal e assume sua posição anterior. Evidentemente, sua presença e a do dispositivo tecnológico são percebidos pelo elenco, pela plateia fisicamente presente e até mesmo pelo espectador virtual (devido aos movimentos da câmera, certa instabilidade que denota uma mão segurando). O que a diretora chama de olho do espectador, na verdade, tem um intermediário claro – a quem não se conhece, mas nota-se a existência. E o olho é deste. Ou seja, há mudanças na recepção. Na sala de teatro, por maior que seja a indução da direção e do elenco, cada espectador escolhe instintivamente para onde e quando olhar. Ao assistir pela transmissão online, um recorte lhe é dado, o que configura outra experiência da mesma obra.
A pergunta que se pode fazer é: ainda é teatro a relação do espectador com a tela? Ocasionalmente, esse questionamento aparece. Mas, afora conexões com a cibercultura ou perspectivas intermediadas, o teatro contemporâneo já tem em seu histórico “estratégias perceptivas que necessitam de um ajustamento permanente por parte do espectador, de ‘renegociações constantes’, nas quais a relação percepção-cognição é constantemente reajustada, deslocada, explodida”. (FÉRAL, 2015, p. 288). A autora cita exemplos de encenações de Wilson, Kantor, Lepage e Lecompte. Segundo ela, pesquisas de fisiologistas comprovam que a percepção do espaço mudou ao longo dos séculos, acompanhando as evoluções tecnológicas, e que, atualmente, vive-se a “virtualização do real”. Em suma, a transmissão online de um espetáculo via smartphone para que espectadores, localizados em outros bairros, cidades, estados ou países, assistindo a tudo por uma tela, não descaracterizaria o fenômeno teatral. Na verdade, a iniciativa insere o espetáculo no contexto do panorama do teatro contemporâneo, em diálogo com adventos tecnológicos. Renata Jesion, fundadora do Teatro Para Alguém, faz uma provocação que se associa também ao contexto de “Como é que abre aqui?”:
O teatro continuará sendo presencial? Isso também virou um dogma (risos), de um grego que lá atrás chegou e falou “teatro tem que ser assim”. Hoje, com essa fusão de veículos, nós não temos mais como falar “eu preciso do presencial”. O presencial está lá, na casa da pessoa que está assistindo o TPA naquele momento, sentado com a bunda em frente ao computador. É presencial em outro lugar, e eu, como atriz, estou fazendo aqui como se houvesse aquela presença sua naquele momento (JESION apud FOLETTO, 2011, p. 90)
É sempre importante lembrar que o teatro tampouco se originou com utilização de luz elétrica, microfones, caixas de som ou trilha sonora pré-gravada – artifícios encarados com naturalidade nos dias de hoje, mas que já foram novidade no passado e também expandiram as possibilidades de alcance e de experiência de recepção. Como o celular e a tela em Como é que abre aqui?, microfones e caixas de som também são intermediários entre a representação do ator e a recepção do espectador. Reconhecer o caráter evolutivo do teatro e sua capacidade de uso criativo de novas mídias e tecnologias é um passo necessário para lidar com a flexibilização da relação de co-presença. Ela ainda existe, mesmo nos diálogos com o ciberespaço, mas recontextualizada, sobretudo porque a condição de presença no ciberespaço é outra. A verdade é que nunca se existiu tantas alternativas para estar presente. Como é que abre aqui?, portanto, cumpriu sua temporada no Instituto Kreatori e simultaneamente no Facebook: presente em diferentes mídias.
Referências Bibliográficas
FÉRAL, Josette. Além dos limites: teoria e prática do teatro. São Paulo: Perspectiva, 2015.
FEWSTER, Russell. Presence. In: BAY-CHENG, Sarah; KATTENBELT, Chiel; LAVENDER, Andy; NELSON, Robin. Mapping Intermediality Performance. Amsterdã: Amsterdam University Press, 2010.
FOLETTO, Leonardo. Efêmero revisitado: conversas sobre o teatro e cultura digital. Santa Maria: Baixa Cultura, 2011.
HEULOT, Françoise; NAUGRETTE, Catherine. Enderaçamento. In: SARRAZAC, Jean-Pierre (org.). Léxico do drama moderno e contemporâneo. São Paulo: Cosac Naify, 2013.
LEHMANN, Hans-Thies. Postdramatic Theatre. Londres e Nova York: Routledge, 2006.
LÍRIO, Gabriela. A Cena Expandida: alguns pressupostos para o teatro do século XXI. Art Research Journal, v.3, n.1; 2016, p.37-49.
MATESCO, Viviane. Corpo, imagem e representação. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
NELSON, Robin. Prospective Mapping. In: BAY-CHENG, Sarah; KATTENBELT, Chiel; LAVENDER, Andy; NELSON, Robin. Mapping Intermediality Performance. Amsterdã: Amsterdam University Press, 2010.
PAVIS, Patrice. A análise dos Espetáculos. São Paulo: Perspectiva, 2011.
RYNGAERT, Jean-Pierre. Ler o teatro contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
Meios eletrônicos
TORRES, Leonardo. Espetáculo teatral transmite apresentações ao vivo pelo Facebook. Teatro em Cena, 2017. Acesso em: 8 nov. 2017.
Notas de Rodapé
[1] Todas as traduções são de minha autoria.