#05 Arte e Mercado | Artista e/ou Empreendedor?
Imagens – ‘Take Shape’ – Ballet Memphis e Arquivo Pessoal | Arte – Rodrigo Sarmento
Por Manoel Silvestre Friques
Professor de Engenharia de Produção (UNIRIO). Engenheiro de Produção (UFRJ), Teórico do Teatro (UNIRIO) e Doutor em História (PUC-Rio)
Ao ser solicitado para contribuir para um dossiê que se põe a pensar sobre a possibilidade de um “mercado de artes cênicas”, não pude esconder a alegria do convite e também do título sugerido: Artista e/ou Empreendedor. Esse título parece ter caído como uma luva em meus questionamentos, visto que estabelece imediatamente o campo espiralado de tensões, dentre atrações e repulsões, que o debate entre/sobre artistas e empreendedores geralmente assume.
No meu caso, o foco concentrou-se rapidamente na fratura, na barreira que une e separa simultaneamente os conectivos lógicos e e ou, elos que, por sua vez, propõem relações distintas entre os termos artista e empreendedor. Tudo se passa então como se o artista pudesse ou não conviver – em um mesmo espaço e também em um mesmo corpo – com o empreendedor. Tupi or not Tupi, eis a questão. A ansiedade toma conta de meu pensamento, me fazendo então sentenciar: todo artista é um empreendedor. Ao afirmar a preferência pelo conectivo e, não o faço, todavia, em detrimento do ou. Um artista não precisa necessariamente ser um empreendedor. Afinal de contas, o que estou eu querendo dizer?
Geralmente, o debate entre arte e empreendedorismo tende a ser aquele motivado pela falta. Tudo o que o artista não tem, o empreendedor o possui. Nesse sentido, o artista precisa aprender, cada vez mais, a ser empreendedor de modo a poder sobreviver no mercado. O artista precisa ser um bom gestor. O artista precisa ser um “eu empreendedor” como Steve Jobs ou Mark Zuckerberg. Ele deve: conceber um plano de negócios, estabelecer um plano de marketing munido dos quatro P’s, estar afinado com as oscilações do PIB nacional e internacional, calcular o seu fluxo de caixa e saber do payback de seus investimentos etc. Enfim, o artista precisa, para ser empreendedor, lidar com todos os tiques, jargões e cacoetes do gerencialismo.
Caso concebamos o sentido de empreendedor sob o viés gerencialista, devo dizer que um artista jamais será um empreendedor. E aqui, devo alertar para esta retórica da falta e da necessidade que volta e meia paira nos debates em torno do “mercado de artes cênicas”. O que esta retórica desconsidera é o fato de não precisarmos no Brasil de artistas. Melhor dizendo: uma breve pesquisa nos anais da História e/ou da Crítica de arte revelará o potencial criativo de nossos artistas, sempre heroicos quando o assunto é a inovação artística vinculada à sobrevivência econômica. Pode-se dizer que, mesmo que os problemas sociais se imponham de modo contundente e determinante à criação artística brasileira, esta mesma criação encontra meios e modos de transfigurar todo um conjunto de problemas em obras e processos indubitavelmente inovadores. Sendo assim, se o “mercado de artes cênicas” não decola ou não decolou até hoje, desconfio que este seja menos um problema dos artistas do que dos gestores.
A figura do gestor surge então como um termo mediador entre o artista e o empreendedor. Considerando este deslocamento de foco, observamos nos últimos anos a criação de vários cursos de gestão e de produção cultural em cerca de 19 unidades federativas brasileiras. Um estudo recentemente publicado pelo Observatório do Itaú Cultural, contabiliza, entre 1995 e 2016, a criação de 131 cursos em 90 instituições. Como nem tudo são flores, mais da metade deste universo – 53% – não está mais em atividade, sendo 42,53% daqueles que o estão referentes a cursos de especialização. A despeito da instabilidade, estas oscilações numéricas indicam a importância e a necessidade de profissionalização e de formação de gestores e produtores culturais, sendo elas também um reflexo potente das políticas culturais brasileiras dos últimos anos (por exemplo, há uma concentração de cursos na região Sudeste).
No que concerne especificamente à gestão teatral, observa-se – com menos frequência, é verdade – o surgimento de alguns estudos que se debruçam sobre o tema, como o já nascido clássico O Avesso da Cena, de Romulo Avelar. No ambiente acadêmico, encontramos ainda estudos que oscilam entre o mapeamento setorial de grupos e companhias, as abordagens sociológicas sobre alguns conceitos holísticos (sistema, mercado, cultura, circuito, campo etc.), as políticas culturais para o teatro e o processo de formação de gestores e produtores. Mesmo com estes esforços, observamos que, na prática, a atividade gerencial das artes cênicas brasileiras concentra-se sobretudo em algumas iniciativas individuais vinculadas a espaços e financiamentos públicos que, mesmo que indubitavelmente desbravadoras, pecam ainda por não tornar inteiramente públicos os seus processos decisórios, as suas transações e os seus dados constituintes.
É necessário então compreender mais detidamente que as políticas públicas para o teatro devem se basear no acesso transparente aos dados que caracterizam as nossas atividades mais banais ou mais espetaculares. Somente com estas informações conseguiremos tomar e encaminhar as melhores decisões em todas as esferas, mais ou menos políticas, mais ou menos afetivas. Há, portanto, vários níveis de gestão. Precisamos (talvez com urgência) hierarquizar e mapear as relações entre estes níveis, em especial as suas auto-implicações: como os dados de uma apresentação única ou da gestão de um espaço público chegam ao conhecimento do ministro da Cultura? Quais são os processos que os conduzem até lá e vice-versa?
Considerando este debate sobre o acesso público à informação referente às atividades teatrais, pode-se chegar a uma outra identidade entre o artista e o empreendedor. Mas, se um artista é um empreendedor, ele o é por outra via, conforme um outro sentido do que é ser empreendedor. Em outras palavras, se o artista é um empreendedor, ele o é a contrapelo do mito do empreendedor nutrido por um conjunto de concepções fantasiosas em torno desta figura hiperindividualizada, autoconsciente e heroica, a quem se atribui unicamente todos os sucessos e fracassos, como se a organização, os recursos, o contexto histórico, as regulamentações e tudo o mais no mundo não existisse. É claro que este mito do empreendedor é bastante semelhante ao mito romântico do artista sustentado sorrateiramente pelo mercado de arte e por certo cenário atrofiado de premiações. Aqui, precisamos também desviar-nos desta definição tradicional do artista, sendo justamente por isso que, uma vez mais, afirmamos: “um artista é um empreendedor”. Mas, em que sentido?
Alguns parágrafos acima, mencionei o processo de transfiguração da realidade pressuposto em qualquer criação artística. Este é, sem dúvida alguma, um modo de empreender e mobilizar novas formas e temáticas artísticas, a exemplo do que fizera na década de 60 o artista visual Helio Oiticica e seu esquema geral da nova objetividade, ou, na década de 70, as estratégias do grupo carioca Asdrúbal Trouxe o Trombone, e, mais recentemente, o caso do Teatro do Saara, no Rio de Janeiro, e do artista indígena Jaider Esbell, que criou a sua galeria de arte em Boa Vista, Roraima.
O caso de Esbell é bastante ilustrativo, pois o artista não se contentou apenas em inovar artisticamente, afirmando sua identidade étnica aliada a sua persona artística, mas criou um espaço inovador na paisagem de seu estado, tendo mobilizado também um conjunto de artistas daquela região. Nota-se aí que as formas alternativas não se restringem ao universo da produção artística, mas a atravessam, de fato, rumo ao contexto das relações sociais, culturais, econômicas e políticas. Afinal de contas, estamos falando de uma galeria de arte criada por um artista indígena em Boa Vista, bem longe dos polos culturais tradicionais! O exemplo de Jaider Esbell nos abre, portanto, para as formas alternativas de organização que grupos e companhias empreendem para poder sobreviver econômica e culturalmente.
Eis que, por fim, chegamos à questão da sobrevivência econômica pressuposta desde o início deste debate. O exemplo de Esbell nos indica que, para sobreviver, é preciso empreender. Contudo, para que este empreender não seja lido sob a restrita perspectiva pessoal de um herói romântico, proponho então que ele deva ser substituído por outro verbo: trabalhar. O artista é um empreendedor naquilo que ambos possuem do trabalhador. Mas este é um falso fim. Pois, quando incluímos no debate o termo trabalhador, inicia-se uma nova janela de discussão que redefine então o título para artista e/ou empreendedor e/ou trabalhador.
Quando equaciono o artista ao trabalhador, não busco adequar o primeiro às normas vigentes do novo espírito meritocrático do capitalismo que rege o segundo. Em primeiro lugar, devo esclarecer que é enquanto “trabalhador da cultura” que o artista se torna visível nas estatísticas culturais, desenvolvidas nos últimos anos a reboque das novas tecnologias de comunicação e informação que circunscrevem a era da Big Data. Além disso, este equacionamento é capaz de revelar as diversas e heterogêneas transformações observadas em todo o mercado de trabalho em um contexto batizado de muitas formas, sendo as mais frequentes o Capitalismo Cognitivo, a Economia do Conhecimento, a Sociedade da Informação e a Civilização do Espetáculo. Em geral, todas estas expressões apontam para um processo de desmaterialização do trabalho.
É interessante observar que, neste contexto, até mesmo as duas perspectivas antagônicas para o trabalho, ilustradas pelas figuras do trabalhador fordista e do ator, têm suas barreiras borradas. Pois, antes era possível distinguir com nitidez dois paradigmas do trabalho: de um lado, um trabalho repetitivo embrutecedor tendo em vista um fim (o caso de um operário da fábrica para a produção em larga escala de parafusos); de outro lado, a repetição do ator em seu processo de ensaio, sendo o trabalho um fim em si mesmo, uma forma de aprimoramento pessoal. Mas hoje não se sabe ao certo se esta dicotomia ainda se mantém tão monoliticamente. Pois, como os pacotes de austeridade demonstram, as condições de trabalho, manual ou cognitivo, se tornam a tal ponto absolutamente precárias, formalizando a informalidade.
Por outro lado, há até mesmo o processo de se prescindir do trabalho, adotando-se uma renda mínima universal. De um modo geral, observa-se atualmente o adensamento e a atualização dos problemas trabalhistas mais tradicionais referentes à informalidade e à remuneração até mesmo naquelas atividades mais tecnológicas, gerando novas “classes proletárias” como a do “precariado” e a do “infoproletário”. Em suma, quando o trabalho se torna imaterial, definem-se métodos e ferramentas para a elaboração de um taylorismo cognitivo nem sempre compensador.
Ora, os problemas de informalidade e de remuneração, transversais a muitas áreas, são absolutamente recorrentes no mercado de trabalho cultural. Em um livro recentemente publicado pela Universidade Federal da Bahia, Os Trabalhadores da cultura no Brasil: criação, práticas e reconhecimento, podemos constatar uma precariedade elevada neste mercado de trabalho, com aproximadamente um terço composto, em 2014, por trabalhadores informais. Porém, surpreendentemente, o rendimento médio da cultura é bastante superior ao salário médio geral (R$ 2.759 contra R$ 1.537). Mesmo com esta maior atratividade do mercado de trabalho cultural, é bastante comum observar artistas que, para sobreviverem economicamente, buscam empregos de outras naturezas, associadas ou não à sua atividade artística principal.
Estudos internacionais, como aqueles realizados pelo economista da cultura David Throsby, relatam este desdobramento do artista australiano tendo em vista a sustentabilidade econômica. No campo da teoria da arte, o artista Ricardo Basbaum definiu duas figuras de artistas: o artista-artista, para aquele profissional que o é em tempo integral, e o artista-etc., abrindo-se aí para inúmeras categorias: artista-curador, artista-produtor, artista-agenciador, artista-químico, artista-economista etc. Daí, podemos concluir que o artista é, em geral, um trabalhador polivalente, ou seja, o artista é, na maioria das vezes, um artista e um outro. Ora, porque este outro não pode ser então também um empreendedor?