#05 Arte e Mercado | Inomináveis modos de produzir e se relacionar

Imagens – Take Shape’ – Ballet Memphis e Bob Maestrelli | Arte – Rodrigo Sarmento
‘Para mim, performance é um modo de estar no mundo e, nesse sentido, a gestão do Inominável está sempre fazendo e se desfazendo. Não temos um modo estável de gerir que aprendemos, repetimos e, depois, a vida vai ficando bonita. Isso não é real.’
Como a pesquisa de grupo sobrevive em um cenário que parece impor determinados modos de produção? Como reconhecer esses modos, jogar COM eles, A PARTIR deles, CONTRA eles? Continuando nosso dossiê Arte e Mercado, temos entrevista com Diogo Liberano, que comenta a trajetória do Teatro Inominável e sua pesquisa sobre modos de produção, relação e criação em grupo.
Diogo Liberano é artista-pesquisador Graduado em Artes Cênicas – Direção Teatral (UFRJ) e Mestre em Artes da Cena (PPGAC/UFRJ), atuando como diretor artístico e de produção da companhia carioca Teatro Inominável, responsável por criações como Não dois (2009), Vazio é o que não falta, Miranda (2010), Como cavalgar um dragão (2011), Sinfonia Sonho (2011), Concreto armado (2014), O narrador (2014) e poderosa vida não orgânica que escapa (2016). Além disso, atua como professor da Faculdade CAL de Artes Cênicas, dramaturgo-coordenador do Núcleo de Dramaturgia SESI Cultural e como dramaturgo em outros trabalhos como Maravilhoso (2013), Laboratorial (2014), Janis (2015) e Os Sonhadores (2016).
Como coordenador do Núcleo de Dramaturgia SESI Cultural, também lança o site-diário Dramaturgia em Núcleo, que reúne diversas questões relacionadas ao universo da dramaturgia: reflexões sobre a escrita teatral, exercícios e criações realizados pelos 14 autores da terceira turma do Núcleo. Como um diário aberto, a plataforma funciona como um espaço para compartilhamento de anotações, inquietações e reflexões nascidas durante os encontros das turmas, quefizeram encontros e realizam trocas com artistas tais como Rodrigo Portela, Pedro Kosovski, Enrique Diaz, Susana Ribeiro, Marcio Abreu, Ana Kfouri, Daniel Herz, Denise Stutz, dentre inúmeros outros.
O Núcleo de Dramaturgia SESI Cultural é um programa intensivo de estudo e criação em dramaturgia para autoras e autores interessados na escrita para teatro, que, inclusive, encontra-se com inscrições abertas de 22 de janeiro a 22 de fevereiro de 2018 para o processo seletivo que formará a sua quarta turma (2018), que segue com coordenação de Diogo Liberano.
Para mais informações, acesse AQUI.
Confere o bate papo que o dramaturgo e diretor teve com nosso editor-chefe, Márcio Andrade.
O Teatro Inominável vem investindo em trabalhos calcados numa pesquisa que relaciona performance e teatro. Como vocês foram se descobrindo nesse lugar de experimentação e pensam que pode a performance ser, mais do que linguagem, um modo de ser e estar em grupo?
Sem dúvida, essa é a definição de performance para nós. Mais do que uma linguagem artística, a performance acabou se tornando um modo de ativar e implicar o posicionamento de cada artista da companhia em relação às criações que fazemos. Então, seria um modo de atualizar a relação do nosso corpo com a criação, de energizar e implicar a relação desses corpos (em criação) com o nosso trabalho e a nossa cidade. Quando falamos de performance e teatro na companhia, termina sendo menos uma discussão sobre linguagem e mais sobre um modo de estar sempre filtrando cada criação pelo o nosso corpo, pela subjetividade de cada criador, pelo ponto de vista de cada um de nós. Quando falamos de performance arte, vemos como cada corpo responde a um determinado assunto ou contexto de uma forma diferente, o que é bastante valorizado no Inominável e, por extensão, justamente aquilo que acaba por nos surpreender ao revelar outras formas e outras maneiras de fazer, outras poéticas. Assim, na prática do Inominável, passei a ver a performance, mais do que como uma linguagem, como um modo de ser e de estar, como um modo de pertencer à cidade e agir no trabalho… Uma forma bastante distinta de se relacionar com as questões que estão nos rodeando o tempo inteiro.
Como é desenvolver esse teatro de pesquisa no Rio de Janeiro, que, às vezes, parece mais lembrado pela atuação para televisão e pelo teatro musical? Como as formas de gestão do Inominável vão acontecendo diante desse cenário cultural que vocês têm?
Começo falando sobre o perigo dos nomes, sobre se autonomear Teatro de Pesquisa, por exemplo, ou se trancar em categorias como Teatro de Grupo ou um Grupo de Pesquisa sobre Teatro e Performance. Essas questões, hoje, passam muito batidas pelo Inominável: não damos muito importância a esses nomes, não por um mero trocadilho com o nome do grupo. Na verdade, passamos a compreender que os nomes, às vezes, camuflam o que, de fato, as coisas são: sobretudo, as dimensões materiais e de produção que estruturam relações e criações. Tentamos, então, fugir um pouco dos nomes para não perder a potência de determinados encontros e situações em que estamos. Dentro dessa questão, me pergunto se o Rio de Janeiro é mesmo, de fato, conhecido pela ênfase na atuação para televisão e teatro musical, sabe? Bom, pode ser que seja. Outros podem dizer que “sem dúvida é”. Mas, no final das contas, eu não sei. Porque junto a isso, existe uma série de outras possibilidades de criação e de produção e a gente, cada momento é um, se encaixa em uma delas, duas ou três dessas outras maneiras de existir e criar.
Especificamente sobre como fazemos a gestão da companhia, posso afirmar: é sempre aos trancos e barrancos (como se costuma dizer). Isso no sentido de que não há um modo estável de se fazer as coisas. Não aprendemos a fazer de um jeito (que foi considerado satisfatório) e, depois, ficamos repetindo esse mesmo modo de fazer (como se, apenas por repetir, a vida seguisse sempre bonita e funcionando). Isso não é real. Às vezes, experimentamos e tentamos uma maneira mais firme de manter a gestão da companhia, mas depois vamos vendo tudo caindo e deixando de funcionar. O que posso ressaltar é sobre a importância que é compreender o cenário em que estamos e ver quais movimentos norteiam tal cenário e suas políticas culturais. Diagnosticar a “realidade” já se mostra como uma forma de se opor às suas dinâmicas dominantes. Não digo “se opor” num sentido fácil e nem sequer bélico. Quero dizer apenas que antes de rechaçar (e nomear) determinados modos de fazer, penso ser preciso conversar com tal modo de fazer, aprender como se movimentam suas engrenagens. Tudo isso para que, tendo se aproximado de um modo dominante de produção, se possa descobrir como jogar com ele, jogar a partir dele, jogar contra ele e junto a ele; através, para atravessá-lo. Brota, assim, uma sucessão de movimentos possíveis.
E são movimentos que não estão prontos nem estarão. É sempre um limite. Consegue-se e já se perde novamente. Pois pensar modos de produção é estar sempre atrelado a uma atualização incessante. Penso que o Inominável está sempre pensando e praticando essa inconstância, esse modo de gestão: sempre fazendo, desfazendo, experimentando, conhecendo, somando… A gestão não é um lugar apaziguado e estável. Pelo contrário, é o reino da indefinição e, pensando assim, é fundamental fazer com que essa instabilidade faça corpo conosco e não vire um mero negativo. Essa impermanência não nos apavora mais: ela passa a nos constituir crítica e politicamente porque nos possibilita dialogar com os mais diversos agentes culturais da nossa cena artística.

Encontro do Núcleo de Dramaturgia SESI | Foto – André Gomes de Melo | #4ParedeParaTodos #PraCegoVer – Em uma sala de aula iluminada e com paredes amareladas, do lado esquerdo, alunos do curso sentados ditante de uma mesa com papéis e canetas. Eles, de costas para nós, olham para o professor, Diogo Liberano, homem de cabelo e barba negros, usando camisa branca e jeans azul, e para um flipchart com alguns escritos relacionados à dramaturgia – Prólogo, Entreato, Cena, Epílogo etc..
Sobre tua participação no SESI Dramaturgias, como foram os processos criativos e os desdobramentos no site-diário Dramaturgia em Núcleo? E, pensando teu lugar como dramaturgo, como tu acredita que outros dramaturgos podem encontrar ou fomentar meios de ver seus textos serem produzidos sem necessariamente se engajar em pesquisas de grupo?
Eu assumi a coordenação do Núcleo de Dramaturgia SESI Cultural no final de 2016. Em 2017, começou a terceira turma do Núcleo que foi composta por 15 autoras/autores e desenvolveu suas atividades durante dez meses. A criação do site-diário Dramaturgia em Núcleo (acesse AQUI) veio como uma necessidade mesmo, como uma aposta de fazer com que algumas discussões que a gente desenvolve no Núcleo pudessem se esparramar um pouco mais. Meu interesse com o site-diário é fazer dele mais do que um local de registro dos processos criativos realizados com as turmas do Núcleo, mas também fazer desse espaço virtual um ponto de compartilhamento sobre a pesquisa e a criação dramatúrgica para outras pessoas que tenham interesse nessa discussão. Acredito que com o tempo, teremos uma plataforma que reunirá um pouco mais sobre a dramaturgia contemporânea no Brasil.
Sobre a questão da criação de dramaturgias e a sua relação com grupos de teatro, acredito que uma coisa não precisa estar, necessariamente, vinculada à outra. Por exemplo, eu sou um dramaturgo que escreveu muito mais para fora de minha companhia do que para dentro dela. No entanto, sem dúvida, a vivência em companhia é o que me fortalece a existir como artista fora da companhia, pois ao estar em companhia eu estou, constantemente, aprendendo a como me relacionar e criar com o outro. É uma prática de alteridade e colaboração. Por isso, o Núcleo de Dramaturgia SESI Cultural, para mim, acaba se tornando um tipo outro de companhia. Uma companhia temporária, com duração de dez meses, previamente definida.
Ali, em Núcleo, experimentamos a escrita em roda, entramos em discordância o tempo inteiro, vemos outros pontos de vista e outros tipos de escrita e, então, nos flagramos naquilo que o Núcleo almeja ser: um espaço-tempo propício não apenas à criação, mas, sobretudo, à pesquisa. Eu acho que esse espaço é único, onde vejo no outro as minhas questões, as minhas dificuldades etc. Porque, às vezes, a maneira como o outro vê o meu texto me ensina algo que não estava na minha intenção e, quando eu olho para o texto do outro, posso também revelar a ele novas questões.
No Mestrado em Artes da Cena na UFRJ, a tua pesquisa trata do Teatro Inominável e alinhava questões em torno de modos de produção como modos de criação (ou vice-versa). O que te atraiu nessa questão que te conduziu a transformá-lo em objeto de investigação acadêmica e como foi que você a desenvolveu?
O meu projeto originalmente não tinha nada a ver com o que ele se tornou. Meu desejo era investigar as relações entre teatro e performance no percurso da companhia Teatro Inominável, orientado pela professora Eleonora Fabião. Nesse caminho, fui percebendo aquela primeira questão em que tocamos, ou seja, fui descobrindo como a performance cada vez menos me soava uma linguagem e cada vez mais me parecia um chamado ao corpo, um chamado que me solicitava uma honestidade muito radical em relação ao que eu estava criando num determinado momento e como tal criação conversava (ou não) com o mundo. Foi quando eu comecei a ver que, ao falar sobre performance e teatro a partir da experiência do Teatro Inominável, eu estava falando sobre criação (sobre como isso afetou nossos modos e maneira de criar), falando sobre relação (como isso intensificou as nossas dimensões relacionais, seja entre nós ou entre outros artistas) e, por fim, falando sobre como isso modificou drasticamente os nossos modos de produção (afinal de contas, como fazer para que coisas aconteçam?).
Na minha dissertação, intitulada Teatro (Inominável) – Modos de Criação, Relação e Produção, busco analisar como esses “modos de” da companhia acabaram se tornando operações extremamente nascidas diretamente da experiência de nossos corpos quando em trabalho de criação. O que me interessou foi perguntar de que maneira minha dissertação poderia contribuir. Contribuir para a reflexão e a prática artística do momento em que vivemos. Nesse processo, percebi com bastante vigor uma qualidade do Inominável: fizemos um pacto – faz muitos anos – com a instabilidade, com a dificuldade, com os abismos todos.
Por estarmos próximos daquilo que nos desorienta, substituímos o medo pelo desejo; o que nos move ainda é aquilo que desejamos. Ao nos permitirmos desejar, mais do que fazermos brotar cenas e dramaturgias novas, fazemos com que nossos corpos estejam amarrados às criações. O corpo é a morada do desejo. Fazemos o que fazemos porque importa, primeiro, para nós. E, se importa para nós, acreditamos, talvez possa importar para outras pessoas e para o mundo. É sempre uma questão de risco, é preciso experimentar. Acredito que essa dissertação possa servir para artistas e outros grupos que, assim como nós, estão se perguntando sobre como continuar, como sobreviver no ofício das artes cênicas e, sobretudo, pertencendo de maneira crítica ao nosso tempo presente.
O Inominável nasce na universidade e faz um caminho para a ocupação da cidade, trajetória que nem todos os grupos conseguem fazer tão facilmente. Como tu percebe a pesquisa e formação em artes cênicas na universidade alimentando (e/ou transformando) certas demandas de mercado das artes cênicas no caso do Rio de Janeiro?
Num primeiro momento, quando você está dentro da universidade e cria um exercício para apresentar na sala de aula, logo surgem demandas praticamente imediatas: você quer que mais pessoas possam ver aquela sua nova criação e, num segundo momento, ou talvez ao mesmo tempo, surge um medo profundo e uma insegurança muito violenta que te faz duvidar da qualidade artística do seu trabalho, como se ele não fosse suficientemente “profissional” para ser mostrado em temporadas pela cidade.
No caso do Inominável, isso nos aconteceu, porém, muito rapidamente, compreendemos que era preciso se colocar em risco. Nós não nos permitimos esse atravancamento: criamos uma peça e, cinco meses depois de sua estreia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), estávamos em cartaz num teatro público, gastando um dinheiro que nem sequer tínhamos direito, aprendendo a produzir tudo o que uma peça, quando em cartaz num teatro, demanda.
Acredito que esse seja o ponto nodal da questão: podemos temer “entrar” no mercado por achar que não temos qualidade para isso ou, simplesmente, podemos nos arriscar. Quando se opta pelo risco, a própria noção de “qualidade” se desmantela por si só. Não há o mercado, não há o gabarito daquilo que é uma peça boa ou não; tudo o que há são possibilidades e, para um artista, eu acredito, é somente experimentando essa variedade de possíveis que se fortalece mais e mais para os desafios de cada nova criação. Assim, no percurso da companhia (que em 2018 completou nove anos de criação e pesquisa), fizemos de muitas formas: conseguimos, não conseguimos, recebemos críticas boas e negativas, abrimos e fechamos portas, perdemos, quebramos nossas caras, brilhamos, fomos lembrados e esquecidos, enfim, estivemos vivos o tempo todo e, hoje, já com várias cascas, vários saberes adquiridos por experiência.
Nesse sentido, não tenho dúvidas, a Universidade nos assegurou o mais importante: o gosto pela experimentação. Ela, por ter sido onde surgimos, nunca foi um motivo de vergonha, nunca foi algo que tínhamos interesse em esconder; a Universidade sempre nos foi a força que afirmou o nosso destemor e o nosso desejo (de investigar, de criar, se mostrar, de errar e fazer de novo, errar e fazer melhor). Quando “entramos” no mercado de trabalho, entramos com as criações que havíamos feito na Universidade. Com tais criações, oferecemos uma série de perguntas ao dito “mercado” e, quando nele, recebemos também uma série de desafios.
Coube a nós fazer esse balanço e construir esses diálogos. Ao mesmo tempo em que vejo grupos surgindo na universidade e influenciando criações e práticas no mercado de trabalho, também vejo um mercado que influencia e fomenta ações que acabam por chegar às universidades. Por tudo já dito, seria bastante ingênuo polarizar universidade e mercado como se fossem categorias estanques e rivais. São apenas modos de fazer, nem propriamente e unicamente modos opostos entre si. São modos distintos e, cada um a seu modo, modos disponíveis ao encontro, ao diálogo e à criação.