#05 Arte e Mercado | Sobre Bibi, Ariane e a produção teatral como missão de vida

Imagem – ‘Take Shape’ – Ballet Memphis e Arquivo Pessoal | Arte – Rodrigo Sarmento
Nosso dossiê Arte e Mercado continua com uma entrevista inspiradora e emocionante com Deolinda Vilhena, Professora da Escola de Teatro e do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGAC/UFBA), ao nosso editor-chefe, Márcio Andrade. Seu currículo inclui Mestrado e Doutorado em Théâtre et Arts du Spectacle (Université de la Sorbonne Nouvelle-Paris III), Mestrado em Artes Cênicas (ECA/USP) e Graduação em Jornalismo (Faculdade da Cidade), com estágios de Pós-Doutorado na Université Paris Ouest Nanterre La Défense – Paris X.
Com anos de experiência na produção de espetáculos teatrais com artistas como Bibi Ferreira e Clara Nunes e de pesquisas envolvendo os modos de produção do Théâtre du Soleil, de Ariane Mnouchkine, Deolinda vem sendo responsável por capitanear um pensamento em torno da Produção Teatral como área de conhecimento. Este esforço visa preencher uma lacuna que se faz bastante presente nas formações do artista cênico de maneira geral, que, ao enfatizar boa parte de suas disciplinas nas questões estéticas, termina ignorando a importância de aliar este pensamento às condições de produção.
Como a produção no teatro apareceu na tua vida como prática profissional, objeto de investigação e, talvez, missão de vida?
Eu acho que eu tenho muita sorte de ter descoberto muito cedo o que eu queria fazer, porque, quando se sabe muito cedo, você tem como se articular e eu tenho uma coisa de traçar metas. Sem dobrar essas metas, não precisa dobrar nada (risos). Então, aos 12 anos de idade, eu já queria ser pediatra ou ginecologista obstetra. Aí, me levaram ao teatro pela primeira vez, fui assistir O Homem de La Mancha, com Bibi Ferreira e Paulo Autran e Grande Otelo, dirigido por Flávio Rangel. Quando acabou o espetáculo, eu olhei para os meus pais e disse que mudei, que queria fazer aquilo que eu assisti e trabalhar com aquela mulher. Eu não sabia o termo “produção”. Então, meus pais perguntaram se eu queria ser atriz. Eu disse ‘eu não!’. Eu achava pouco ser atriz. Eu queria construir aquilo tudo e fazer acontecer. O que me interessava era o que estava por trás do cenário e do figurino, era exatamente a produção. Um ou dois anos depois, conheci esse termo a partir do Sandro Polônio, que, para mim, foi o maior produtor que o Brasil já teve.
Então, comecei a me organizar e, aos 17 anos, eu já estava trabalhando na Cia Maria Della Costa como assistente de produção de Sandro, administrando a produção de uma companhia que existia desde a década de 40. Normalmente, as pessoas que se aproximavam deles queriam ser atores ou atrizes e eu era a primeira maluquinha que queria fazer produção. Então, Sandro se apaixonou pela ideia de formar alguém na produção, área que ele deixou a atuação para trabalhar. Em março de 1981, eu conheci Bibi e comecei a trabalhar com ela por 17 anos da minha vida, sendo assessora de imprensa, administradora, produtora, camareira, babá… (risos) Fui tudo de Bibi.
Era uma época onde a produção tinha um cunho muito mais informal – o teatro que eu aprendi a fazer com a Maria, o Sandro, a Bibi, a Rosamaria Murtinho, o Mauro Mendonça. Eu aprendi a fazer teatro com pessoas que, hoje, têm entre 80 e 95 anos de idade, formaram todas as gerações posteriores e conseguiram o que a atual geração não consegue: viver de teatro. Nós íamos pelo Brasil passando o chapéu e conseguindo fazer as coisas, viajar infinitamente. Então, eu me formei na prática, trabalhei em coisas maravilhosas e me construí enquanto ser humano e profissional em um mundo que era meio que um “faz de contas”. Quando eu saí da Cia. da Maria, passei pela companhia da Rosamaria Murtinho, e aos 21 anos, fui trabalhar com a Clara Nunes, a maior vendedora de discos do Brasil na época. Nos dois últimos anos de vida dela, fui assessora de imprensa, secretária particular e produtora de shows.
Então, uma das minhas maiores alegrias é dizer que conheci o meu país do Oiapoque ao Chuí fazendo teatro e ainda tive a oportunidade de aprender e trabalhar com os meus ídolos, mas isso não vem por acaso: surge lá atrás quando eu disse que, aos 12 anos, resolvi fazer teatro e pude me planejar com disciplina. Meus alunos dizem que essa coisa de disciplina e planejamento corta a criatividade e eu respondo ‘Nananinanãão! Aí que você está enganado. Quanto mais você se organiza, quanto mais você planeja, mais tempo você consegue ter livre para poder realizar o que quiser’. Claro que tem todo um misto de paixão, óbvio! Ao mesmo tempo que ganhei muito dinheiro, também perdi muito dinheiro. Mas eu nunca investi dinheiro meu em teatro. Jamais faço isso. Teatro é para se produzir com dinheiro dos outros, sempre. Essa é a primeira lição de produtor. [risos]
Mas eu comecei a pensar que, quando chegasse aos 50 anos, não gostaria de estar fazendo somente produção. Estava cansada de, todos os domingos, fazer mala para viajar, de ter estreia todas as semanas, de estar responsável por viajar com 120 pessoas etc.. Então, eu parti para universidade. Durante esses anos todos afastada da academia, eu não tinha conhecimento sobre mestrado ou doutorado, só tomei conhecimento disso anos depois quando resolvi voltar. Então, eu deixei de ser produtora da Bibi para ir a São Paulo fazer mestrado e, durante dois anos, fui mestranda sem bolsa, fazendo uma pesquisa sobre a Bibi Ferreira para depois tomar o rumo da França e pesquisar o Théâtre du Soleil, primeiro um mestrado e depois uma tese de doutorado, e o mundo se abriu.
Eu tenho uma facilidade de me comunicar com as pessoas, uma cara de pau que o jornalismo me deu, uma desenvoltura que na minha vida de produtora só fez com que ela saísse cada vez mais. Você tem que apostar. Então, passei a enxergar o meu fazer como uma missão. Passei a achar que tinha a missão de formar e trazer para a universidade uma linha de pesquisa nova, um campo de interesse novo. Porque não cabia na minha cabeça que em um lugar onde se pensava o teatro, ninguém se preocupasse com a importância do fazer teatral no campo da produção e, hoje, fico muito contente em saber que eu vou fazer sete anos de UFBA, nesse tempo, formei seis mestres em produção.

Imagem de ensaios de ‘O Homem de la Mancha’, com Murilo Alvarenga, Bibi Ferreira, Flávio Rangel e Paulo Autran | Foto – Reprodução G1 | #4ParedeParaTodos #PraCegoVer – Imagem em preto e branco. Do lado esquerdo, homem com cabelos grisalhos e camisa listrada segura uma folha de papel. Ao centro, uma mulher de blusa e cabelos negros ouve atentamente outro homem, o diretor, que fala indicações aos atores. Ao fundo, do lado direito, outro ator, também com cabelos grisalhos, escuta a todos.
Como foi o processo de transformar um fazer tão prático em uma área de conhecimento? Quais as suas estratégias e como você costuma abordar?
Eu precisava sistematizar o que eu tinha aprendido em quarenta anos de produção teatral em disciplina para sala de aula, precisando responder a uma série de coisas que eu mesma não sabia o que era. Eu tive uma bolsa da FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa do estado de São Paulo – por dois anos no pós-doutorado para criar uma disciplina no CAC – Centro de Artes Cênicas da Escola de Comunicações e Artes da USP, experimentando como aquilo poderia ser ensinado, mas também me conscientizando que eu sou uma produtora dando aula de produção. Eu não sou uma teórica de teatro. Eu li tudo que você possa imaginar, li tudo que eles me pediram para ler e fazer o concurso, mas eu não sou uma teórica e nem reivindico esse lugar de especialista. Eu sou uma mulher de teatro, uma produtora que é capaz de ensinar a fazer produção, buscando na administração, na economia ou na sociologia tudo que possa nos servir para tratar dessa disciplina. Se, quando fazemos pesquisa em artes cênicas, não encontramos metodologias específicas para a pesquisa em artes e usamos métodos de ciências sociais, ciências humanas, imagine como fazemos para a área de produção.
Então, sempre temos que criar e ir executando. Você não pode ensinar a fazer produção se você nunca produziu. Por exemplo, a diferença entre um ator que dirige e um diretor que não atua é muito grande! Quando eu pego um aluno, eu quero saber qual é projeto de vida dele e digo “Não entre em um edital com qualquer projetinho, entre com um projeto de vida!” Porque ele vai ter muito mais chance de dar certo do que qualquer projeto que se cria apenas para concorrer, sabe? Uma vez, uma aluna fez um projeto de cinema na minha disciplina sobre produção para teatro e eu aceitei porque ela me disse que era um projeto essencial para ela. Aí, um mês atrás, ela me liga dizendo que o curta desse projeto foi aprovado em um festival internacional de cinema no México. Então, eu não acredito que estou errada, por mais que as pessoas tentem falar que eu não tenho foco acadêmico. Para mim, foco acadêmico é saber que o meu aluno está empregado e desenvolvendo os seus projetos naquilo que ele queria fazer.
Uma das coisas que mais me deixa triste na vida é acordar de segunda à sexta as cinco horas da manhã para dar aula às sete horas e, no final do ano, achar que estamos formando uma leva de desempregados, porque não existe um mercado para toda essa mão de obra que a gente forma. Então, creio que cabe a nós darmos os instrumentos para que eles possam conseguir se inserir no mercado. Porque fazer ‘arte pela arte’ não paga a conta, não alimenta, não faz nada. Quem faz arte pela arte tem que ter emprego no shopping de balconista, de vendedor. Não precisa ser assim. Eu trabalho com teatro, eu vivo de teatro. Foi possível comigo que nasci em Belém do Pará, no raio que o parta. Hoje, eu circulo nos eixos de Paris, Rio, São Paulo, Salvador, com um grupo de grandes incentivadores do que eu faço, que foram conquistados em 41 anos de trabalho. Mas, para se chegar a isso, é preciso ter planejamento, organização e disciplina.

Imagem do espetáculo ‘Bibi Canta e Conta Piaf’ | Foto – William Aguiar | #4ParedeParaTodos #PraCegoVer – Imagem colorida de mulher usando vestido preto e uma capa azulada canta diante de um microfone em um palco negro.
Como você percebe as contribuições que a formação da Escola de Teatro da UFBA vem trazendo na formação do artista de teatro na Bahia, mais especificamente no campo da produção?
A Escola de Teatro da Bahia é a primeira escola de teatro da América Latina dentro de uma universidade. Há mais de 60 anos forma atores, diretores e fomenta o teatro baiano. Existe muito antes da minha chegada.
Minha contribuição é diferente da dos meus colegas. Por exemplo, uma das minhas alunas de graduação, Fernanda, é atriz, mas, desde cedo, se interessou por produção e, hoje, ganha mais dinheiro produzindo, fazendo produção para os outros, mesmo que ainda não esteja produzindo para ela. Então, começo a perceber que muitos alunos se tornaram grandes produtores e estão produzindo seus trabalhos e virando ratos de edital (risos). E sabem se preparar porque eu levo o edital para a sala de aula e digo ‘Eu não quero ensinar a você a preencher formulário, porque muda todo ano. Quero que você comece a pensar a produção num diálogo com o artístico, questionando o que está ali e ver o que você pode oferecer’. Uma vez eu vi Ariane Mnouchkine dizendo que, quando não pode ser contra o sistema, você pode usá-lo a seu favor. Então, é isso que eu tento mostrar para eles. Não venha com historinha que ‘não gosta disso ou daquilo’! Mas, se é isso que vai te aproximar do teu sonho, vamos embora! Eu também não gosto de muita coisa, mas a gente tem de engolir uns sapos. Mais do que eu gostaria, mas vamos fazendo.
Quando eu entrei na UFBA, há quase sete anos, muita gente achava que eu era maluca: as pessoas não conseguiam entender o que hoje está em vias de se tornar uma linha de pesquisa. Quando eu vejo engenharia de produção, engenharia disso e daquilo, economia da cultura, economia criativa, dou muita risada e sou radicalmente contra que essas áreas usem o teatro como um braço e não que o teatro se sirva dessas áreas em seu beneficio próprio. Eu acho que produtor de teatro tem que ser gente de teatro. Eu não quero que o teatro seja um galho da economia, mas que a gente use da economia para o que nos for necessário e sem se tornar um refém. Eu sou radicalmente contra o amadorismo (não no sentido de paixão, pois eu acho lindo), porque eu faço teatro para viver dele. Então, é só uma questão de você saber o que você quer. Existe uma coisa no meio teatral: não se pode falar em dinheiro, como se fosse uma coisa que ‘sujasse’ a arte. A gente acaba fazendo muito isso: para não ter de comprar as coisas, leva roupa de casa para o figurino, pega o cenário da casa da vizinha e não percebe que, fazendo isso, você vai contra a profissionalização da sua arte.
Não digo que não seja para ninguém fazer , porque tem lugares que, se não for assim, ninguém faz teatro. Mas, se a gente busca o profissionalismo, a luta da gente tem que ser para que um dia isso acabe. Eu não quero fazer de todo ator um produtor, mas que ele entenda a necessidade de um produtor, e saiba também administrá-lo. Se você não sabe fazer, você não sabe mandar, porque eu conheço muita gente que entregou tudo na mão de um produtor e se deu muito mal. Muitas vezes, as pessoas preferem ficar no amadorismo a entrar no profissionalismo, porque ele traz responsabilidades, mas pode evitar problemas muito mais graves.

Imagem de espetáculo ‘Os Náufragos da Louca Esperança’, do Théâtre du Soleil | Foto – Michèle Laurent | #4ParedeParaTodos #PraCegoVer – Imagem colorida de um palco repleto de pessoas vestidas como imigrantes europeus no início do século XIX (uns, deitados no chão; outros, em pé), com neve e folhas de papel espalhadas pelo cenário.
E como você acha que o artista pode conseguir essa fidelização de público para depender menos dos editais? Como você acredita que a gente pode fazer isso?
Para mim, esse é um debate que deveria ter lugar diariamente com o pessoal que faz teatro, porque o maior crime que se cometeu contra o teatro no Brasil foi a implantação das leis de incentivo nos moldes em que foram criadas. Se você fizer uma retrospectiva, desde 1985, quando foi criado o Ministério da Cultura, em 1986, a lei Sarney e, na sequência, a Rouanet, não se trabalha de formação de plateia. Quando a gente fala, em “formação”, as pessoas entram em pânico, achando que vão formatar a cabeça das pessoas. Mas eu colo em Bourdieu e explico: as pessoas não podem desejar aquilo que elas não conhecem. Então, você não pode querer ir ao teatro se ninguém nunca te disse como é ir ao teatro. Então, no Brasil, desde 1985 não se fala em formação de plateia e se trabalha pela gratuidade. Eu sou ra-di-cal-men-te contra ingresso gratuito no teatro porque alguém tem que pagar. Se o Estado quer dar ingresso gratuito a alguém, ele que pague à companhia os ingressos. Quando o espetáculo foi feito 100% com dinheiro público, esse espetáculo deve ser gratuito. Mas e se não foi? Se você parar para pensar, a gratuidade afasta as pessoas do teatro porque o ingresso que vende primeiro, em todo espetáculo, é sempre o mais caro. Por quê?
Meu sonho de consumo é que as pessoas façam poupança para comprar ingresso de teatro, do mesmo jeito que elas fazem para comprar abadá para o carnaval de Salvador ou uma fantasia para as escolas de samba no Rio de Janeiro. Aí, a gente repete aquele chavão de que “Ingresso de teatro tem que ser ‘dez real’, porque se não for ‘dez real’ é caro.” Desse jeito, você não prepara essas pessoas. Quando vejo essas coisas, me lembro de Esther Grossi, secretaria de educação de Porto Alegre, que, quando eu cheguei com o espetáculo de Bibi em Porto Alegre, me procurou e comprou mil ingressos para distribuir entre os professores. Ela queria que os professores despertassem o interesse nos alunos em ir ao teatro e a gente nunca tinha pensado nisso, porque somente pensávamos em beneficiar os alunos. Uma vez, a Mnouchkine me disse uma coisa linda: “O público é o único verdadeiro mecenas, porque se conquista”. Quem tem o público, não precisa de dinheiro público. Talvez você precise de uma cota de patrocínio, mas é diferente.
No caso do Brasil, a gente tem muita coisa que complica, porque, na Europa, existe uma tradição de ir ao teatro há milênios, porque a televisão e o cinema surgiram no início e na metade do século XX. Então, na Europa, tiveram mil anos para se acostumar a ir ao teatro e a gente não teve isso tudo. A gente vive em um país com 517 anos em que se pode começar a contar uma existência mais real somente a partir de 1808, com a chegada da família real no Brasil, porque é quando se inicia uma formação cultural teatral, por exemplo. Não vou negar a chegada do Padre Anchieta, mas, de qualquer forma, não tivemos tempo para isso. Ironicamente, no início do século XX, as pessoas iam ao teatro quatro ou cinco vezes por semana e tínhamos temporadas de segunda a segunda. Hoje, se fizer espetáculo sexta, sábado e domingo, já é muito. Então, o que fizeram com o público? Puseram para fora do teatro. Porque, quando você passa a ter leis de incentivo fiscal, não se pensa mais no público: você põe tudo que precisa no orçamento e já está pago.
Anos atrás, Fernanda Montenegro e Bibi Ferreira hipotecavam o único apartamento que elas tinham para fazer um espetáculo. Hoje, os atores de televisão pagam os espetáculos de teatro com o dinheiro da novela. Quando você hipoteca a sua casa para fazer teatro, você tem duas opções: ou vai morar embaixo da ponte ou vai atrás do público. Bom, acho que é mais fácil ir atrás do público. Agora, a gente termina sendo uma classe tão desorganizada em termos de representatividade que somente me lembra uma frase de Júlio Cesar Pereira no livro Três vinténs para a Cultura: ‘Não há vontade política que sobrepuje à desarticulação de um setor’. Nosso principal problema é desarticulação, porque existe incentivo fiscal para automobilismo e agricultura, por exemplo, mas parece que somente nas artes que funciona desse jeito. A gente não sabe se unir porque parece que “para farinha pouca, meu edital primeiro”. A gente não bate de frente com o governo porque fica com medo de não ser aprovado depois. Sei que generalizar é complicado, mas existem grupos que fazem um grande trabalho no Brasil, como o Grupo Galpão, mas a maioria deles fica em cima do muro.
Então, se eu escolhesse um campo de atuação hoje, seria formação de plateia, indo além das ações de mediação cultural. Eu fico desesperada quando vejo espetáculos em que as pessoas trabalham seis meses ou um ano para ficar duas semanas em cartaz e, depois, morrem. A gente incentiva muito mais a produção do que a difusão. Quando eu trabalhava na produção da peça Piaf – A Vida de uma estrela da canção, rodamos por 56 cidades, mas, hoje, com as leis de incentivo, os captadores de recursos ganham 15 ou 20 por cento de comissão em cada espetáculo em que ele consegue patrocínio. Ou seja, o sujeito acha melhor aprovar todo ano cinco trabalhos na produção do que investir na durabilidade e difusão de cada trabalho. Tá todo mundo querendo circular ao mesmo tempo e não se tem organização: não se mapeiam lugares que ninguém nunca foi, ficamos no mesmo circuito. Todo mundo quer vir para São Paulo (que não tem mais lugar para ninguém) ao invés de fortalecer o mercado do seu lugar. Então, porque a gente não esquece esses grandes centros e se foca em transformar o seu local em um centro consumidor e formador de teatro?
Lotar teatro deveria ser projeto de vida de toda gente que faz teatro. As pessoas têm um desprezo pelo público que me incomoda. Em 2007, o Itaú Cultural fez um evento sobre teatro em São Paulo e, no quinto dia do evento, uma pessoa falou que estava achando engraçado estarmos reunidos há cinco dias, falando de teatro e sem ouvir a palavra ‘público’. Então, para quem a gente está fazendo teatro? O financiamento das leis de incentivo te permitiu não correr atrás do público e, desse jeito, você afastou aquele que pagaria o ingresso dele porque já está tudo pago. O artista deixou de dialogar com o público porque ele não sabe mais para que público quer falar. As pessoas veem tanta experimentação que decidem não ir mais ao teatro para dialogar com alguém: ele vai procurar o pastor evangélico ou qualquer outro que esteja falando a língua dele. Parece que está todo mundo preocupado com o teatro que pode ser feito, com a performance e não sei o quê, sem saber se é isso que o público está querendo e precisando.
Eu digo sempre aos meus alunos ‘escolha o tipo de teatro que quer fazer e defina seu público’, porque tem mercado para todo mundo. Não precisa existir essa ideia de somente valorizar um grande grupo como Vertigem, por exemplo. Se você quer fazer stand up ou Malhação, pode ir em frente! Porque tem muito teatro de pesquisa péssimo e tem muito stand up que poder ser muito bom sim! Agora você decide se quer fazer bom ou ruim.

Ariane Mnouchkine, criadora do Théâtre du Soleil | Foto – Catherine Vilpoux | #4ParedeParaTodos #PraCegoVer – Imagem colorida de mulher com cabelos curtos e grisalhos, usando camisa branca e sorrindo.
Como funcionava a fidelização no Teatro de Soleil, como a Mnouchkine trabalhava no modelo de gestão dela que a gente poderia trazer para o Brasil?
É a coisa mais linda que se pode imaginar: uma história de amor sem fim, recíproca e verdadeira. Eles começaram a fazer um fichário com os nomes das pessoas que iam comprar ingresso: eles começaram com 2.500 nomes e, em 2006, tinham quase 30.000. Se você se cadastrar no site deles, você recebe cartas com notícias do que o grupo vem fazendo, pedindo ajuda para comprar selo, pois custa muito mandar cartas para o mundo inteiro ou avisando que vão fechar por um ano para pagar dívidas.
Criou-se uma relação com o público como se eles fossem parte integrante da história e que ele se sentisse responsável pelas conquistas e problemas do Soleil. Tem histórias como a de uma senhora que ganhou uma causa trabalhista e doou todo o dinheiro que ganhou para o Soleil ou a de um casal italiano que, anualmente, doa uma quantia em torno de 15mil euros, por exemplo. Então, a fidelização do público é tão forte que, geralmente, eles estreiam com três meses de lotação esgotada. Claro que se trata de um trabalho muito duro, porque existe um departamento de relações com o público.
Lá, por exemplo, não existe meia entrada: existem comitês que pagam as metades dos ingressos vendidos para funcionários de empresas. Aqui, a meia faz uns se beneficiarem em cima de outros, porque não existe ninguém pagando. Imagina pagar meia entrada em um restaurante ou em um dentista? Por que nós, da cultura, fazemos isso? No Soleil, eles fazem o seguinte: 100 ingressos por noite para os alunos dos Liceus (algo como nosso Ensino Médio), custando 10 euros. Esse é o investimento de futuro que eles fazem e um trabalho que já leva uns 50 anos. Claro que eles têm uma sociedade e um estado que favorecem, mas a subvenção deles cobre somente 30% do orçamento, pois 70% está na bilheteria. Ou seja, se não houver público, eles estão na rua da amargura, mesmo com 1 milhão e 700 mil euros de subvenção.
O público é tratado como um deus, porque, na entrada da Cartoucherie, a Ariane te recebe, você escolhe seus lugares, descansa, pode tirar o sapato para fazer um relaxamento, se serve no bar com uma bebida temática de acordo com o espetáculo etc.. Então, isso cria uma proximidade muito grande com o publico em geral e com os jovens de 16 e 17 anos em particular. Eles também fazem sessões especiais nas noites de Natal e Ano Novo que acabam no dia seguinte pela manhã, com um grande café da manhã, fazendo desse público uma grande família e valorizando a sua presença.
O Théâtre du Soleil é um teatro privado administrado como se fosse público. Seu estatuto jurídico é uma sociedade cooperativa em que todos recebem o mesmo salario, do porteiro à Ariane. Todos ganham o mesmo salário. Não há divisão de tarefas e não existe primeiro ator, pois os papéis podem ser feitos por todos. De fato, é realmente uma forma bem generosa de trabalhar, mas, obviamente, exige muito de todo mundo: chegar ao trabalho às 09h da manhã e nunca sair antes da meia noite é um trabalho puxado, mas é o preço que se paga pela liberdade criativa que conquistaram. Ela não aceita patrocínio porque acredita que, dessa forma, daria motivos para o estado se desresponsabilizar da cultura. Ela somente aceita patrocínio em viagens e, mesmo assim, existe uma lista de empresas que ela não aceita, como empresas que apoiaram nazismo, empresas de bebida etc..
Então, o Soleil trabalha com uma série de restrições que faz parte de uma ética e um modelo que funciona para o contexto deles. Dificilmente, a gente conseguiria reproduzir porque Ariane é o eixo desse funcionamento, mas podemos ‘copiar’ algumas coisas, adequando as nossas realidades, como alguns grupos do Brasil: Clowns de Shakespeare, Bagaceira, Galpão etc.. A possibilidade de produzir um teatro diferente, para mim, se dá a partir de um tripé, defendo isso na minha pesquisa: conquista de uma sede, existência de uma equipe e a fidelização de um público.