#06 Festas e Rituais | Dos rituais do riso e os motins ao prosaico
Imagem – Arquivo Pessoal | Arte – Rodrigo Sarmento
‘O riso tem muitas camadas políticas, assim como toda a história de sua condenação. A calendarização da alegria no Carnaval parece refletir o poder no corpo do indivíduo que associa o riso à futilidade, mas o entendemos também como espaço de suspensão e reação política’. Nosso dossiê Festas e Rituais ganha outros contornos a partir de uma entrevista com Roberta Ramos (Coletivo Lugar Comum | UFPE) ao nosso editor-chefe, Márcio Andrade.
A partir do lançamento do livro MOTIM: paisagens e memórias do riso, publicação organizada por Conrado Falbo, Liana Gesteira e Roberta Ramos que revela o processo criativo do espetáculo homônimo desenvolvido pelo Coletivo Lugar Comum em 2014 e reúne anotações criativas feitas durante a criação, imagens dos laboratórios, oficinas e apresentações, além de um CD com as paisagens sonoras criadas como trilha, depoimentos dos artistas e dos transeuntes espectadores.
Tomando como ponto de partida o espetáculo MOTIM e as ideias do riso como memória, ação física e contágio, essa conversa procura compreender as conexões possíveis entre as potencialidades desse gesto de rir e a construção de espaços de suspensão dentro dos ritos e festividades.
Como vocês do Coletivo chegaram no riso como investigação teórica e artística?
Eu tinha um interesse latente pelo riso, e um dia li uma matéria na Galileu sobre um historiador que havia lançado um livro sobre epidemias – da dança e do riso – que estavam relacionadas à religiosidade, histeria e contágio. Achei interessante e comecei a me aprofundar, buscando outras referências e outros vieses do riso, para desenvolver como projeto artístico, que, a princípio, ainda não sabia o que seria.
Depois, também, lendo um livro chamado Corpos Indisciplinados: Vida performativa em tempos de bipolítica, de Lúcia Oliveira, deparei-me com a potência de mutirões, motins, ações em massa como ações performativas na rua. Propus ao Coletivo e, a partir das leituras de várias perspectivas teóricas diferentes (Psicanálise, Filosofia, Neurociência, Antropologia), encontramos três eixos de investigação para desenvolver a performance artisticamente como resultado dessa pesquisa: o riso como fisicalidade, o riso como memória, o riso como contágio.
Fala um pouco mais sobre como o livro Motim – Paisagens e memórias do riso está estruturado. É uma coletânea de artigos, entrevistas, notas de processo?
Também. O livro reúne seis textos (não podemos, nem queremos talvez, chamar a todos de artigos) de performers em Motim; imagens (fotos de ensaio e de apresentações, notas de processos; ilustrações da designer (que também foi performer de Motim na primeira montagem); um CD com áudios das “paisagens sonoras” (como são chamadas as peças que compõem a trilha sonora de Motim) e depoimentos do público e de alguns dos performers.
Como essa pesquisa se relaciona com os outros trabalhos de vocês?
Indiretamente com todos, pelo modo de operarmos na criação, no convívio, no modo de ir construindo, afetiva e sensivelmente, nossa rede de conexões criativas, etc. Mas, relaciona-se, mais diretamente, com outra pesquisa, chamada Trânsito Coletivo, que aconteceu paralelamente à pesquisa de Motim, e que investigava o corpo nos lugares de passagem.
A relação de aprofundamento com estar na rua, lidar com outras lógicas de lidar com o público transeunte, o acaso, a impossibilidade de controlar o que acontece, interessou às duas pesquisas. E, de certa forma, penso que esse é um ponto que continua interessando vários membros do Coletivo para além dessas duas experiências.
Além da pesquisa em si, vocês levam o Motim para apresentações em espaços públicos, entendendo o riso como um contágio. Como o estar na rua potencializa questões que vocês tinham nas salas de ensaio?
Estar na rua potencializa o que temos na sala de ensaio precisamente desestabilizando e fragilizando nossas hipóteses construídas na sala de ensaio, que foi usada apenas para parte do processo, para trabalhar com laboratórios, algumas estruturas, estados. Boa parte da nossa sala de ensaio (percebemos cedo que tinha que ser assim) foi mesmo a rua.
O riso possui uma relação muito intensa no cotidiano, mas também na alegria das festividades e celebrações, com alguns autores falando em ‘riso ritual’ ou ‘riso festivo’ quando investigam as raízes desse gesto na Antiguidade e no Medievo. A partir das pesquisas de vocês, como vocês veem o riso como ato político na quebra ou distorção de determinados papéis e ‘cerceamentos’ sociais?
Vimos muitas referências, teoricamente e na prática, que também incluíram o papel festivo e ritualístico do riso, tal como em História do Riso e do Escárnio, de George Minois; e em uma oficina de bufão que fizemos com Joice Aglae. O riso tem muitas camadas, mas me parece que todas elas são políticas de algum modo, assim como é política toda a história de condenação do riso.
Sua condenação está relacionada com a condenação do corpo e suas potências, sua alegria, seu prazer, a calendarização da alegria em quatro dias de “Adeus à Carne” (Carnaval), com o controle sobre o corpo, que existe há muitos séculos. E isso tudo, como reflexo do poder no corpo do indivíduo, atravessa muitas camadas e muitas práticas, que vão desde o cerceamento do riso e da alegria na vida privada, por associá-lo à luxúria, futilidade, depravação; até a associações simbólicas, através da figura do mártir, entre moralidade e tristeza; ética e tristeza; luta e seriedade.
Nesse sentido, Motim vem, em sua estrutura, refutar essas associações, tentando entender um riso no cotidiano como um espaço de suspensão, mas também como outros modos possíveis de reagir indignadamente ao que se apresenta como absurdo, inaceitável, indigno para a vida das pessoas. Não sei, sinceramente (é difícil mensurar esse tipo de coisa em arte), o quanto atingimos nossos ensejos dramatúrgicos e de recepção, mas gosto de pensar que uma imagem como a que Bruno Siqueira usou para definir Motim, “um rasgo de riso pela cidade”, pode ter produzido algo ou aberto alguma fresta de alegria, lucidez, indignação, prazer ou ódio em quem vivenciou esse rasgo.