#07 Cidades e Intercâmbios | É dança disfarçada de luta – Diálogos da capoeira na Europa
Imagem – Arquivo Pessoal | Arte – Rodrigo Sarmento
Por Ricardo Nascimento
Doutorado em Antropologia (Universidade Nova de Lisboa) e Professor (Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira – Unilab)
Entre as formas de representação da capoeira, que encontramos na sociedade brasileira, reside o mito de que se trata de uma luta disfarçada de dança (Vieira & Assunção, 1998). O disfarce se daria pela opressão sobre os escravizados, razão que explicaria a utilização de instrumentos musicais e de maneirismos e gestos de um dançarino. De fato, o mito não está de todo equivocado, uma vez que as práticas de matriz africana e da diáspora sempre guardaram um carácter multivocal em que uma performance pode ser, ao mesmo tempo, uma prática marcial, assim como uma dança, bem como um momento de espiritualidade ou entretenimento comunitário.
Essa polissemia das performances africanas e da diáspora sempre permitiu múltiplas leituras e entendimentos, embaralhando as interpretações ocidentais em que cada artefato da cultura encarna uma única possibilidade. De acordo com Ligiéro (2011), as práticas culturais de origem afro-brasileira, como o samba, a capoeira e as religiões afrodescendentes no Brasil, possuem várias características comuns que decorrem da sua motriz africana, tais como: a formação em círculo; a existência de um mestre que figura como uma autoridade, repositor de saberes e ancestralidades; uma linguagem polifônica entre luta, dança e o jogo dramático; a ocorrência eventual do transe e de trânsitos rituais e performáticos entre o sagrado e o profano.
No campo da academia, é a partir da introdução dos Estudos das Performances Culturais no Brasil, que nos chega através do teatro e de dramaturgos e pesquisadores como Zeca Ligiéro (2011), que despertamos para o interesse das culturas populares, em particular das performances afro-ameríndias, como instrumentos para pensarmos formas artísticas, como o teatro, a dança e a performance arte. Com efeito, e de forma circunstanciada, muito pouco tem sido realizado no Brasil que conjugue as nossas performances culturais de matriz africana com as linguagens artísticas contemporâneas, seja no teatro ou na dança em particular, onde o preconceito com a cultura afro ainda está bastante arraigado.
Uma das primeiras incursões que fiz com a capoeira como praticante ocorreu na adolescência, ainda na minha cidade natal. Não imaginava que, anos mais tarde, iria reencontrar-me com aquela arte, quando em 1989 resolvi emigrar para a Europa, onde residi e acompanhei a capoeira durante quase três décadas. O interesse por estudar a capoeira no âmbito da academia e de pós-graduações surgiria algumas décadas mais tarde da minha chegada ao velho continente, quando me dei conta do quanto, com o decorrer dos anos, a capoeira tinha crescido e se tornado popular entre os europeus, ao ponto de influenciar as suas vidas, as suas culturas e sociedades. Com base nessa constatação, resolvi empreender a pesquisa de doutorado sobre o processo de transnacionalização da capoeira no continente europeu, concluída em 2015.
Os processos transnacionais da capoeira podem ser pensados incialmente através das excursões internacionais de dois importantes grupos difusores da cultura afro-baiana, o grupo Viva Bahia e o grupo Brasil Tropical. Um dos mais importantes grupos folclóricos da Bahia, senão mesmo o mais importante no processo de transnacionalização da capoeira, foi o grupo Viva Bahia, criado em 1962 pela professora e etnomusicóloga Emília Biancardi. O processo de espetacularização e mercadorização das danças e rituais da cultura negra baiana, no âmbito no grupo Viva Bahia, passava por uma larga pesquisa e pelo contato em cursos e formações com figuras de renome da cultura popular.
Entre elas, estavam Mestre Pastinha e João Grande na capoeira, Neuza Saad na dança, Dona Coleta de Omolu nas danças do Candomblé, Senhor Negão de Doni para os toques e ritmos do candomblé e Mestre Canapum na Puxada de Rede. Mestre Popó do Maculelê, com a dança jogo de paus do maculelê, foi determinante na presença do grupo e foi das primeiras vezes em que essa manifestação foi mostrada para um público mais alargado. As viagens do grupo ocorreram por toda a América do Sul, E.U.A., Médio Oriente e África. As apresentações foram patrocinadas por instituições do Estado, como o Ministério das Relações Exteriores e a BAHIATURSA, além de convites para festivais e performances patrocinadas por empresários.
Mestre Nestor Capoeira, nos anos setenta, foi um dos primeiros a introduzir classes de Capoeira na Europa, na London Scholl of Contemporary Dance, em Inglaterra (Falcão, 2004). Por volta de 1973, o Mestre Martinho Fiúza, capoeirista e bailarino do grupo Folclórico Brasil Tropical, também chegava à Europa e começava a dar as primeiras classes de capoeira no velho continente, onde até hoje reside e permanece dando aulas de dança na sua própria escola, o Dance Studio Martins, na cidade de Munique, na Alemanha. Neste mesmo período, Mestre Jelon Vieira, ex-integrante do grupo Viva Bahia, chegou a Nova Iorque, tendo passado por Londres com o grupo folclórico em que estava inserido. Mestre Jelon declara que o seu trabalho inicial se fixou numa academia de danças chamada de La Mamma, em Manhattan, e ali permaneceu entre 1975 e 1979.
Como explica o mestre, a capoeira neste desbravamento introdutório esteve vinculada à dança, uma vez que, para sobreviver, ele e o seu companheiro de trabalho Lorenil Machado estiverem envolvidos com espetáculos e ensino da dança (Abreu & Castro, 2009: 100). O depoimento do Mestre Pavão é enfático sobre o vínculo inicial da capoeira com a dança e relata a sua experiência, na década de 70, nos Estados Unidos. O capoeirista baiano, que era aluno do curso de danças da Universidade Federal da Bahia e pertencia ao quadro do grupo de danças desta universidade, chegou aos Estados Unidos para participar num intercâmbio com a Universidade de Illinois e, com orgulho, relata ter integrado o grupo de danças da coreógrafa americana Katherine Dunham e ser um dos cinco no mundo a ter obtido o grau de mestre na técnica por ela desenvolvida (Lôbo, 2008: 17). Como se vê, a capoeira e a dança, pelo menos no domínio transnacional, sempre caminharam lado a lado.
Um dos mais belos e longevos trabalhos de fusão entre a dança contemporânea e a capoeira na Europa nos chega do bailarino, coreógrafo e mestre de capoeira Armando Pekeno e de sua companheira, também bailarina, coreógrafa e capoeirista Michelle Brown. Mestre Armando é um dos nomes mais importantes da dança contemporânea brasileira no mundo que, em conjunto com a sua companheira, conjugam capoeira e dança afro com as linguagens artísticas da dança na atualidade. A coreógrafa, bailarina e capoeirista Michelle Brown é de origem inglesa e cursou dança contemporânea no “Laban center for movement and dance” em Londres. Ela teve o seu primeiro contato com a capoeira ainda no Reino Unido, mas é em Paris, em 1990, que inicia o seu percurso na capoeira, até receber o título de contra-mestra, em 2007.
Mestre Armando nasceu em Salvador e desde a sua humilde infância nos bairros da capital baiana contatou com a cultura afro-brasileira, obtendo o cargo de Ogã nos candomblés baianos e iniciando o seu percurso na dança e na capoeira com o renomado Mestre King, precursor da dança afro no Brasil. Na atualidade, Armando Pekeno é hoje um dos principais herdeiros de seu Mestre, levando adiante este legado aos mais diferentes palcos, mas sempre atento e dando retornos às suas origens.
Aos 19 anos, viajou profissionalmente na Europa com a orquestra afro-baiana, sob a direção de Emília Biancardi e, nesta ocasião, ministra uma oficina de dança tradicional na escola de Maurice Béjart, “Mudra” na Bélgica. Sua aptidão e sua curiosidade pelo movimento o levaram rapidamente ao prestigiado “Balé do Teatro Castro Alves”, onde foi contratado como solista e coreógrafo. Sempre muito ativo e criativo, Armando é um dos precursores da dança contemporânea na Bahia. Ele é particularmente conhecido pelo seu trabalho, que tem suas raízes tradicionais em um contexto contemporâneo, notadamente nas companhias “África poesia”, “Origens”, “Cia de dança de Olodum” e “Mantra”.
De retorno a França, em 1995, convidado pelo Théâtre Contemporain de la Danse, em Paris, para realizar um estágio “do tradicional à modernidade” (com Michelle Brown), também convidou o projeto “Black Performances” para esta mesma instituição. A Compagnie Ladainha, companhia de dança contemporânea, nasceu do encontro do brasileiro Armando Pekeno e da inglesa Michelle Brown, em 1992. Após um longo período trabalhando em países como o Brasil, o México, a Inglaterra, os Estados Unidos, mudaram-se para Rennes, na região da Bretanha francesa, onde a companhia se instalou. Mestre Armando Pekeno e Michelle Brown são também parceiros na criação da Cooperative Bretonne de Capoeira.
A Companhia Ladainha possui um vasto currículo de espetáculos, coreografias, cursos, espalhados por todo o mundo, quase sempre com enfoque nas expressões híbridas da dança afro, da capoeira e da dança contemporânea. Na região da Bretanha, mestre Armando e sua companheira realizam anualmente vários cursos em que os participantes, capoeiristas, atores e dançarinos, podem experimentar estas linguagens, através da participação nas oficinas, mas também em residências artísticas.
Na roda de capoeira, assim como nos palcos da dança, Mestre Armando e sua companheira apresentam a leveza dos bailarinos, assim como a mandinga de um capoeira. Os anos de treino com a dança e a capoeira construíram um repertório de vastos saberes corporais e a maturidade de quem conhece o corpo nos seus limites. No palco, não se reconhece ao certo onde começa e termina a dança e a capoeira, onde se encontram e desencontram, de tão juntos que caminham. A dança como mito de origem da capoeira se profetiza ou se inverte? Afinal, será uma luta em forma de dança ou uma dança em forma de luta?
Referências
ABREU, Frede & CASTRO, Maurício Barros de, 2009. Capoeira: encontros. Rio de Janeiro, Azougue editorial.
FALCÃO, José Luiz Cirqueira, 2004. O jogo da capoeira em jogo e a construção da práxis capoeirana. Tese de Doutoramento em Educação. Universidade Federal da Bahia.
LIGIÉRO, Zeca, 2011. Corpo a corpo: estudo das performances brasileiras. Editora Garamond.
LÔBO, Eugénio, 2008. O corpo na capoeira: introdução ao estudo do corpo na capoeira. Campinas, Editora Unicamp.
NASCIMENTO, Ricardo César Carvalho, 2015. Mandinga for export: a globalização da capoeira. Tese de Doutoramento. Universidade Nova de Lisboa.
VIEIRA, Luís Renato & ASSUNÇÃO, Matthias Rohrig, 1998. “Mitos, controvérsias e fatos: construindo a história da capoeira”, Estudos Afro-Asiáticos, 34: 81-121.