#09 Queer | Desculonizando as Corpas [Ou Tutorial para Dinamitar Normatividades]

Imagem – Reprodução FB | Arte – Rodrigo Sarmento
‘Minhas performances são manifestos do direito ao próprio corpo. Através da autonomia dos nossos corpos, podemos desestabilizar a norma e pensar sobre o quanto somos podados. Um corpo colonizado é um corpo rígido, militarizado. A ‘desculonização’ está mais para uma rebolada funkeada até o chão’. Com esse depoimento potente, nosso dossiê Queer publica entrevista do nosso editor-chefe, Márcio Andrade, com a performer Bruna Kury (Coletiva Vômito), cujas performances conectam pós-pornografia, pornoterrorismo, escatologia, cropofagia para descolonizar estruturas formativas e inventar outros modos de ser corpo.
Bruna Kury é performer com pesquisas em kuir sudaka, pós-porno e pornoterrorismo, tendo integrado grupos como Coletiva Vômito, Coletivo Coiote, La Plataformance, MEXA e Coletivo T e participado de eventos como a mostra Todos os Gêneros, a Virada Cultural (SP), do Terminal 10mg, do festival An*rmal (México).
Bruna, antes de tudo, a gente queria saber como foi e vem sendo teu(s) encontro(s) com a performance e os trabalhos que você vem realizando.
Minha formação são minhas vivências, minhas andanças e minhas relações de amor e ódio. Eu, desde pequena, pinto e escrevo, depois comecei a pensar em instaurações… Com o passar do tempo, me veio a performance, o que foi um boom na minha maneira de me expressar. Costumo dizer que tenho uma certa dificuldade de comunicação verbal e a performance me vem como representação maior de mim mesma: é como acúmulo de muita coisa que tenho a dizer e só consigo vomitando.
Eu já fazia intervenções urbanas (happening, lambe lambe, stencil etc) e sempre questionei o endeuzamento da arte (!) e, ainda sim, vejo nela uma potência de transformação política. Depois, comecei a fazer performances em parcerias e criei um coletivo que, a princípio, era uma maneira de não me colocar a frente ou mostrar minha cara, para que eu pudesse ser vista pelas produções e não pelo ego que todo artista cria em torno de si, além de óbvio poder fazer as ações diretas/performances sem ser identificada por isso. Depois, conheci a Raíssa Vitral e o coletivo tomou outra forma, aberto, com mais integrantes, o que potencializou nossas produções e revoltas. Assim, fiquei durante mais ou menos sete anos performando como Coiote. Estava nômade, sem casa, viajando de carona e fazendo dinheiro com fanzines na rua, performando por onde passávamos e nos afetávamos, eu mais xs outrxs integrantes.
Hoje, continuo trabalhando com o pós pornô, com o pornoterror e falando sobre corporalidades dissidentes marginalizadas, afinal também sou uma dessas corpas, negra, transvestigênere e pobre. O trabalho todo é sobre interseccionalização, revolta, KAOS, anarquia, lugar de fala e ódio ao Estado e outras representações do massacre colonial (e como diz Jota Mombaça, também acredito que o pós colonial não existe), como: polícia, igreja, medicina branca colonialista patologizadora, a família nuclear etc. Entendo tudo isso como vindo do heterocapitalismo e da heterossexualidade compulsória vigente, castradora de corpas.
Os teus trabalhos parecem se interessar pela desestruturação de uma série de instituições sociais e culturais (igreja, família, capital, polícia etc.). Como vem sendo a recepção a esses trabalhos pelo público?
As reações são diversas, como não poderiam deixar de ser: muitas pessoas se dizem contempladas e sensíveis ao que veem, se emocionam, choram, se abrem, se identificam etc. Outras chocadas e enojadas – o que também está tudo bem, pois as performances são justamente para provocar e estimular essa desprogramação nos nossos cérebros tão condicionados. Já aconteceram ameaças e perseguições, censura também sempre acontece, inclusive em ambientes artísticos, mas não é por conta disso que pararei de performar. Às vezes, sinto medo, mas é só mais um no meio de tantos receios que rondam minha vida.
As performances também são respostas, as pessoas recriminam muito as diversidades corporais e intelectuais, acabam vivendo em bolhas imaginárias, compactuam com o higienismo social, a gentrificação, o racismo, a LGBTQIAfobia, a gordofobia etc.. Daí, nos colocam no lugar de monstrx e, nas performances, rola um empoderamento e uma resposta a essa agressividade que sofremos cotidianamente. Quando nos empoderamos como xs monstrxs que querem que sejamos, isso assusta as pessoas – pois o que esperam de nós é que minguemos e baixemos nossas cabeças. Quanto a querer a desestruturação da igreja, família, capital, polícia etc, não é só isso, desejo profundamente a exterminação dessas instituições.
Desdobrando mais teu trabalho com pós-pornô e pornoterrorismo, como o pornô surgiu como questão estética e política nas tuas performances?
Falo sobre sexualidade e opressão. Luto contra a indústria da pornografia convencional e contra o que ela faz com nosso imaginário pornográfico e social. Quando falo de pornografia, é sobre os filmes e revistas (tanto os do cinemão quanto os que passam de madrugada na TV), mas não é só. É também sobre esse climão heteronormativo que nos rodeia e nos massacra. É sobre as piadinhas que fazem. É sobre a hipersexualização de determinados corpos, corpos femininos, que subalternizam e consomem como carne em abatedouros. É sobre a fetichização de corpas dissidentes em categoria do bizarro. É sobre padronização, machismo. É sobre a construção limitada da nossa sexualidade etc.. E isso não é só sobre pornô, é sobre igreja também.
O pós-pornô é contra a indústria pornográfica e a essas sexualidades hegemônicas. Então, são filmes a maioria das vezes DIY (Do-It-Yourself) onde corporalidades outres não são fetichizades, onde se pode ver prazer e gozo muitas vezes desgenitalizados! Tenho falado muito sobre o pós-pornô e não quero generalizá-lo: existem diversas produções, das mais comuns às mais hardcore. É sexualidade fora da caixa, real, cyborg etc.
Paul Preciado define como “o efeito de se tornar sujeito daqueles corpos e subjetividades que, até agora, só haviam podido ser objetos abjetos da representação pornográfica”: as mulheres, as minorias sexuais, os corpos não-brancos ou deficientes, as pessoas transexuais, intersexuais e transgênero. No pós-pornô, as pessoas ignoradas pelo pornô hegemônico ou utilizadas para representar fantasias alheias, frequentemente de forma degradante, tomam as rédeas e gravam ou atuam expressando sua própria sexualidade, convertendo-se em protagonistas com um roteiro decidido por elas próprias.
Sobre o pós-pornô que eu produzo, tenho falado que é um processo de desprogramação: não necessariamente a pessoa vai ter prazer assistindo, mas, de alguma forma, a ideia é desprogramar e questionar o que já está tão normatizado em nossas cabeças. Já o pornoterrorismo é um termo criado pela Diana Junyent, a pornoterrorista; acredito que seja pós pornografia com o acréscimo de desobediência civil e muita, muita raiva. As pessoas dizem que também faço pornoterrorismo. Eu gosto e acho que dialogamos bastante.
Quanto ao que me motiva a performar, é perceber como nossas mentalidades são formadas através da pornografia convencional e como isso pode ser transformado através de outras representações. É perceber como um vídeo pós-pornô pode dialogar com questões de subjetividades corporais e como podemos conversar e ter prazer sem compactuar com o opressor. Mas também não vamos limitar minhas performances a isso: é também pós-pornografia, mas não só. Isso está também no seu olhar.

Imagem da performer Bruna Kury | Foto – Nu Abe | #4ParedeParaTodos #PraCegoVer – Imagem colorida da performer Bruna Kury deitada no chão usando lingerie preta, botas, pulseiras e uma bandana no rosto. Ela posa com a perna direita levantada e mostrando DVDs com materiais de pós-pornografia para a câmera.
Pensando em outros trabalhos que você conheça nessa seara, que representações dessas sexualidades têm te chamado mais atenção ou têm te instigado a dialogar ainda mais sobre?
Sim, a ideia é que, na pós-pornografia, as produções sejam feitas por e para corpas marginalizadas! Gosto muito do trabalho da Pedra Costa que, para mim, sempre foi referência em queer no Brasil. Também tem um projeto chamado Solange, tô aberta; os escritos e performances da Jota Mombaça, Paulx Castello e as Divinas Vacas Procaces, Missogina com o manifestx gorde e oficinas de shibari, Tertuliana Lustosa com Cuceta e seus escritos, Kleper Reis e o Cú é lindo, das performances do Caio Jade, Walla Capelobo, Elton Panamby, Bartira Dias, Diana Pornoterrorista, Maria Basura, Hector Acuña, Nádia Granados, La Bala Rodriguez, das produções da Kika em João Pessoa, das iniciativas autônomas e anarkas em Recife, etc.
No manifesto Entulhos e Acúmulos Coletiva Vômito, você fala que o termo queer não seria mais suficiente para caber as revoluções estruturais que te motivam nos teus trabalhos. Que limitações você percebe nesse conceito e como vocês acreditam que podemos transpô-las estética e politicamente?
Isso é uma “tiração” ao queer. O Queer surgiu na academia, nos EUA, e a arte queer termina sendo, portanto, norte americana e europeia. Por mais que fale sobre corpos marginalizados, aqui no Brasil acabou se transformando num modismo made in Gringolândia, em uma cultura de balada branca e hypada. Por isso prefiro usar Kuir, ou Cuir, porque, para mim, quem é queer/kuir/cuir aqui nos trópicos somos nós travestis, negrxs, precárixs. Tem muita gente que é kuir e não se denomina assim: aquela velha história de privilégios e marginalidades vem a tona novamente, quem se coloca como queer por aqui tem muito de colônia na história. Nada contra, todxs temos, é só uma questão de localização.
As suas performances investem bastante em trazer dejetos corporais, como vômito, catarro, sangue etc., ao espaço da performance. Como você acredita que trazer esses elementos à cena pode fazer emergir outras relações com nossos corpos?
O queer é o vômito, nem digerido nem evacuado. É o entre, a potência terciária que sai da binariedade. (“reverte a dialética ao não permitir que se faça a síntese. Impedido de virar bosta, todo vômito se faz comestível: na contramão da síntese, vomitar é a possibilidade de comer novamente, e outra vez mais.” “Contínua transformação do tabu em totem”. Todo vômito “já éramos” alimento – como indicava Oswald no Manifesto de 28”).
Uma das referências para as performances, é o estilo de vida BDSM (Bondage, Disciplina, Dominação, Submissão, Sadismo e Masoquismo), onde, em todas as práticas, existe como principal regra o consentimento. Vejo uma possibilidade de desprogramação corporal grande dentro das práticas e muito me interessa essas maneiras mais libertas de encarar a sexualidade, sem moralismos ou dogmas que patologizam, direito ao próprio corpo. A escatologia, a cropofagia, a emetofagia, muitas vezes fazem parte das performances e dos questionamentos que as mesmas querem atingir. Muitos artistas utilizam de excrementos para produzir arte. Esses dejetos são nosso corpo (e uma bela representação dele). Não é algo que devemos fingir que não existe.
Lembro quando performei passando merda e purpurina na cara; começava a ação escovando os dentes em praça pública, cuspindo no chão. Em seguida, passava minha própria merda (que estava dentro de um pote de vidro) e depois jogava a purpurina dourada. As outras ações que aconteciam simultaneamente eram de costuras na pele e masturbação e a única que não foi gravada foi a minha. As pessoas diziam que estavam com medo de mim, que eu estava potencialmente terrorista, que aquilo era um presságio do fim do mundo. Estávamos em vésperas da Copa do Mundo. A Aldeia Maracanã tinha sido desalojada. O Rio de Janeiro estava sendo ainda mais gentrificado e higienizado, muitas chacinas.
Alguns anos se passaram e estamos vivendo como em 64: o governo é fascista, nossas liberdades estão sendo podadas e os reaças estão tomando cada vez mais poder. As performances são manifestos do direito ao próprio corpo, do exercício da autonomia e da autogestão. E o Estado, além de não nos assegurar essa autonomia, faz de tudo para que estejamos nessa roda mortífera de capitalismo cognitivo onde tudo é manipulado. Esperança é o caralho, ação direta já! Revolta e KAOS! Organizar a raiva e defender a alegria!
Atenção: o vídeo contém imagens fortes.
Você se define como anarcatransfeminista e cria performances que define como ‘ações contra o cis-tema patriarcal heteronormativo’. Como, a partir dessas performances e das manifestações contra o transfake, você tem pensado a representatividade trans nas artes?
Ser anarquista diz sobre eu querer a destruição do poderio do Estado e instituições sobre nossos corpos. Ser transfeminista e interseccional é sobre eu acreditar que as opressões são estruturais, pensando nas opressões diversas e tendo como ponto de partida gênero, classe e raça.
Questiono e aponto os privilégios que determinados grupos/corpos detêm, como acontece na hegemonia e plasticidade da branquitude, em corpos cis, magros (e também tenho esse privilégio), no acesso a lugares como mercado de trabalho, universidade… E isso inclui questionar a bolha elitista do mercado das artes. Tão branca, tão cis, tão padrão Rede Globo de Televisão.
Na arte (e também no teatro), existe uma origem colonial, muitas vezes catequizadora: antes mulheres cis eram interpretadas por homens cis(e brancos), é naturalizado que pessoas trans não estejam inseridas em nenhum âmbito social, que sejamos apagadas (muitas só encontramos lugar na prostituição) e até dizimadas, massacradas, escorraçadas dos lugares.
As manifestações contra o transfake é sobre reinvindicar mais um lugar que nos foi tirado: é sobre representatividade como uma redução de danos. Na ‘Carta aberta do Movimento Nacional de Artistas Trans para todos os artistas cisgênero’ está uma proposta que muito acho pertinente: parem AGORA de nos representar (estanquem esta sangria) por no mínimo 30 anos. Vocês (homens) brincam com o feminino desde que o teatro é teatro. 30 anos não é nada.
Além das sexualidades consideradas não-normativas, você também traz à tona olhares sobre outras negrxs, indígenxs, gordxs etc. e realiza a performance Desculonización. Pensando nesses teus trabalhos, como você acredita que podemos descolonizar nossas estruturas formativas e viver outras possibilidades de corpo?
Quando Annie Sprinkle propõe espectadores da performance olharem o interior de sua vagina com um espéculo. Quando Pedra Costa tira do ânus um terço católico. Quando nos masturbamos em público com símbolos religiosos. Quando, em uma performance que fiz no Festival Anormal, entro de biquini e com uma canga de Ipanema estampada com pedras portuguesas, retiro do cú uma faixa escrita DesCulonización e a Diana me masturba com o cabo de um facão. Na performance uso o cabo para me masturbar e a lâmina fica para fora, como uma extensão, um cu perigoso e cortante.
Acredito todos esses são exercícios para a descolonização dos nossos próprios corpos. Acredito que, através da autonomia com nossos corpos, podemos desestabilizar a norma, estimular uma discussão sobre o quanto somos podados e tentam nos limitar. Quanto a descolonizar as estruturas formativas, proponho darmos voz aos negrxs e povos originários, que não deixemos ser apagadas ou sucumbidas essas/nossas histórias. O racismo é estrutural.
Um corpo colonizado é um corpo rígido, militarizado (não acabou, tem que acabar, eu quero o fim da polícia militar, da polícia das corpas e dxs gêneros). A desculonizacion está mais para uma rebolada funkeada até o chãochãochão.