#09 Queer | Tropicuir – Resistências Transviadas em Rede

Imagem – Reprodução FB | Arte – Rodrigo Sarmento
Por Guilherme Altmayer
Doutorando e Mestre em Design (PUC-Rio)
Em tempos de neoconservadorismo evangélico pentecostal e seus tentáculos fascistas e reguladores de corpos e comportamentos, mais do que nunca se fazem necessárias a desobediência e a insurgência de corpos transviados que perturbem a ordem natural da machista e quatrocentona “família tradicional brasileira”, para se afirmarem como potências bicha, sapas, trans, bi, travestis, monstras. Corpos transviados[1] que se negam tornar-se palatáveis e higienizados, muito menos “aceitos” pela sociedade heteronormativa.
O filósofo e curador de arte Paul Preciado (2009) nos convoca a falar a partir de nossos cus para entendermos quais os fluxos de poder (libidinais, econômicos e linguísticos) nos constituem, para, a partir de um eu que se afirma como bicha, travesti, transviado, expor as falhas constitutivas do sujeito tradicional, considerado “normal”.
Tropicuir fala a partir do cu com o esfíncter relaxado sobre as relações de fluxos de poder capitalistas e um dos seus pilares maiores de sustentação: as violentas hierarquizações econômicas e sociais perpetuadas por dispositivos e desigualdades de gênero e sexualidade regidos um regime predominantemente cisheteronormativo.
Tropicuir: movimentações, redes de memórias e afetos entre corpos transviados desobedientes e suas ações estético-políticas sudacas[2] capazes de resistir, mesmo que momentaneamente, ao acelerado processo de mercantilização cultural de corpos docilizados para o consumo.
Tropicuir se coloca como uma plataforma para cartografia de memórias que se aproxima do que Preciado (2015) chamaria de uma rede de corpos e proposições insurgentes, que pensam a diferença não como identidade fixa e servil, mas como potência de dissenso político a partir de múltiplas estratégias de resistência a normatização.
Uma plataforma que navega entre o analógico e o digital para a convergência de ações de visibilização de apagamentos históricos, de empreendimento de releituras historiográficas, de combate das violências institucionais, de ocupação de espaços hegemônicos, de troca de estratégias de sobrevivência… em um ambiente insubmisso a ferramentas de censura moralistas e estimulante para circulação de discursividades queer/ cuir/ kuir e decoloniais. Memórias e ações de corpas como potência representativa a um só tempo singular e de muitos outros que transformam dores, violências e preconceitos em múltiplas formas de ações estético-políticas.
O termo tropicuir, foi inspirado no título de um manuscrito do artista Hélio Oiticica chamado Mario Montez, Tropicamp. Tropi é uma abreviação de tropical, e brinca com a fragilidade da construção discursiva do Brasil como um paraíso tropical. Segundo Oiticica, um dos principais mentores do movimento Tropicália, o mito da ‘tropicalidade’ seria muito mais do que papagaios e bananeiras. Tratava-se, segundo o artista, da consciência e negação a um condicionamento e estruturas estabelecidas, tendo, portanto, um potencial revolucionário no campo em que atua.
Já a segunda metade do termo tropicuir – cuir é uma derivação da palavra inglesa queer (intraduzível para o português). O termo tem aparecido com frequência em trabalhos de autoras latino-americanas dedicadas aos estudos queer[3], como Berenice Bento e Larissa Pelúcio, e conota uma resistência ao uso indiscriminado de termos estrangeiros, além de buscar uma maior proximidade com a realidade sul-americana. Cuir, quando lido em português, também remete ao cu.
O cu como um lugar de fala. Lugar de fala de corporalidades transviadas que provocam deslocamentos e rompimentos de discursos e práticas e partem para derivas descolonizadoras em um terreno efêmero e fronteiriço, provocador, que goza nas margens do indefinido, ocupando lugares que perturbam estabilidades fragilmente construídas, criando outras formas de existência a partir da exploração de novos saberes do corpo. Devires ou movimentações de (re)existência que trabalham o próprio corpo como superfície e cenário para novas inscrições culturais a partir de suas práticas.
Do poder que é exercido sobre nossos corpos, nos diz Michel Foucault (1993), emerge a reivindicação do próprio corpo contra estes poderes. O mesmo corpo atravessado pelo poder é também dotado de resistência. Neste sentido, podemos entender o corpo como uma ferramenta que, ao tomar consciência dos efeitos dos dispositivos que o atravessam – família, escola, governos, medicina, psicologia, instâncias jurídicas e religião – é capaz de se apropriar e manipular estes mecanismos para se converter em uma máquina produtora de novos sentidos, novos territórios de ocupação contranormativos e insubordinados.
Ao reconhecer a atuação destes dispositivos como mecanismos permanentes de produção de verdades – identitárias e socialmente segregadoras – é possível pensar em ações estético-políticas críticas que propõem outras formas de saberes do corpo afirmando outros espaços, abrindo terrenos polimorfos para existências ambíguas, indefinições, suspensões.
Polimorfo não apenas com relação às múltiplas formas possíveis de expressão e saberes do corpo artístico, mas também a partir do perverso polimorfo proposto por Freud (1901), em seu Três Ensaios sobre a Sexualidade, onde fala de uma predisposição da criança a experimentar o prazer de múltiplas formas antes que comece o processo de interditos culturais – que geram a vergonha, o asco e a moral – e que castram e fazem abjurar as possibilidades de gozar, impondo limites de acordo com lógicas de controle dos corpos.
Assim, a plataforma tropicuir se coloca a disposição de corpos e ações estético-políticas como potências contranarrativas que buscam romper, mesmo que temporariamente, com estes interditos, entendendo a crítica como arte de insubordinação voluntária, de uma negação do sujeito a subjugar-se a um contexto de políticas da verdade.
O que é reivindicado aqui é a vida, a própria existência, suas necessidades fundamentais, memórias compartilhadas e visibilizadas. Foucault (2004) fala de relações que escapam aos códigos institucionais para estabelecer outras formas de saber, de intensidade e cores múltiplas que provocam curtos-circuitos capazes de inserir o amor onde deveria haver não mais que o hábito, a regra, a lei.
Félix Guattari (1981), em seu trabalho Revolução Molecular, fala de práticas micropolíticas que não buscam uma nova receita psicológica, mas que só ganham sentido a partir de sua relação com um grande rizoma (ramificações desprovidas de raízes profundas) de revoluções moleculares, proliferando assim, a partir de uma multidão, devires mutantes: devir mulher, devir bicha, devir sapatão, devir trans, devir animal, devir indivisível – tantas novas maneiras de inventar novas sensibilidades e inteligências da existência, novas relações de afeto. O autor deixa claro a diferença entre o que configuraria uma ação micropolítica ou não: “a questão micropolítica é a de como reproduzimos (ou não) os modos de subjetivação dominantes” (Guattari, 2010, p.155). Paul Preciado fala de micropolíticas transviadas como sendo opostas ao modelo tradicional de política como guerra, e que se configuram em políticas que propõem um novo modelo baseado nas relações, trocas de afeto, no fervo, na comunicação, na autoexperimentação e no prazer (Preciado, 2009).
Todo corpo é político. A arte expressa através dos corpos, externaliza potências políticas, trabalha na ressignificação de comportamentos, na geração de novos saberes do corpo, e se converte em instrumento de guerrilha, em estratégia de defesa e resistência aos dispositivos de controle que o atravessam. Os corpos como ferramentas potentes de (re)existência podem produzir distorções nos códigos de significação dominantes e, de um ponto de vista estético-político, produzir a antiestética, estéticas negativas, feísmos ou estéticas camp, de glamurização do lixo, estéticas que invertem o valor entre cópia e original (Preciado, 2010). Guattari diz que “é a partir da cartografia das formações subjetivas que podemos esperar nos distinguir dos investimentos libidinais dominantes” (Guattari, 2010, p.157).
Preciado (2002) defende a ideia de contrassexualidade como uma forma eficaz de resistência à produção disciplinante das sexualidades em nossas sociedades permissivas e falsamente tolerantes; não se trata de uma luta contra a proibição, mas sim a partir da contra-produtividade, ou seja, a produção de formas de prazer e saber alternativas às sexualidades modernas ocidentais.
Percebe-se evidente uma urgência política, uma urgência na criação de linguagens estético-políticas capazes de lidar com a complexidade e diversidade de questões transviadas e seus atravessamentos no crescente cenário conservador e fascista brasileiro. Práticas artísticas que não somente configuram enfrentamentos e resistências, mas sim, e principalmente, envolvem a criação de novos saberes do corpo em uma sociedade brasileira em crescente processo de fascistização, e que insiste em controlar, manter e promover o autocontrole de todos os cus. Formas de enfrentamento político contundentes que através da arte, criticam um ambiente dito democrático, que por um lado proporciona um cenário supostamente permissivo para a diversidade de existências, e por outro perpetua e faz crescer as violências contra transviados – principalmente as travestis e as bichas afeminadas da periferia.
O artista Hélio Oiticica[4], em seu manuscrito Brasil Diarréia, escrito em 1970 durante sua estada em Nova Iorque, conclama para a criação de uma linguagem, ou linguagens, capazes de enfrentar os destinos da escorregadia modernidade brasileira. Oiticica, a partir de uma inquietude, um inconformismo, elabora uma crítica contundente ao estado das artes brasileiras e sua submissão ao paternalismo, à instituição, sinalizando para uma virada cultural perigosa, que dá lugar a uma diluição da capacidade crítica de movimentos e expressões artísticas. Uma crítica que se dirige ao “estado das coisas” na cultura brasileira, indicando uma tendência à estagnação e um retrocesso que seria a causa da diluição de movimentos revolucionários e construtivos, impedidos de levar suas potencialidades às últimas consequências (Oiticica, 1970).
O artista não tem a pretensão de responder, nem determinar que linguagem seria esta, mas fala na criação a partir de um conjunto de ideias que não se deixam diluir no que ele chama de “convi-conivência”, que é, segundo ele, a grande doença brasileira de esvaziamento de sentidos críticos mais radicais, de absorção pelos mecanismos de policiamento moralistas, paternais e reacionários brasileiros. É a este movimento que ele dá o nome de brasil diarreia.
Nosso maior inimigo é o moralismo quatrocentão de origem branca, cristã, portuguesa, que compõe o que ele chama de “brasil paternal” e promove o cultivo dos bons hábitos, a prisão de ventre nacional (Oiticica, 1970). Passadas mais de quatro décadas de seus manuscritos, este “inimigo” segue presente e fortemente atuante na sociedade brasileira.
Não existe a arte experimental, segundo o artista, mas sim o experimental, que não só assume a ideia de modernidade e vanguarda, mas também a transformação radical no campo dos conceitos-valores vigentes: propondo assim transformações e rompimentos de comportamentos e contextos, que deglute e dissolve a coni-convivência: uma convivência conivente com as mazelas sociais que assolam o país, hábitos de uma sociedade, segundo ele, cínica, hipócrita e ignorante que produz uma espécie de conforto paterno-burguês que se nega a enxergar o Brasil como ele realmente é (Oiticica, 1970).
Assim, tropicuir se pretende uma plataforma colaborativa para memórias, narrativas e ações sexo e gênero dissidentes, a partir de uma dinâmica de auto-representação – elxs por elxs mesmxs pensando configurações estéticas para resistência dos próprixs corpas como possibilidade crítica não institucionalizadas, e, políticas que resistem aos meios de produção capitalistas e que, portanto, ainda são capazes de perturbar sua ordem no campo em que atuam.
De acesso gratuito e construção colaborativa, a plataforma tropicuir.org se coloca como receptáculo para registros imagéticos e narrativos de auto-representação, em um vasto espectro de variações formais, que podem ser utilizados como material para outras pesquisas, ações, estratégias de contaminação dissidente dos diferentes campos de atuação que a integram. Um agente que colabora no contágio que se dá também pelos rastros, pegadas, vestígios de memória alojados na internet, como meio para a sobrevivência de subjetividades dificultadas de existir no espaço público, institucional ou em contextos sociais em que sua corporeidade é rechaçada.
Um convite aberto a colaboração para a criação e fortalecimento de redes transviadxs de (re)existência na web, e para além dela. Interessado em contar sua própria história transviadx? Escreva para: tropicuir.org@gmail.com
Referências Bibliográficas
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade vol 1 – A vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1998.
________________. Microfísica do poder. 11ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 1993.
________________. Por uma vida não fascista. Coletivo Sabotagem, 2004.
FREUD, Sigmund. Um caso de histeria, três ensaios sobre a teoria da sexualidade e outros trabalhos. Disponível em AQUI. Acesso em 7 de dez. 2015.
GUATTARI, Felix. Revolução Molecular: Pulsações Políticas do Desejo. São Paulo; Brasiliense. 1981.
GUATTARI, Felix, ROLNIK, Suely. Micropolíticas – cartografias do desejo. Petrópolis: Editora Vozes, 2010.
OITICICA, Helio. Brasil Diarreia. [S.l., jul. 1970]. Manuscrito. Disponível AQUI. Acesso em 20 de out. 2017.
OITICICA, Helio. Mundo-Abrigo. [S.l., jul. 1973]. Manuscrito. Disponível AQUI. Acesso em 20 de out. 2017.
_____________. Mario Montez: Tropicamp. [S.I., out. 1971] Manuscrito. Disponível AQUI. Acesso em 20 de out. 2017.
PRECIADO, Paul B. La revolución que viene: Luchas y alianzas somatopolíticas. Disponível AQUI. Acessado em 20/07/2015
_________________. Revista Poiésis, n 15, p. 47-71, Jul. de 2010. Entrevista por Jesús Carrillo.
_________________. Terror anal: apuntes sobre los primeiros días de la revolución sexual. In: HOCQUENGHEM, Guy. El deseo homosexual. Madrid: Melusina, 2009, p. 135-172.
Notas de Rodapé
[1] Me aproprio aqui da palavra “transviado” usado por Berenice Bento para designar estudos/ativismos transviados, e que se aproxima do significado do termo “queer”, tornando-o inteligível no contexto brasileiro. Usaremos o termo para nos referir ao grupo de bichas, sapatas e trans. No dicionário, o termo transviado tem o seguinte significado: s.m. Desviado; aquele que se transviou; quem se afastou dos bons costumes. adj. Desencaminhado; que se perdeu do caminho; que se transviou; que está perdido. Que se opõe aos padrões comportamentais preestabelecidos ou vigentes. Figurado. Vagabundo; que vive a vagar sem rumo certo. (Etm. Part. de transviar) Para mais, ler AQUI.
[2] O termo sudaca é utilizado pejorativamente na Espanha para se referir aos imigrantes latino-americanos, principalmente aqueles que possuem características físicas ameríndias.
[3] Para uma bibliografia introdutória sobre os estudos queer, ver AQUI.
[4] Oiticica era bicha, porém, este fato é pouco abordado nos escritos existentes sobre sua obra. Muitos dos seus trabalhos podem ser lidos como originados a partir de seu viés transviado. Descrevo rapidamente aqui alguns deles. Em 1978, no protesto Mitos Vadios, uma contestação à mercantilização da 1 Bienal Latino-Americana, Oiticica fantasiou-se de sunga, sapatos prateados estilo Boris Karlof, blusão cor-de-rosa, rosto maquiado e peruca feminina. Depois, desfilou entre o pequeno público, fez trejeitos com a língua e, com a ajuda das mãos, sacudiu os órgãos genitais para o público (Klintowitz, 2010). Em Nova Iorque em 1973, no filme Gay Pride 1/2/3 (9 min./Cor/Mudo/1973), o artista registrou uma parada gay onde mostra a concentração dos manifestantes no Central Park e em seguida a parada que desfilou pela Quinta Avenida. Importante notar que naquela época as paradas gays não eram institucionalizadas como são hoje e os manifestantes se valiam de precários cartazes para reivindicar seus direitos. Hélio ainda filmou no meio da multidão uma fanática religiosa que pregava o evangelho e protestava contra a manifestação (Bonisson, 2012). Na última cena do filme Hélio Oiticica (13 min./Cor/1979) realizado por Ivan Cardoso em 1979, o artista aparece interagindo com um revólver, lambendo, afagando, fazendo carinhos libidinosos, tendo como pano de fundo o som de sirenes e carros de polícia enquanto um narrador descreve um violento acidente.