#10 Palavra, Imagem e Movimento | A Dança entre borras, afetos, histórias, contemporaneidades e artes

Imagem – Thamires Lima | Arte – Rodrigo Sarmento
Por Ailce Moreira
Mestra em Artes Visuais (UFPE), Graduada em Comunicação Social / Jornalismo (UFPE) e Licenciada em Dança (UFPE)
O convite para escrever esse ensaio me desafiou a parar e refletir tanto sobre minhas práticas artísticas quanto sobre como tenho pesquisado e observado o campo da Dança. Esse exercício, que foi essencialmente de memória (e, por isso, demandou mesmo um tempo de maturação para que agora chegue a ser escrita), veio recheado de afetos e do reconhecimento de que aquilo que escolho trazer aqui é construído a muitas mãos, muitos corpos, muitas mentes e muitas experiências. Desde já, gratidão a cada um e cada uma que, no cruzamento dos nossos caminhos, me construiu ou des/reconstruiu um pouco mais.
Pensar nas pessoas e em como elas se imprimem em mim e levam também impressões minhas em si, me fez perceber que as borras de fronteiras entre as artes (sejam elas quais forem), para além de um acontecimento técnico, reflexivo, artístico, proposital, é fruto de borras e misturas entre gente ou entre gentes, se você preferir assim. Gente que faz arte e que se coloca no mundo disponível para interagir. Ao estudar diversos fenômenos e momentos nos quais as fronteiras entre as artes tendem a se borrar, noto que existem, nas entrelinhas da história dita oficial, romances, amigos, casas e lugares comuns, dentre outros aspectos, que contribuem para o surgimento de novas formas de produção, interação e criação artística, como aconteceu com Merce Cunnigham (diretor de dança) e John Cage (músico), grandes parceiros artísticos que moraram juntos e, dizem alguns, formavam um casal[1].
Relações afetivas entre criadores de diferentes linguagens artísticas fomentam borras de fronteiras estéticas – o que não quer dizer que essa possibilidade não exista ou aconteça a partir de relações apenas profissionais. É pensando sobre isso que trago para cá algumas falas, marcas e lembranças daquelas e daqueles que têm, junto comigo, feito, criado e pensado a dança e as borras de suas fronteiras. E que convido você a fazer parte dessa roda, contribuindo com aquilo que puder trazer também.
Assim, para início de conversa, vou me apresentar. Creio ser isso importante para que tenhamos um pouco mais de aproximação como gente, para eu deixar de ser apenas letras escritas num site e para você entender um pouquinho de onde parto e por onde caminho. Eu sou Ailce Moreira, pesquisadora da dança e ser dançante, que vez por outra cria um trabalho de dança e joga no mundo. Sou jornalista, licenciada em Dança e mestra em Artes Visuais, com uma queda específica pelo estudo de videodanças. Outras coisas que ajudam a me desenhar é que amo viajar, conhecer novos lugares e pessoas (apesar de ser muito observadora num primeiro momento); sou cristã protestante, alinhada com a Teologia da Missão Integral; membra do Luzes Grupo de Dança; gosto de praia; me entoco no mato de vez em quando, porque preciso disso para continuar seguindo e estranhando esse modo de vida louco da cidade; sou bem militante e desejo um mundo de paz, alegria e justiça para todas e todos; estou no desenvolvimento de uma investigação sobre minhas ancestralidades indígena e negra; e tenho buscado uma vida cada vez mais simples, saudável e grata.
Em termos de pesquisa em Dança, comecei a me interessar e trabalhar na área há cerca de 10 anos, quando passei a integrar a equipe do Acervo RecorDança[2]. Lembro como se fosse hoje da primeira vez a que assisti à videodança Elástico, uma das primeiras videodanças produzida no Recife, criação da Cia. de Dança Cais do Corpo, ainda no ano de 1992. A partir dessa experiência e do fascínio pela possibilidade de criar diálogo entre a dança e o vídeo (linguagem artística pela qual eu já desenvolvera interesse durante a graduação de jornalismo), passei a investir na reflexão sobre as possibilidades diversas de interação e diálogo entre a dança e outras formas de produção artísticas, tanto em pesquisas desenvolvidas no âmbito acadêmico, como a dissertação de mestrado intitulada Nexos da videodança: a construção dramatúrgica em Maxixe, como participando de projetos de pesquisa em grupo, no RecorDança e fora dele.
Em 2016, quando estávamos produzindo no acervo a segunda temporada do podcast Histórias ao Pé do Ouvido[3], realizamos dez entrevistas com artistas da dança do Recife. Um dos blocos dessas entrevistas era voltado especificamente para o que chamamos de múltiplas linguagens, ou seja, a interação da dança com outras artes. Daqui em diante, farei referências a algumas falas dos artistas entrevistados nesse projeto, em sua maioria amigos próximos também, e quando eu falar de um artista, você já saberá de onde se origina a alusão. Caso haja outra fala que não seja dessas gravações, eu conto de onde veio.
Atualmente, percebemos, eu e grande parte desses artistas como Alexandre Macedo, Liana Gesteira, Kiran Gorki, Fred Nascimento, Lau Veríssimo, Marcelo Sena, que, no cenário recifense, tem crescido a quantidade de produções em dança que buscam e criam diálogos com outros campos artísticos. Além das diversas relações afetivas entre criadores de diferentes linguagens, já citadas anteriormente, outro aspecto que fomenta o diálogo da dança com linguagens artísticas diversas é a formação dos próprios criadores da dança, pois muitos deles tiveram uma formação (seja acadêmica ou não) que contempla mais de uma área artística.
Como exemplo, é possível citar Fred Nascimento, diretor do Grupo Totem, que estudou música, teatro e artes visuais além da dança, e Lau Veríssimo, também do Totem, que tem formação nas artes visuais e na dança. Essa múltipla formação é visível tanto na forma de criar, que considera o repertório de cada integrante do grupo, como nos próprios resultados artísticos, que normalmente contam com música ao vivo e trilha sonora original, projeções e performance. Para Fred, “[…] a questão do Totem é que a gente tem um caminho que a gente constrói com códigos do teatro e códigos da dança; só que isso é regido pelo pensamento da performance.”
Marcelo Sena, diretor da Cia. Etc., companhia de dança que apresenta uma diversidade de produtos artísticos na área, como espetáculos (para adultos e crianças), performances, videodanças, podcast e rádio, dentre outros, por sua vez, afirma: “Eu sou só consigo ser os três juntos.” Jornalista, bailarino e músico, ele defende que é notório que a formação do artista é fator essencial em sua criação. Destaca também a importância de convidar profissionais de outros campos artísticos para criar junto com a Cia. Etc., como é o caso de músicos que trabalham na criação de trilhas sonoras originais ou videomakers que atuam nas produções de vídeo. Inclusive, alguns desses profissionais integram a companhia mesmo não sendo bailarinos, como é o caso de Filipe Marcena (videomaker), atualmente, e de Breno César (videomaker) e Caio Lima (músico), anteriormente. Para Marcelo, a participação desses profissionais junto aos processos de criação contribui para a garantia de qualidade nos resultados artísticos e também para a capacitação informal dos outros e outras integrantes da companhia.
Pensando sobre essa qualidade dos trabalhos que se propõem estrutural e esteticamente borrados, podendo ser apenas um ou outro, concordo com Alexandre Macedo e Liana Gesteira ao afirmarem que é necessário debruçar-se sobre as formas e possibilidades que as interações permitem e investir em pesquisa, estudo e trabalho acerca das ferramentas, recursos e possibilidades de criação que os diálogos entre áreas artísticas distintas oferecem. Não é razoável pensar simplesmente em uma colagem entre produtos artísticos distintos, como dança e música ou dança e poesia, por exemplo, a menos que seja explicitamente essa a proposta da criação. Não sendo, é preciso pensar numa construção e criação artística conjunta, a fim de que os resultados artísticos apresentem coerência dramatúrgica.
Liana Gesteira expressa o desejo de que esse tipo de criação em dança seja cada vez mais crescente em Recife. Entretanto, afirma que percebe, por vezes, certa dificuldade, advinda ainda do processo criativo, no entendimento das relações construídas em cena entre as artes distintas, não sendo possível distinguir em alguns trabalhos que tipo de relação está proposta dramaturgicamente (justaposição, criação compartilhada, uma área a serviço da outra, etc.), o que compromete a qualidade da obra como um todo. Para ela, “[…] tem que existir propósitos e entender como cada área artística pode se relacionar, dialogar dramaturgicamente, através de uma proposição dramatúrgica consistente para o tema. Assim, serão possíveis proposições artísticas fortes em suas especificidades. […] O ideal é trabalhar as duas linguagens juntas na criação desde o início, a menos que seja proposital um encontro posterior. É necessário pensar no desenvolvimento de repertório e técnica para desenvolver melhor a criação com mais de uma linguagem.”
No cenário da dança recifense, considerando o recorte específico das criações com múltiplas linguagens, percebo que, atualmente, ganha maior recorrência a realização de trabalhos que dialogam com as artes visuais, o audiovisual e a performance, além da tradicional relação com a música que tem sido amadurecida através da presença cada vez maior de trilhas sonoras originais e de execução ao vivo durante os espetáculos. Também é possível notar, em menor escala, interações com o circo, a poesia e a literatura e com o uso da voz, sendo esse último mais próximo de propostas mais experimentais do que a forma convencional do teatro, linguagem que outrora, por volta das décadas de 80 e 90 no século passado, era destaque nos trabalhos que traziam para a cena recifense diálogos entre áreas artísticas distintas. A crescente produção de videodanças e do uso de vídeos e de elementos visuais, sejam projetados ou não, nos espetáculos e outros tipos de criações, destacam as aproximações da dança com as artes visuais e com o audiovisual.
Quando trato da performance, por sua vez, gostaria de destacar que esse tipo de diálogo tem trazido para a dança uma mudança estrutural, no jeito de pensar a construção da cena e a sua execução, o que provoca uma ação mais questionadora dos dançarinos, uma presença ativa num estado de prontidão constante. Essa ideia também é partilhada por Marcelo Sena, Fred Nascimento e Liana Gesteira. Fred diz que “[…] a ideia de performance tem se ampliado dentro do universo da dança. A entrada da performance faz com que a dança tome novos rumos. É a performance contaminando os artistas, os corpos e os trabalhos. Esse é um caminho interessante para a dança.” Já Liana destaca o caráter de intervenção que a performance traz para a dança e chama esse novo jeito de fazer dança de “[…] construção de paradigmas performáticos para estar em cena.”
Na minha experiência como artista independente, tenho buscado desenvolver trabalhos tanto na área de videodanças, como da performance. No que se relaciona à videodança, pude colaborar com a realização de Rebu[4] (2012), da Cia. Etc., e também de Imanência (2016), trabalho realizado em parceria com os amigos Maria Agrelli (bailarina) e Breno César (videomaker). Nesse tipo de interação entre a dança e o vídeo, o desafio é trazer para a estrutura, as ferramentas e o produto videográficos o que podemos chamar de dancidade, aquilo que é próprio do pensamento da dança em suas lógicas de criação e de formas de lidar com o tempo e o espaço. Por outro lado, é estimulante e instigante pensar que a dança feita para a tela ganha inúmeras possibilidades dadas pelo vídeo que só dessa forma são concebíveis. Assim, a videodança se torna um novo produto artístico que possui especificidades próprias, diferentes daquelas da dança e do vídeo quando considerados isoladamente, além de não se configurar como apenas uma soma das duas linguagens artísticas.
No que tange à performance, esse é um tipo de criação artística em dança que muito me chama a atenção e que perpassa meus interesses criativos. O trabalho solo Com ou Sem Sangue nas Mãos (2017), que trata de formas de resistência, reexistência e sobrevivência em meio a tantas pressões, medos, ameaças, amarras que tentam nos matar a cada instante e que encontram como resposta a potência da vida que insiste em emergir do corpo, traz para a cena e para mim, como performer, aquele estado de prontidão perene que falávamos anteriormente. Em consonância com a temática abordada, o estado corporal em que me coloco em cena precisa responder ao devir de cada nova apresentação. Essa atenção e resposta que são exigidas de forma constante me levaram, inúmeras vezes, a modificar tanto a movimentação quanto a interação proposta com a poesia, através de pequenas intervenções no texto falado durante a performance. O estado de aqui e agora que se constrói junto com o público, para mim, é um dos grandes ganhos do diálogo entre a dança e a performance.
Contudo, há um desafio constante que é imposto aos artistas e grupos que trazem para seus trabalhos esse aspecto dialógico entre a dança e outras linguagens artísticas que é o de como se definir, principalmente quando tratamos de participação em editais de financiamento. Essa necessidade de definição seria muito menos necessária caso tais formas de fomento não exigissem tanto essa tal conceituação. Como disse Marcelo Sena, na apresentação pública de um projeto de pesquisa sobre videodança no qual ele foi entrevistado, intitulado Como o vídeo muda a dança?[5], em 2012, é como se os editais “[…] fizessem perguntas modernas, que exigem definições ou conceituações, para contextos contemporâneos em que a principal preocupação não está em definir aquilo que se faz a fim de criar regras entre o que se é e o que não se é. Essas eram preocupações modernas.”
Entretanto, é preciso pleitear. Na carência de outras formas de fomento e de políticas públicas culturais consistentes, abrangentes e suficientes, participar de editais é quase regra no dia a dia de artistas e grupos de dança do Recife. Partindo dessa realidade, é necessário pensarmos estratégias de oratória para grupos e artistas que estão na interface das linguagens, tendo em conta que os editais são o lugar das palavras e que, assim sendo, já se tornam estranhos à dança. Marcelo Sena afirma que “[…] lidar com os editais parte da forma como se faz dança no dia a dia. Edital para dança é uma questão delicada porque é a palavra escrita que vai definir se a sua ideia é legal ou não, se é original ou não, se joga as mesmas regras daquele lugar ou não. Mesmo que utilize da palavra, a dança não está na palavra. É preciso se capacitar para isso e entender as lógicas das políticas públicas, porque nem sempre a mesma lógica vai servir para tudo. É saber lidar com essas ferramentas.”
Liana Gesteira, por sua vez, acredita que “[…] é possível argumentar e defender uma questão num texto desde que se tenha argumento para isso. […] Assumir os riscos, esgaçando os espaços. Justificar nos editais o porquê essas relações são necessárias e possíveis e porque essa disciplinarização e segmentação enrijece os trabalhos. A argumentação tem uma força grande junto com um trabalho consistente que dialoga com o público.”
Diante de todas essas questões, a escolha pelo desenvolvimento de um trabalho em dança que dialogue com outras linguagens artísticas traz em si muitos desafios, mas também múltiplas possibilidades artísticas e criativas. A ressignificação de recursos, ferramentas, linguagens, possibilidades, interações e formas de criação contribui para o enriquecimento da cena e da dança como área de conhecimento. A partir de uma dança porosa, feita por gente disposta a se afetar e se borrar mutuamente, traçamos hoje caminhos que dantes não puderam ter sido imaginados.
Notas de Rodapé
[1] Duas referências que abordam a questão da relação entre os dois:
COELHO, Alexandra Lucas. John Cage e Merce Cunningham: dois em um. Disponível AQUI. Acesso em: 02 jul. 2018.
GOMPERTZ, Will. Isso é arte? 150 anos de Arte Moderna. Do impressionismo até hoje. Visualização disponível AQUI. Acesso em: 02 jul. 2018.
[2] Acervo RecorDança é um projeto de pesquisa, documentação e difusão da memória da dança, que, em 2018, completa 15 anos de existência e atuação. Projeto pioneiro no Brasil, o acervo é virtual e reúne, em um sistema de busca na internet, registros digitalizados de fotos, vídeos e programas de espetáculos produzidos na Região Metropolitana do Recife, assim como informações dos artistas e grupos atuantes nesse cenário, cartazes, folders, matérias de jornais. Conta ainda com a produção de pesquisa resultante da atuação de suas integrantes e realizada através do convívio com todo esse material, tais como episódios de podcast, documentários em vídeo, exposições virtuais, registros das ações do acervo e o e-book intitulado “Acordes e Traçados historiográficos: a Dança no Recife”, para download gratuito. Acesse AQUI.
[3] As duas temporadas do podcast e as entrevistas estão disponíveis no site do Acervo RecorDança.
[4] Disponível no site da companhia através desse link.
[5] É possível encontrar mais informações, as entrevistas e resultados do projeto no site do Acervo RecorDança.