#10 Palavra, Imagem e Movimento | Coreocolagens [Ou um Jogo de Inventar Sensações]
Imagem – Felipe Morozine | Arte – Rodrigo Sarmento
“Na dança e na performance, temos uma chance rara de experimentar outros tempos no corpo. O corpo em cena, em experiência, pode propor uma outra temporalidade para ele mesmo e para quem assiste. É um dos raros momentos em que podemos sair da cronologia do relógio, podemos suspender temporariamente essa organização tradicional de um tempo útil que nos consome. É possível trabalhar o tempo como matéria”. Nosso dossiê Palavra, Imagem e Movimento continua com as potentes reflexões da performer Elisabete Finger (SP) em entrevista ao nosso editor-chefe, Márcio Andrade, pensando como a cena pode ser um lugar de encontro entre tempos e afetos que as imagens do mundo nos proporcionam.
Elisabete Finger é performer e coreógrafa, desenvolve trabalhos que perseguem uma ‘lógica de sensações’ e se ocupam de um erotismo da matéria: um corpo-matéria que se funde, colide, atravessa outras matérias. Foi artista residente na Casa Hoffmann (Curitiba), fez parte da Formação Essais no Centre National de Danse Contemporaine d’Angers (França), e do Programa SODA – Solo/Dance/Authorship (Berlim – Alemanha). Além disso, desenvolveu o projeto Discoreografia – Música, Dança e Blá, Blá, Blá – programas em áudio e vídeo, que tratam das relações possíveis entre música, movimento e processos criativos em artes do corpo (realizado pelo Ministério da Cultura e Instituto Itaú Cultural).
Primeiro, Elisabete, gostaria que você fizesse uma apresentação da tua formação e do que vem sendo teu trabalho ao longo desses anos.
Eu sempre estive envolvida com dança de alguma forma, mas foi só aos 17 anos que entrei num curso regular de dança. Morava em Curitiba e comecei a frequentar o Curso Permanente de Dança Moderna, ligado a Universidade Federal do Paraná. Além das aulas práticas diárias, o CPDM oferecia aulas teóricas de anatomia, teoria, história da dança… Foi então que eu comecei a me dar conta de que a dança é uma área de conhecimento e que há muito para se estudar e para produzir dentro desta área. Mas, na mesma época, eu fazia cursinho pré-vestibular, morava com meus pais e sentia essa pressão/preocupação familiar, era importante “ter uma profissão” e a dança não aparecia na lista de possibilidades. Acabei entrando na faculdade de Direito e, durante cinco anos, aquele prédio da UFPR no centro de Curitiba foi minha casa, estudava Direito pela manhã e frequentava as aulas de dança à tarde.
Quando terminei o curso de Direito eu já sabia que não seguiria carreira, já estava completamente envolvida com a dança. Fui estudar ballet clássico intensivamente durante alguns anos, antes de encontrar a dança contemporânea. Nesta época (2003/2004), tive a sorte de pegar os primeiros anos do Centro de Estudos do Movimento, na Casa Hoffmann em Curitiba. Sob a curadoria de Rosane Chamecki e Andrea Lerner, coreógrafas brasileiras radicadas em NYC, a Casa Hoffmann recebeu muitos artistas, nacionais e internacionais, com modos de operar e de criar muito diversos. O programa selecionava sete artistas locais para uma bolsa de residência semestral e eu fui uma das artistas residentes. Aprendi muito com aquele movimento.
Acho que os primeiros anos da Casa Hoffmann foram um choque para a cidade, o tipo de informação que circulava ali era muito nova para todos nós, era desestabilizadora e inspiradora ao mesmo tempo. A forma coletiva e colaborativa como geríamos o espaço da Casa, as mostras de trabalhos que organizávamos e o contato próximo com os artistas visitantes também foram um marco nesse período. Acho que uma comunidade muito bonita se fortaleceu em Curitiba, em torno da Casa. E foi a partir dessa experiência que formamos o Couve-Flor, minicomunidade artística mundial. Mas esse nome só viria mais tarde…
No ano de 2005, eu me mudei para a França, para fazer parte do Essais uma formação voltada para a criação coreográfica, na Escola Superior de Dança do Centre National de Danse Contemporaine d’Angers. O CNDC estava então sob a direção da coreógrafa Emmanuelle Huynh. No Essais éramos 12 jovens artistas e passamos quase 2 anos numa experiência imersiva de criação, na pequena e pacata cidade de Angers. Não havia muito mais o que fazer, vivíamos no centro de dança praticamente dia e noite. O período em Angers foi desafiador para mim, foi de fato sair de um lugar conhecido, e de certa forma confortável, para encontrar outras estruturas, outra língua, e mergulhar em muitas perguntas.
Antes de chegar em Angers, eu estava muito fascinada pela poesia concreta brasileira e sua “tensão de palavras-coisas num espaço tempo”, estava criando danças a partir de estruturas de texto, que eu considerava bastante concretas. Acontece que ao chegar na França os jogos de palavras não faziam sentido para esse meu novo público. Percebi então o quanto eu estava presa a esse “fazer sentido” e percebi quão pouco implicado estava o corpo nestes trabalhos. Ele (o corpo) fazia pouco mais que servir a uma estrutura previamente desenhada num pedaço de papel.
Em Angers, acabei me desafiando a inverter esta ordem: não mais criar primeiro e dançar depois, mas dançar primeiro e, a partir desse corpo em movimento, organizar uma dança. Fui criando espaço para que outras lógicas surgissem e fui aprendendo a ler essas outras lógicas que se apresentam no corpo, que são menos racionais e deterministas, mais sensoriais e sensíveis.
Foi em Angers que comecei as pesquisas para o que eu considero minha primeira obra – o solo Amarelo. Eu havia criado e dançado outras peças antes disso, mas foi com Amarelo que encontrei as bases do que venho trabalhando e investigando até hoje: um entendimento do corpo como matéria, um corpo que encontra sua presença no mundo a partir do contato (ou do choque) com outras matérias.
Eu voltei para o Brasil no final de 2006, quando o Amarelo recebeu o prêmio Rumos Dança e quando estávamos a todo vapor com o Couve-Flor em Curitiba.
O Couve-Flor também foi uma parte muito importante da minha formação. Éramos oito artistas independentes (Eu, Michelle Moura, Neto Machado, Ricardo Marinelli, Gustavo Bittencourt, Cristiane Bouger, Stéphany Mattanó e Cândida Monte) e inventamos juntos uma forma de colaborar e de apoiar os trabalhos uns dos outros. Amadurecemos muito juntos, fomos parceiros, criadores, diretores, bailarinos, produtores, técnicos, administradores de espaço, faxineiros, tudo junto e ao mesmo tempo. E fomos muito amigos.
Aprendi com eles a trabalhar por uma comunidade que coopera, diferente de uma classe que concorre entre si. Aprendi com o Couve-Flor que fortalecer o trabalho do outro fortalece também o meu trabalho. Aprendi que precisamos sempre de um contexto para a arte que fazemos e contexto se constrói com crítica e com afeto. Ficamos mais de cinco anos juntos, e realizamos muita coisa. Acho que o fim do Couve-Flor, em 2011, foi o fim de um modo de organização, outros modos já estavam se abrindo para todos nós. Eu já morava na Alemanha e já começava a pertencer a outros contextos.
Fui morar em Berlim em 2010, para fazer parte do MA SODA – Solo/Dance/Authorship, mestrado em dança pela HZT (Hochschule für Schauspielkunst Ernst Busch/TanzRaumBerlin) e UdK (Universität der Künste). Ao contrário do que o nome pode sugerir, não se trata de um mestrado “para fazer solos” ou “para estudar solos”. A perspectiva é muito mais a de questionar um artista que reflete e que se responsabiliza pela sua obra. É um mestrado completamente prático, onde encontrei espaço, tempo e parceiros para continuar desenvolvendo meu trabalho. Terminei o SODA no começo de 2012 e ainda fiquei mais um ano e meio trabalhando em Berlim. Voltei para o Brasil no final de 2013, e desde então moro em São Paulo com meu marido e minha filha.
Alguns dos seus trabalhos, como Montagem, Nhaka, Amarelo, propõem o diálogo do corpo e do movimento com linguagens artísticas (música, artes visuais etc.) que parecem friccionar um pouco as formas de fazer e ver dança. Como foi se dando teu encontro com essas linguagens e teus interesses criativos nesses processos?
Acho que as fronteiras entre as linguagens artísticas estão bem borradas há algum tempo. Quando eu comecei a criar já era difícil dizer se o que fazíamos estava dentro da dança ou da performance, se se aproximava mais ou menos das artes visuais. Eu costumo não fazer essas distinções. Dentro dos processos de criação eu não considero relevante. Mas é verdade que “os mercados” vão organizar as pastas em gavetas e acabamos caindo dentro de alguma delas.
E acho, no meu caso, que conta um pouco a forma como me aproximei da arte. E me aproximei pela dança, estudei o corpo e o movimento, e me interesso por estas formas artísticas que acontecem no corpo ou que atravessam o corpo de alguma maneira. É esse meu campo de operação e de batalha. Mas vou buscar coisas em outras áreas, vou inventar métodos e formas se for preciso.
Acho que, com Amarelo (2007), eu comecei uma aproximação com materiais, comecei a colocar matérias em contato. Para este trabalho, eu fiz uma massa (5 kg de farinha, água, e um pouco de óleo) e essa massa funcionava como um outro corpo, sua temperatura, tamanho, peso, cor, forma (ou não-forma) me levava a um estado de hiperconsciência da minha temperatura, do meu tamanho, do meu peso… E convocava em mim um corpo-matéria, feito de carne, ossos, líquidos, pele, pelos. Um corpo poroso, que estava o tempo todo atravessando e sendo atravessado por outras matérias. Amarelo nasceu de um processo difícil, solitário e insistente. De muitas horas de movimento, sozinha no estúdio, dançando para construir uma dança.
Nesse processo, comecei a reconhecer memórias, referências, células de movimento que se repetiam e só então fui buscar outros materiais. O corpo era sempre o ímã central, que atraía as outras matérias para o mesmo campo magnético. Além da massa, acabei trazendo uma lona de plástico amarela, um pedaço de goiabada e um cacto. Amarelo foi minha primeira investida num lugar de criação desconhecido, um “não saber”, um terreno movediço. Comecei aqui a acolher uma certa instabilidade como parte do processo, abrindo espaço para outras formas de conhecimento, para outros saberes.
Demorei dois anos para fazer o Amarelo, e também demorei dois anos para fazer o solo seguinte – O. (2011), que criei em Berlim. Aqui os buracos que já apareciam no Amarelo se tornaram ainda mais evidentes, o título já é um buraco. É a forma que a boca toma quando pronuncia a letra “o”. É um anúncio de atravessamentos, de um corpo poroso, num espaço poroso. O. é a radicalização total deste corpo-matéria atravessado por outras matérias, criando outras lógicas. Nesta época fui uma leitora assídua e apaixonada pelo erotismo de Georges Bataille. Fui entender o erotismo como uma ação, ou uma operação, como corpos que se tocam e se atravessam em uma busca voraz por continuidade. Nesse processo de criação comecei a investir e insistir nas conexões improváveis entre matérias orgânicas e inorgânicas, naturais e artificiais. Misturei cabelo com balão, plástico com ovo, pele de bicho com garrafa pet de coca-cola. Todas as coisas se perfuravam, se atravessavam, vazavam ou jorravam.
Acho que as relações espaciais e a escala dos materiais ganharam ainda mais importância no trabalho seguinte, o BURACO. Essa foi minha primeira peça feita em grupo. A primeira vez que as coisas não acontecem no meu corpo mas nos corpos de outros. Eu estou de fora, dirigindo. Em cena estão Cinira Macedo, Jamil Cardoso e Sandro Amaral[1]. BURACO dá continuidade a esse estudo sobre um corpo-matéria em contato com outras matérias, mas percebo que as ações saem da escala do indivíduo e se transformam em situações que envolvem coisas e operações maiores que um corpo. E no BURACO, eu introduzo claramente os princípios de colagem que passaram a fazer parte da minha prática.
Em O. eu já juntava e colava matérias orgânicas e artificiais, tentando manter as fricções geradas nesse encontro. No BURACO, o corte seco entre uma situação e outra aparece diversas vezes, criando buracos reais entre as sequências coreográficas, dando a ver as linhas de corte, as descontinuidades. Acho que esse interesse pela colagem vai se concretizar e se aprofundar com a MONSTRA (2017) [2], quando começo a construir minha parceria com a artista visual Manuela Eichner. MONSTRA é nossa coreografia-colagem para pessoas e plantas, onde efetivamente vamos trabalhar com blocos de ações separados uns dos outros, como se tivessem sido cortados com uma tesoura.
Nhaka (2017)[3] foi criado a convite do Ballet Contemporâneo do Norte, uma cia de dança portuguesa que tem sede na cidade do Porto-PT. A proposta era partir dos elementos do BURACO para criar um novo trabalho, também para crianças. Nesse processo de criação propus muitas fricções entre formas e texturas (usei cabelo, pena de pato, esferas metálicas, e um casulo de plástico gigante) e passei a olhar para esse conjunto de materiais como uma grande assemblage de matérias vibrantes – um conjunto de coisas que agem umas sobre as outras e que tem um certo funcionamento coletivo, uma lógica interna. E o corpo faz parte dessa assemblage, está ao lado das matérias, transformando-as e sendo transformado por elas. “Nhaka é uma dança de pessoas, plástico, cabelo, esferas, um ex-pato e outras coisas que não sabemos” – escrevi na sinopse para a estreia da peça no Weld, na Suécia. Uma referência importante aqui foi o livro da Jane Bennett: Vibrante Matter – a political ecology of things.
Montagem (2016/2017)[4] foi uma “encomenda”. Partiu de um convite do artista Bruno Levorin para um projeto que ele chamou de So you want to be a mover? – coproduzido pelo LOTE e pelo Instituto Goethe. Bruno trouxe uma provocação: “criar uma coreografia sonora para um pequeno trajeto”. Mover (movedor) é entendido aqui como aquele que move coisas, que move o outro e a si mesmo. Então minha tarefa era Transportar, mover, e criar uma coreografia sonora para um trajeto. Tudo isso me levou a pensar em como mover literalmente a música. Como carregar música? Como transportá-la de um lugar a outro? Em termos radicais: levantar, jogar, girar, fazendo deste transporte a própria música e a própria coreografia.
Convidei a musicista Alessa para criar frequências/linhas rítmicas junto comigo. Alessa fabricou um sistema de amplificação de som – móvel, leve e resistente. Cada frequência ocupou uma caixa de papelão, deixando visíveis os “blocos de montar” da composição. O “pequeno trajeto” virou um quadrado, que é percorrido por quatro performers num loop infinito. Cada performer transporta uma caixa de papelão, com um pedaço de música. O público é colocado no centro do quadrado e em volta dele, e tem essa percepção espacializada e material do som. Montagem é literalmente a mixagem mecânica de um som digital, é mover música, e é mais uma vez uma colagem (entre corpos, caixas, cavalos e cabelos).
Voltando à pergunta, acho que as outras linguagens, ou os outros elementos são tragados para dentro deste universo de matérias, onde tudo atravessa e é atravessado, tudo move e faz mover. Há uma “operação erótica” em todos esses processos e obras, que se dá nos atravessamentos de corpos e matérias. Há uma busca por outras lógicas e por um certo encantamento – essa estranha combinação entre deleite e perturbação.
Por meio do Discoreografia, você entrevistou vários artistas de linguagens diversas (teatro, cinema, música, dança etc.). Como esse projeto te influenciou na forma de perceber as interseções entre palavra, imagem e movimento?
Acho que o Discoreografia – música, dança e blá, blá, blá condensou muitos desejos e inquietações. Sempre fui muito apaixonada por programas de rádio, por coisas que você pode ouvir mas não pode ver. Acho que há um imenso potencial criativo aqui. Acabamos coreografando situações imaginárias para completar a informação visual que não temos. Além disso, sempre notei um discurso muito encarnado quando qualquer pessoa fala sobre música, é algo que gera reações físicas, faz fechar os olhos, colocar as mãos no coração, batucar na mesa. E sempre fui muito curiosa para ouvir sobre os processos de criação de outros artistas: como eles fazem o que fazem?
O Discoreografia reuniu tudo isso falando sobre relações possíveis entre música e processos criativos em artes do corpo. O formato do programa era o de um podcast no início. Eu convidava artistas para falar através da música, de uma pequena seleção de cinco a sete músicas. O projeto também era uma tentativa de descomplicar os discursos sobre arte contemporânea, buscando uma forma mais afetiva e direta. O Itaú Cultural foi o grande parceiro para este projeto, que durou quase quatro anos. Realizamos 35 programas, transitando mais tarde do podcast para o vídeo (filmamos com Ney Matogrosso, com o Dream Team do Passinho, e com o cineasta Karim Ainouz) e chegamos a fazer dois programas documentais em contextos criativos importantes no interior do Brasil (Petrolina e Teresina).
Aprendi muito com este projeto, conheci muita gente, aprendi sobre a riqueza de possibilidades e modos de fazer e sobre a generosidade das pessoas em compartilhar. Acho que temos, neste arquivo de 35 programas, algumas vozes muito importantes de artistas da nossa época, criadores que inventaram seus meios e suas estratégias de sobrevivência. Palavra, imagem e movimento se encontram no corpo, de muitas formas possíveis.
Além desses projetos, você também tem outros trabalhos na área audiovisual (como A hopeless enigma with a laughable cruelty e La vie en close) e fotografia (como Monstro). Como a relação com os dispositivos tecnológicos te ofereceram outros modos de entender corpo e movimento nas tuas performances?
Na dança/performance, temos uma chance rara de experimentar outros tempos no corpo. O corpo em cena, em experiência, pode propor uma outra temporalidade para ele mesmo e para quem assiste. É um dos raros momentos em que podemos sair da cronologia do relógio, podemos suspender temporariamente essa organização tradicional de um tempo útil que nos consome. É possível trabalhar o tempo como matéria.
Esses dispositivos tecnológicos também oferecem uma forma de lidar com o tempo como matéria, só que de um jeito muito diferente. Isso me interessa bastante. Podemos prolongar imagens ou faze-las passar num piscar de olhos, podemos ir e voltar, intercalar tempos, criar vazios. Acho que essa dramaturgia do tempo é algo precioso no filme.
E tanto no filme quanto na fotografia há uma possibilidade criação de um ponto de vista, um vetor para as imagens (ou vários vetores) que são também geradores de sensações, de outras lógicas, de encantamentos.
Acho que existem muitas formas de se trabalhar com fotografia e vídeo, acho que caminhei pouco nesse campo. Considero minhas experiências bastante tímidas. Vejo La Vie en Close como uma grande colagem, um filme feito como uma lista de pequenas coisas que se abrem, fecham, vivem ou morrem: um guarda-chuva, um pedaço de plástico, um botão, coisas cotidianas que podem gerar situações fantásticas. Tudo acontece dentro do quadrado-frame do projetor de slides. Gosto da brutalidade dos cortes, da dramaturgia de imagens que passam, isso me levou a estudar montagem e teoria do cinema por um tempo.
A hopeless enigma with a laughable cruelty foi um filme feito a partir de registros de experiências de ensaios, dos meus Estudos para Monstro, em Berlim. Apesar da qualidade das imagens ser “pior”, digamos assim, acho que tem algo de interessante ali. As imagens são consequências de ações, elas contêm as tensões e contradições da ação. Como se a imagem fosse formada a partir de uma ação que explodiu, e se imprimiu no filme.
E Monstro na realidade não é um projeto de fotografia. São dois objetos que fiz costurando, colando, cortando coisas. Mais uma vez são corpos-matéria se atravessando, são colagens de materiais diversos e contraditórios, buscando ativar sensações desconhecidas em quem toca ou em quem vê. As fotografias são registros das possibilidades destes objetos.
Falando sobre outro ponto de vista em relação à imagem: em 2018, você estreou Domínio Público, espetáculo criado com outros artistas (Wagner Schwartz, Maikon K e Renata Carvalho) que também sofreram censuras a partir da disseminação apressada (e desonesta) das imagens de vocês. Como ambas as experiências têm modificado a tua relação com a imagem (de si, do outro etc.) e a publicização dessas imagens?
Domínio Público foi, ao mesmo tempo, um presente e um grande desafio: a peça surgiu de uma proposta de Márcio Abreu e Guilherme Weber, curadores do Festival de Curitiba, e foi um convite muito aberto. Foi um espaço para pensar e agir a partir das situações de censura e dos julgamentos apressados e cheios de preconceitos que envolveram alguns trabalhos no ano passado: O Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu com Renata Carvalho, DNA de Dan, de Maikon K, e La Bête, performance do Wagner Schwartz, da qual eu e minha filha participamos como público.
Quando finalmente nos encontramos os quatro, em março deste ano, para criarmos juntos a peça, a principal questão era: o que mais poderíamos falar para além de tudo aquilo que já tinha sido dito? E como fazer dessa obra algo mais vivo e mais complexo do que este contexto superficial de polêmicas?
O nome do espetáculo apareceu desde o início, pensando sobre o uso desenfreado e irresponsável que fizeram de nossas imagens e de nossas obras, como se houvesse um direito tácito de reprodução e distorção, como se isso estivesse de alguma forma “autorizado”. A partir daí, durante o processo de criação encontramos juntos um grande ícone do domínio público na história da arte. Destrinchamos a história desse ícone, e foi surpreendente e revelador encontrar nele muito da nossa própria história.
Domínio Público coloca em cena quatro monólogos, contando diferentes versões sobre uma mesma imagem, projetando sobre ela diferentes discursos, incluindo verdades e especulações, revelando dinâmicas de poder do mercado da arte, da economia, da política, da vida pública e privada. A quais informações e discursos nós aderimos ou não aderimos? Com qual versão dos fatos colaboramos? O que nos faz replicar uma informação? O que nos interessa e o que nos assusta? E o que tudo isso revela sobre nós mesmos? Não é de hoje que as obras de arte são atacadas, e é evidente que as pessoas olham para a obra e se veem nela de alguma forma. Afinal, só conseguimos analisar ou digerir a obra a partir dos nossos valores, das nossas referências, do nosso repertório de relações e de saberes.
Domínio Público não é uma peça sobre os acontecimentos de 2017, mas criamos um texto, uma obra, uma ação a partir deles. São assuntos que ainda assombram tantas pessoas, haja vista todas as tentativas de censura que ainda tem acontecido com Renata Carvalho e o Evangelho segundo Jesus Rainha do Céu.
A mobilização gerada em torno destes trabalhos, seja no ataque ou na defesa das obras e dos artistas, revela muitas coisas. Quando uma performance gera tamanho constrangimento, fica evidente o potencial da arte em falar e fazer falar a sociedade sobre seus medos e contradições: o corpo nu, o corpo trans, a moral e a religião, o lugar da mulher, da mãe, da artista, da instituição, da polícia e da política.
E revela também o quanto estamos despreparados para lidar com a nossa imagem e com a imagem do outro, com os nossos posicionamentos e com os posicionamentos dos outros, com o nosso corpo e com o corpo do outro, numa época em que tudo parece estar exposto em ferramentas democráticas que servem a todos, mas servem muito mais a alguns.
Notas de Rodapé
[1] Hoje Priscila Maia e Bernardo Stumpf também se alternam nos papeis.
[2] MONSTRA – Direção: Elisabete Finger e Manuela Eichner | Criação e performance: Barbara Elias, Danielli Mendes, Josefa Pereira, Mariana Costa, Patrícia Bergantin | Figurino: Lu Mugayar | Fotografia: Debby Gram | Produção: Carolina Goulart.
[3] NHAKA – Direção e coreografia Elisabete Finger (BR) | Criação e performance Dinis Machado (SE/PT), Jorge Gonçalves (PT/DE) e Susana Otero (PT) | Produção Ballet Contemporâneo do Norte (PT) | Co-produção Weld (SE).
[4] MONTAGEM – Concepção e Coreografia: Elisabete Finger | Música e objetos sonoros: Alessa | Criação e performance: Barbara Elias, Josefa Pereira, Patrícia Bergantin e Natália Mendonça | Pesquisa: Beatriz Sano, Danielli Mendes, Júlia Rocha e Priscila Maia | Colaboração: Bruno Levorin | Figurino: Elisabete Finger e Lu Mugayar | Produção: Carolina Goulart | Fotos: Debby Gram e Tiago Lima | Videos: Haroldo Saboia, Matthieu Rougé e Gabriel Piotto.