#10 Palavra, Imagem e Movimento | Playlists para Catalisar Instantes
Imagem – Nan Giard | Arte – Rodrigo Sarmento
‘As mudanças tecnológicas transformaram nossa maneira de lidar com quase tudo e parece que o teatro foi perdendo a capacidade de dar conta do momento presente. Ao unir os contos de Sherazade aos relatos de refugiados árabes, nos interessa o poder da palavra na urgência de manter algo vivo, seja um espetáculo ou a própria existência’. Com esse depoimento envolvente, nosso dossiê Palavra, Imagem e Movimento continua com uma entrevista do diretor Leandro Romano ao nosso editor-chefe, Márcio Andrade, comentando sobre as pesquisas estéticas da Cia. Teatro Voador Não Identificado (RJ), que envolvem a ideia de ‘apresentações únicas’ de modo a potencializar a efemeridade do fenômeno teatral.
Leandro Romano é diretor e produtor de teatro, formado em Teoria do Teatro (Unirio), integrante da companhia Teatro Voador Não Identificado, com a qual concebeu, dirigiu e produziu Ponto Fraco (2011), Shuffle (2012), Tempo Real (2013), O Processo (2014), pelo qual foi indicado ao Prêmio Shell, O Figurante (2016) e Último Ancestral Comum (2017).
A Teatro Voador Não Identificado é uma companhia de teatro do Rio de Janeiro que, desde 2011, desenvolve uma pesquisa particular nas áreas de dramaturgia e estética teatral caracterizada pela ideia de apresentação única. Ao propor experiências cênicas que entrelaçam ficção e realidade, convocam o espectador a estados de presença que potencializam a efemeridade do fenômeno cênico. Além de Romano, o grupo é composto por artistas que se dividem em diferentes funções: Elsa Romero, Gaia Catta, Isadora Petrauskas, Julia Bernat, Lia Maia e Luiz Antonio Ribeiro.
Atualmente em cartaz com As Mil e uma Noites (saiba mais AQUI), o grupo baseia-se nos famosos contos para realizar 33 sessões únicas em que, a cada noite, Sherazade narra uma história do livro original entrelaçada com entrevistas feitas com refugiados residentes no Rio de Janeiro, que serviram de inspiração para a criação da dramaturgia e fazem parte de uma vídeo-instalação que acompanha a temporada.
Leandro, antes de tudo, gostaria que você fizesse uma breve apresentação da Teatro Voador Não Identificado para quem ainda não conhece vocês.
Somos uma companhia do Rio de Janeiro. Nos conhecemos em 2010 (quando éramos todos estudantes da Unirio) e, em 2011, decidimos nos reunir como companhia. De lá pra cá, montamos sete espetáculos: Ponto Fraco (2011), Shuffle (2012), Tempo Real (2013), O Processo (2014), O Figurante (2016), Último Ancestral Comum (2017) e, agora, As Mil e Uma Noites. O grupo é formado por sete artistas que se dividem em várias funções: além de mim, Elsa Romero, Gaia Catta, Isadora Petrauskas, Julia Bernat, Lia Maia e Luiz Antonio Ribeiro.
Uma das características que cercam os trabalhos de vocês está no interesse em potencializar as ‘apresentações únicas’ dos espetáculos. Como surgiu esse interesse e como vocês foram desdobrando-o nos espetáculos?
Nosso interesse inicial era compreender o papel do teatro no mundo contemporâneo uma vez que as recentes mudanças tecnológicas transformaram a maneira como lidamos com quase tudo. Neste sentido, fomos percebendo a capacidade (especificidade) do teatro em dar conta do momento presente. Apenas o teatro é capaz disso.
Sendo assim, buscamos criar concepções que evidenciem essa característica, o que chamamos de ‘índices de teatralidade’, isto é, dispositivos que só o teatro pode dar conta: impossibilidade de interrupção, presença da plateia, jogos com objetivos pré-determinados e compartilhados, e assim por diante.
Em alguns espetáculos, isso é mais evidente, como é o caso de Shuffle (em que a ordem do espetáculo é determinada por um iPod), Tempo Real (em que os atores incorporam dados do que está acontecendo no mundo durante a apresentação) e O Processo (em que um ator convidado diferente entra em cena sem nunca ter ensaiado).
Em ‘As Mil e Uma Noites’, os contos da princesa Sherazade funcionam como ponto de partida para vocês lidarem com questões como refugiados árabes. O que vocês percebiam como potência nesses contos para tratar de um tema tão duro e complexo?
A ideia surgiu a partir do prólogo-moldura do livro, ou seja, a história da Sherazade que, apenas com o poder da palavra, mantém sua vida. Essa urgência e esse sentido de manter algo vivo foi o que me instigou num primeiro momento (visto que é uma situação análoga ao teatro: contar histórias para uma plateia, ao vivo, tendo que manter o espetáculo vivo).
Em segunda instância, é esta também a condição do refugiado: apenas com a própria palavra (pois o refugiado perdeu tudo), ele precisa dar continuidade à sua vida. Tudo o que ele tem é sua história. No livro, surgem situações semelhantes: há uma quantidade enorme de migrações, lutas, naufrágios etc. Essas situações, de alguma forma, também tangenciam a concepção do espetáculo. Mas, no fundo, tudo se trata do ato de contar histórias.
Acho que a relação com a palavra aparece através de duas linhas: a primeira delas é a do próprio teatro (se entendermos o teatro como uma espécie de materialização da palavra). Isso não tem nada a ver com hierarquia do texto. Mas, obviamente, como se trata de uma adaptação da literatura para o teatro, a palavra do livro se materializa na cena: em alguns momentos é propositalmente redundante, em outros é mais subjetivo.
A segunda linha (que nos interessa em nível pessoal), é a relação entre palavra e poder; quem detém a palavra. Uma coisa é preciso evidenciar: o fato de que, tanto no livro quanto na peça, quem detém a palavra é Sherazade, que a usa para salvar outras mulheres. É um dispositivo estético feminista inegável. Na peça, apenas Sherazade tem o texto. Apenas ela pode ditar o que acontecerá na peça. E isso não é qualquer coisa.
Como parte do processo para esse espetáculo, vocês entrevistaram refugiados residentes no Rio de Janeiro que se desdobraram em uma vídeo-instalação. Como o contato com esses sujeitos alimentou a adaptação do texto?
O processo de entrevistas foi a primeira coisa que nós fizemos. Por conta disso, tudo o que fizemos depois (leitura dos textos, adaptação cênica e dramatúrgica) estava em relação direta com as entrevistas. Mas, é claro, trabalhar com histórias de pessoas reais é sempre muito delicado. Não dá pra ‘forçar a barra’, tentando estabelecer vínculos ou associações que não existem. E também não dá pra desrespeitar ou alterar o que foi dito.
Foi um processo bastante delicado por conta disso. Assim, fomos descobrindo uma maneira de trabalhar com essas duas camadas (a real e a ficcional) que não fosse entregue de bandeja para o público, mas que ao mesmo tempo não se omitisse por completo.
A estrutura geral do espetáculo é um entrelaçamento entre as histórias do livro e os relatos dos refugiados. Uma das características da companhia (e isso vem desde o primeiro espetáculo), é a pesquisa sobre verdade e mentira na narrativa teatral. Até que ponto é possível dizer que algo é real ou não? Por mais autêntico que seja um discurso, ele ainda assim é uma escolha de palavras, de um modo de contar, que não necessariamente condiz com o que aconteceu no passado.
Assim, no espetáculo, tentamos embaralhar essas duas camadas: em momento algum dizemos se algo é mentira ou não, embora não tenhamos modificado os relatos dos refugiados. Há um momento especial no espetáculo (em que eu acho que essas camadas se misturam de maneira feliz) em que um ator faz as perguntas que fizemos aos refugiados para plateia. O que é interessante nesta parte é que não é possível saber se essas perguntas estão sendo de fato feitas para plateia ou se é apenas uma representação da entrevista que fizemos no passado. Em certa medida, é e não é, ao mesmo tempo, as duas coisas.
Nos trabalhos de vocês, o gesto de partir de textos não-dramáticos aparece em dois espetáculos com propostas bem distintas – O Processo e As Mil e Uma Noites. Como vocês percebem esses interesses em partir de outras linguagens para potencializar a efemeridade do fenômeno teatral?
Um dos nossos interesses dentro da companhia sempre foi buscar referências em outras áreas que não o teatro. Cinema, artes plásticas, literatura, e também matemática, direito, psicologia, filosofia etc. Isso, é claro, não é nenhuma novidade em si.
O que procuramos fazer é buscar esses ‘índices de teatralidade’ em outras esferas do conhecimento humano e, num segundo momento, as transpomos para o teatro. Como diz a Josette Feral, a ‘teatralidade’, como o nome faz supor, não é uma característica exclusiva do teatro. Desta maneira, nossa pesquisa é muito abrangente, quase um trabalho de detetive, de tentar encontrar a teatralidade fora do teatro.
Eu acho que, nas últimas décadas, a maior parte do teatro que é produzido no Brasil e no mundo é muito autocentrado. Isto é, o teatro volta-se para o que já se produziu de teatro ou para uma forma fechada daquilo que a sociedade “imagina ser teatro”. O teatro corresponde às expectativas. Sendo que, pessoalmente, eu penso que esse denominador comum do que é teatro é extremamente anacrônico porque não dialoga com a contemporaneidade.
É um pouco lugar comum dizer isso, mas, a maioria das peças que são feitas hoje é “cinema no teatro”: atores sobem no palco, falam um texto decorado, nada muda, todas as apresentações são iguais e não se leva em consideração a presença física do espectador no espaço. Não tenho nada contra esse tipo de teatro, mas, no mundo de hoje (repleto de novidades tecnológicas, onde a ideia de Benjamin sobre a reprodutibilidade técnica foi elevada à maior potência possível), esse não pode ser o principal tipo de teatro que fazemos.
Acho que o teatro está perdendo seu lugar no mundo. O que procuramos fazer é buscar no mundo outras formas e levá-lo para o teatro.