#12 Feminilidades | Romper Correntes, Criar Laços
Imagem – Camila Silva | Arte – Rodrigo Sarmento
‘A partir das pesquisas sobre violência de gênero, começo a perceber como as mulheres reagem à minha imagem. Esse arquétipo de masculinidade agressiva e ameaçadora atinge não somente a mim, mas aos outros homens também. Se nossa imagem causa medo e ameaça, é porque a construímos assim.’
Nosso dossiê Feminilidades continua com uma potente entrevista com os artistas e pesquisadores Andréa Veruska e Wagner Montenegro (NEXTO), que, em um bate papo com nosso editor-chefe, Márcio Andrade, conversam sobre os modos de usar técnicas do Teatro do Oprimido para partilhar histórias de vida relacionadas à violência de gênero.
O NEXTO – Núcleo de Experimentações em Teatro do Oprimido (NEXTO) foi fundado em 2012 pelos atores e arte/educadores Andréa Veruska e Wagner Montenegro, ambos formados pelo Centro de Teatro do Oprimido do Rio de Janeiro (CTO-Rio), à época sob direção artística do Augusto Boal. Desde sua criação, realiza as oficinas Descobrindo a Estética do Oprimido; o espetáculo de teatro de rua Las Mariposas, com encenação de Maria Agrelli; o intercâmbio Teatro na Prisão: Conexão Brasil e Estados Unidos, com o Phoenix Players Theatre Group – PPTG, em Nova Iorque, e a pesquisa Do gênero performativo às performatividades de gênero no teatro de rua, além produções audiovisuais e circulações internacionais.
Andréa Veruska
Atriz e arte/educadora formada na Licenciatura em Artes Cênicas (UFPE), com especialização em Arte/educação (UNICAP). Como arte/educadora, ministrou cursos para a Associação Pernambucana das Profissionais do Sexo (APPS), as prefeituras de Santa Cruz de Capibaribe e de Olinda, o Espaço Criança Esperança de Jaboatão, o Movimento Pró-criança, entre outros.
Como atriz, participou de espetáculos como Luzia no caminho das águas, O amor de Clotilde por um certo Leandro Dantas e De Íris ao Arco-íris.
Wagner Montenegro
Cientista Social, ator e arte/educador, graduado em Ciências Sociais (UFPE), com estudos em Antropologia pela Universidade Nova de Lisboa, Portugal. Desde 2004, trabalha em espaços e projetos socioculturais de desenvolvimento e participação comunitária na Região Metropolitana do Recife. Recebeu formações do Centro de Teatro do Oprimido – CTO-Rio e do Augusto Boal e trabalhou na ONG Pressão no Juízo. Atualmente, também atua como roteirista e documentarista nos filmes Pai Não é Visita e Laço Branco, do Instituto PAPAI.
Veruska e Wagner, primeiro, falem um pouco sobre a formação de vocês e como começaram as relações de vocês com as artes e as temáticas de gênero.
Wagner – Comecei nas artes com quinze anos, na Escola Municipal João Pernambuco, na Várzea, para fazer uma oficina de teatro e minha professora, Lilian Kelen, fazia parte do Pressão no Juízo e me convidou para integrar esse grupo. Lá, queríamos ser mais do que um grupo de teatro, mas nos tornar um Centro de Estudos, Pesquisas e Ações em Teatro, Arte/Educação e Cultura e, depois de um tempo, viramos uma ONG e fizemos parte da diretoria.
No Pressão no Juízo, a gente estudava muito: tínhamos contato com estudos teóricos sobre teatro, sociologia, filosofia etc.. Nesse processo, foi me dando mais vontade de entender o que acontece por trás das opressões: o que fundamenta? de onde elas surgem? Onde estão enraizadas?
Para tentar entender essas opressões, fui estudar Ciências Sociais, mas também tinha crises com a escolha do curso por conta do teatro: durante o curso, se eu saísse da biblioteca com dez livros, nove eram de teatro e um, de sociologia.
Veruska – Comecei a fazer teatro com dezessete anos, quando entrei na Licenciatura em Artes Cênicas (UFPE) e o meu primeiro contato com a metodologia do Teatro do Oprimido (TO) foi em 2003, com o arte-educador Claudio Rocha, coordenador do grupo de Teatro do Oprimido Pressão no Juízo. Ele realizou uma seleção para novos integrantes para dar continuidade aos estudos e pesquisas dessa equipe, fui chamada para participar e conheci Wagner.
Minha relação com a temática de gênero iniciou no Pressão no Juízo, pois ministrávamos oficinas em que criávamos dramaturgias para espetáculos de teatro-fórum a partir de depoimentos colhidos sobre as histórias de vida dos participantes. Em todas as formações que esse grupo fazia, um tema era recorrente: a violência contra mulher.
Com o término do grupo em 2008, continuei fazendo oficinas de TO, mas queria compartilhar estudos teóricos e fazer criações estéticas nessa metodologia com mais pessoas e mais regularidade. Foi quando Wagner e eu retomamos nossos estudos e elaboramos projetos para colocar nos editais de cultura e, em 2012, criamos o NEXTO (Núcleo de Experimentações em Teatro do Oprimido).
Wagner – Meu período nas Ciências Sociais me ajudou a compreender melhor as maquinarias sociais e os fundamentos das opressões, onde tive contato com os debates de gênero e com um termo que eu nunca tinha ouvido: heteronormatividade.
Em 2009, os debates em torno desse tema não estavam tão acirrados como hoje em dia, mas para mim foi bem importante ver que tinha outras pessoas sentindo e estudando muitos sentimentos que eu tinha e não sabia nomear. Aquele foi o primeiro momento na minha vida em que comecei a me interessar mais sobre os textos que falavam sobre gênero e sexualidade para investigar mais sobre o assunto.
Veruska – Essa formação de Wagner foi essencial para nossa pesquisa, pois ele me apresentou essas referências teóricas sobre sexualidades, identidades de gêneros e, sobretudo, bibliografia de autoras feministas.
Wagner – Lembro muito de um artigo que discutia a heteronormatividade em relacionamentos homoafetivos e achei que aquilo era a minha vida, comentava muito com meus amigos da faculdade da época e todos se identificavam muito. Querendo estudar mais sobre isso, entrei em contato com a bibliografia de Foucault e de tantos outros teóricos que me despertaram interesses sobre o tema.
Anos depois, trabalhei no Instituto PAPAI, uma ONG que trabalhava com homens pelo fim do machismo e debatia mais profundamente sobre as masculinidades. Quando eu tive contato com esse trabalho, outros pingos nos i’s foram caindo e descobri que era sobre isso que eu queria falar a vida inteira.
Veruska – O que me instiga bastante na nossa pesquisa é como nosso método de trabalho sempre parte das nossas histórias, das nossas inquietações: quando estamos no processo de criação de performances, os dispositivos que crio, por exemplo, surgem da minha localização social e do gênero que me identifico. Esses estudos foram e continuam sendo importantes para mim porque, a partir deles, vieram os questionamentos de confrontar e perceber onde o machismo deveria ser combatido nas minhas relações.
Wagner – Discutir gênero pela ótica das masculinidades foi um universo que se abriu para mim, porque, de alguma forma, parece que sempre foi algo que já fazia. Quando fundamos o NEXTO, foi um casamento: ficávamos muito tocados com cada oficina que a gente dava, com as histórias que a gente ouvia. Veruska falou que queria fazer um espetáculo sobre violência contra a mulher e começamos a estudar isso de todas as formas: como a gente pode discutir violência de gênero e as nossas performatividades de gênero? Começamos a juntar essas duas coisas: o Teatro do Oprimido e questões relacionadas à violência de gênero.
Veruska – Em 2013, depois de uma avaliação das nossas formações e de uma necessidade minha de ressignificar histórias de violência que vivi, elaboramos uma pesquisa denominada Violência de Gênero – da operação à transformação social através do diálogo. A partir dela, vieram questionamentos que nos permeiam até o momento: Como trabalhar esse tema com as técnicas de Teatro do Oprimido? De que forma as intervenções artísticas realizadas na rua podem provocar reflexões sobre as violências de gênero na sociedade? As pessoas se apropriam do discurso da igualdade de gênero a partir do contato com experimentos estéticos que falam sobre o tema?
Nosso objetivo era fazer nossas produções nas ruas e espaços urbanos e, em 2015, começamos o primeiro processo de criação artística com o espetáculo de teatro de rua Las Mariposas, que aborda a violência contra a mulher. Durante os ensaios, promovemos uma oficina com mulheres que nos relataram suas histórias através de poemas, pinturas e fotografias e experimentamos performances sobre opressões contra a mulher para perceber a reação das pessoas e nos ajudar na elaboração do espetáculo.
Fizemos uma cena de Teatro Invisível, uma técnica do TO em que somente os atores sabem que se trata de uma cena teatral, denominada A coleira. Elaborada por Boal ainda na época da ditadura, a situação é um homem (Wagner) puxando sua esposa (Veruska) por uma coleira de cachorro pelas ruas de Recife.
Desde então, realizamos outras pesquisas que se relacionam com esse tema. Em 2017, pensamos como poderíamos traduzir no corpo as dores, as motivações e os arquétipos do machismo e do patriarcado por meio das intervenções artísticas. Para nos ajudar nesse diálogo, convidamos artistas com experiência em performance e nos estudos do corpo como Flávia Pinheiro, Iara Sales e Maria Agrelli.
Desse projeto, através do incentivo do Funcultura, surgiram a fotoperformance Devir Animal, as performances Mulheres que carregam homens (realizada em feiras e mercados públicos) e Perseguida (inicialmente concebida para acontecer nos transportes públicos, mas foi desautorizada pela METROREC).
Como vem sendo os encontros e descobertas de vocês com as técnicas do Teatro do Oprimido?
Wagner – Costumamos dizer que Teatro do Oprimido é o teatro do diálogo porque o objetivo maior de tudo que a gente faz é criar diálogo entre as pessoas, entre oprimido e opressor. Quando Boal criou o método, ele entendia que a falta de diálogo era o que gerava as opressões, porque, quando não temos diálogo, uma forma de vida se sobrepõe a outra. Porém, quando reconstruímos esse diálogo, conseguimos entender o outro como um ser humano com seus desejos, medos, fragilidades…
Se há essa conexão entre os seres humanos, essa opressão não consegue se sustentar. Por isso, o grande desafio é criar diálogos de verdade, porque não é só uma conversa: o diálogo é diferente do monólogo.
Boal conta que, certa vez, um professor de teatro estava dando aula em um hospital psiquiátrico em Londres e, ao explicar a diferença entre monólogo e diálogo para os alunos. disse: ‘monólogo é quando uma pessoa fala sozinha; diálogo, quando duas ou mais pessoas falam’. Nesse momento, um aluno comenta, dizendo que, na verdade, monólogo era quando uma pessoa falava sozinha e diálogo eram dois monólogos.
Por mais louca que parecesse aquela resposta, aquele aluno estava coberto de razão: se olharmos para o nosso universo hoje, estamos em um mundo de monólogos. As pessoas não estão interessadas em dialogar umas com as outras, mas apenas em expor os nossos pensamentos e querer que o outro aceite.
Mas, em um diálogo, um lado expõe uma visão e o outro lado precisa estar interessado em ouvir e vice-versa. Essas duas visões precisam entrar na mesma atmosfera, faladas e ouvidas, isso é diálogo. A partir disso, podemos criar ações concretas e continuadas, que só existirão se esse diálogo for eficaz.
Se crio um espetáculo para doutrinar, dizer como o outro precisa viver sua vida, não estou criando diálogo. Porém, se crio um espetáculo que propõe uma pergunta como ‘Será que existe outro modo de viver?’ ou ‘Será que há possibilidade de vivermos de outra maneira?’, tenho um caminho para chegar até ele. Esse caminho é o que me interessa nas criações.
Veruska – É importante compreender que o Teatro do Oprimido é uma ferramenta estética que busca contribuir para a transformação social. Boal em seus livros coloca que o objetivo do TO é transformar o espectador em protagonista da ação dramática.
Nas formações que ministramos, os integrantes realizam produções artísticas e, ao mesmo tempo, estão ensaiando e se preparando para ações futuras da realidade. Como ocorre esse ensaio? Através do estímulo e abertura ao diálogo, como Wagner falou.
As pessoas apontam nas histórias a presença das opressões e tentam se posicionar criticamente para buscar coletivamente alternativas concretas para as mudanças. Boal criou um método interessado em investigar formas de democratizar essas formas de expressão porque ele queria que todas as pessoas tivessem acesso à linguagem artística.
Por isso, ele elaborou jogos, exercícios e técnicas diversas que estimulassem as pessoas a descobrirem a Arte e, sobretudo, descobrirem sua própria arte. A gente se identifica com esse pensamento e multiplicamos essas ideias através das nossas oficinas.
Como vem sendo o processo de desenvolver as pesquisas e oficinas de Teatro do Oprimido dentro e fora de Pernambuco?
Wagner – A gente vem descobrindo a nossa forma de fazer Teatro do Oprimido, porque tem algo em que acredito muito: as pessoas não devem servir ao método, o método é que precisa servir às pessoas. Quem diz isso é o próprio Boal.
Quando aprendemos o método, terminou sendo de uma forma muito dura: que havia o certo e o errado; que o opressor era só opressor e o oprimido era só oprimido; como se o método fosse capaz de salvar o mundo. Durante muito tempo, tínhamos certezas muito ingênuas sobre a vida do outro e sobre o que fazer para cada tipo de opressão.
Ainda hoje, vemos essa ideia de opostos de forma muito concreta em outros trabalhos e fomos entendendo que as coisas são muito mais complexas do que imaginamos: as relações de poder são muito mais densas e fáceis de camuflar, uma rede complexa que precisa ser descamada para ser entendida.
Então, hoje olho de uma maneira mais delicada para as histórias de vida que estão sendo colocadas ali, mas muito centrada no trabalho. As pessoas acessam muitos traumas e dores, mas nosso foco é direcionar aquilo para o trabalho da criação: cenas, pinturas, obras. Quando focamos no trabalho, olhamos para as histórias de uma maneira social: não é somente a história de Veruska, de Márcio, de Wagner.
Quando focamos em entender os problemas sociais, partimos das histórias de cada um para compreender as estruturas fundantes daquela situação. Isso faz com que a gente aprenda a complexificar ainda mais aquelas histórias, olhando com delicadeza para não cair no erro de achar fácil se libertar de uma opressão.
Não cabe a mim dizer a uma mulher que sofre violência doméstica para que ela escolha deixar o marido porque as relações são muito mais complexas e é preciso investigar todas as nuances que fundamentam aquela opressão. A maneira que encontramos na nossa trajetória tem sido trabalhar com muita delicadeza nesse jogo. Por isso, cada oficina é sempre muito diferente. Nunca nos vejo aplicando os jogos da mesma forma, pois os grupos são muito diferentes.
Veruska – O nosso grupo leva o nome de núcleo de experimentações em Teatro do Oprimido porque levamos essa prática em nossas pesquisas, formações e criações artísticas e estamos sempre revendo e experimentando as formas de abordar os jogos e técnicas de TO.
No início do NEXTO, tínhamos muita preocupação com o produto artístico final, como apresentações de Teatro-Fórum, exposições das pinturas e esculturas, porque se tratava de uma demanda dos editais culturais – ou seja, estávamos mais focados nos resultados do que nos processos.
Atualmente, diante das avaliações que fizemos, mudamos nossos planejamentos e optamos em dialogar mais sobre a metodologia com os participantes, aprofundar nas técnicas e nas experiências individuais. Dessa forma, as pessoas se sentem mais preparadas para se tornarem multiplicadoras de TO.
No caso, me refiro às formações com até 40 horas/aula, que são as mais solicitadas. Quando temos disponibilidade para uma carga horária maior, pensamos em produtos para expor ao público.
Wagner – É a forma como aprendemos. Em uma semana, não é possível passar por várias técnicas e aprofundar nas questões que nos interessam. A gente terminava passando por uma forma muito superficial nos pontos que mais deveríamos nos aprofundar, já que nosso objetivo final está no diálogo.
A partir dessas pesquisas e oficinas, como vem sendo o processo de transformar histórias de vida em espetáculos como Las Mariposas e diversas performances que comunicam questões que vocês, como artistas, querem comunicar?
Veruska – Foi a partir da minha experiência no Pressão no Juízo que comecei a trabalhar com as histórias de vida das pessoas porque, na universidade, as atividades surgiam sempre a partir de textos de dramaturgos ou teóricos. Nas nossas formações, os relatos de opressão são ouvidos e passam por um processo cuidadoso de ressignificação.
Se precisamos escolher uma história para trabalhar, é necessário que seja um desejo e expresse a realidade do grupo porque partimos de um caso particular (micro) para atingir o contexto social (macro). Assim, partimos de uma situação, como o casamento entre João e Maria, por exemplo, para analisar as relações de gênero, por exemplo, processo que Boal chama de ‘ascese’.
E é nesse processo de ascese que estamos pensando constantemente quando revisitamos o espetáculo Las Mariposas ou criando nossas performances.
Wagner – Para mim, não conheço outra forma de fazer, pois é um caminho natural, sobre minha experiência como artista. Iniciei no teatro com o TO e sempre foi a partir dessas histórias de vida que criávamos tudo.
Quando ministro oficinas de teatro (mesmo quando não são de TO), continuo trabalhando com histórias de vida para integrar a aula, pois não conheço outra forma de fazer arte a não ser criar a partir da minha visão de mundo junto com outras pessoas. É o caminho que conheço, por enquanto.
Como vocês percebem as potências da arte tanto em reproduzir como romper com os imaginários de masculinidades e feminilidades e refletir nossas questões de gênero – e com a ideia de gênero em si?
Wagner – A pesquisa foi o momento que nós conseguimos aprofundar mais nas questões de gênero a partir da performance. Desde o início, somos formados sobre uma estrutura teatral centralizada no texto para criação da cena, por mais que já tivéssemos essa ideia de estar aberto ao jogo. Trabalhar com performance nos deu a possibilidade de abrir mão de texto e da estrutura cênica para valorizar a ideia de sermos simplesmente Wagner e Veruska desempenhando uma ação na rua.
Essa ação precisa criar uma imagem capaz de provocar diálogo. Pensar primeiro nessa lógica para criar uma imagem nos fez deixar de querer mudar o mundo para voltar o nosso olhar para o nosso gênero. Partimos dessa ideia simples: o que queremos? Friccionar estereótipos de gênero. Como fazer isso? Performando nosso próprio gênero.
Existe uma ideia de homem e uma ideia de mulher, que eu não me encaixo, e a gente só queria criar questões para deixar as pessoas falarem sobre isso. Fazer as perguntas sem precisar verbalizá-las. Talvez a performance que mais condense essa forma de elaborar perguntas seja Mulheres que carregam Homens, porque ela não chega a ninguém para perguntar nada, mas as questões começam a surgir naturalmente.
Cada vez mais, entendo que estudar, fazer e falar sobre isso me faz não ter medo e perceber, em mim, o quanto dessa masculinidade padrão ainda é muito forte. Por mais que eu questione esse modelo de masculinidade, parece que passei a vida inteira tentando estar nesse padrão ao mesmo tempo que sempre tinha alguém me dizendo que eu não estava.
Sempre tem alguém que vigia a nossa performance cotidiana. Era sempre difícil para mim aceitar as minhas afetações e estar num ambiente hipermasculino, como uma academia de musculação, por exemplo. Enquanto me vejo correndo atrás desse padrão que, além de não ser saudável, não é o que quero, mas me exercito para ter músculos e procuro roupas que reforcem isso.
Essas questões me deixam envolvido em uma confusão que, para mim, se tornam motor para criação. Não preciso chegar numa resposta de nada, mas só jogar essas questões para o mundo. Não desejo me cobrar solução agora, mas isso se torna potência para criar sempre olhando para a minha experiência, que é diferente da sua e de todas as outras, mas que, em algum ponto, dialogam.
Veruska – Estamos finalizando pelo Funcultura a pesquisa Do gênero performativo às performatividades de gênero no teatro de rua, que leva esse título em referência ao conceito de ‘performatividade de gênero’, apresentado por Judith Butler. Essa filósofa fala que gênero é algo performativo e sua construção acontece através de nossas práticas cotidianas: da forma de falar, se vestir etc.
Esse projeto despertou meu interesse na investigação das masculinidades tóxicas, pois assédios, estupros, violências físicas e/ou psicológicas estão relacionados também com a construção de um ‘ideal’ masculino. Algumas questões me moveram para a criação dos meus dispositivos para essa pesquisa, tais como: o que faz com que você se caracterize como homem ou mulher? Até que ponto estamos presos às identidades de gênero? Por que o homem se sente no ‘direito’ de abusar do corpo de uma mulher?
Acho importante ressaltar que a violência contra a mulher não acontece apenas com a presença do homem, mas também se manifesta só com e entre as próprias mulheres quando reproduzem ideias machistas. Foi através do contato com a arte performática que passei a pensar sobre como performava meu gênero, sinalizar situações que me inquietavam e tentar desconstruir essa valorização das diferenças de gêneros.
Então, a arte foi a ferramenta usada para provocar o diálogo. Eu não me sinto segura nos transportes públicos, assim como eu sei que a maioria das mulheres cis ou mulheres trans também sentem o mesmo e a partir dessa insegurança surgiu a performance Perseguida, no qual me visto com uma espécie de armadura coberta de pregos enferrujados e objetos cortantes para evitar ser tocada nesses locais.
Ser mulher é estar sempre numa situação de vulnerabilidade alta. Todos os dias antes de sair de casa, preciso roteirizar o caminho que vou percorrer e os horários, diferente dos homens que não pensam nessa possibilidade de serem estuprados.
Vejo mulheres da minha família que levaram e ainda carregam os seus maridos nas costas há mais de 30 anos, por exemplo. É visível o quanto é pesado e cansativo pra elas e aí que surge a performance Mulheres que carregam homens pra apontar que este tipo de relação é mais comum do pensamos. E só tive consciência disso quando apresentamos nas feiras e as pessoas manifestaram.
Lembro do depoimento de uma amiga quando viu pela primeira vez a foto que estou carregando Wagner nas costas e ela comentou que se viu naquela imagem e fez com que ela repensasse sua relação com seu marido. Esse comportamento dela pra mim mostra a potência da arte.
Wagner – A partir dessas pesquisas da nossa relação com o corpo, o teatro e a imagem, caiu uma grande ficha. Como eu sou um homem negro que costuma andar bastante de moto, quando me aproximo da calçada para entrar na minha casa e vejo uma mulher passando, identifico o estado de medo em que ela se encontra, segurando a bolsa. Se é noite, a situação é pior.
Começo a perceber como as pessoas reagem à minha imagem, sobretudo as mulheres. Se eu estou simplesmente andando no centro do Recife, pela Av. Conde da Boa Vista, atrás de uma mulher desconhecida e ela olha para trás, ela não vê Wagner porque ela não conhece Wagner. Ela vê um homem negro de barba e, imediatamente, segura a bolsa, se afasta, porque a minha imagem gera nela uma sensação de medo, de insegurança.
Esse é o arquétipo da masculinidade, de que ser homem significa ser agressivo e ameaçador, algo que atinge não somente a mim, mas aos outros homens também. Se a nossa imagem causa impressão de medo, de ameaça é porque nós, homens, a construímos assim. Para combater o machismo (o grande causador dessa imagem masculina ameaçadora) é preciso trabalhar com os homens também.
Como desconfigurar esse modelo de masculinidade? Como que eu posso, com meu corpo, questionar isso? Não sei como fazer isso, mas tudo que eu venho trabalhando tem esse desejo.