#13 Negritudes | Identidades Fluidas, Territórios Flutuantes
Imagem – Arquivo Pessoal | Arte – Rodrigo Sarmento
‘Por vir de um contexto em que as questões negras não eram presentes, reproduzia um acordo de invisibilidade: tinha pouca consciência da necessidade de afirmação e da luta histórica. Se eu queria me afirmar enquanto criador, teria que afrontar essa questão de alguma forma’. Nosso dossiê Negritudes continua com entrevista com o artista Calixto Neto ao nosso editor-chefe, Márcio Andrade, nos ajudando a refletir sobre as contradições e violências que a afirmação do corpo negro traz nos contextos da dança em Pernambuco, Rio de Janeiro e França.
Calixto Neto é bailarino, ator e performer. Formado em Artes Cênicas (UFPE), com passagens por companhias como Escambo, Grupo Experimental, Cia Lia Rodrigues e a Escola Livre de Dança da Maré, no Rio de Janeiro e um mestrado Exerce, em Montpellier, no sul da França.
Calixto, começa falando um pouco da tua carreira e do teu encontro com as artes cênicas.
Eu diria que a Escambo e o Grupo Experimental foram o meu começo na vida artística profissional mais autônoma, porque eles me introduziram no tipo de trabalho que executo até hoje – tanto no que diz respeito à ideia de colaboração e a outras características do tipo de trabalho com que me afino. O jeito de trabalhar, ao mesmo tempo, como intérprete e criador vem sendo uma forma com que mais me identifico, porque me interessa muito esse sentido de emprestar meu corpo para o imaginário de uma outra pessoa, conseguir me ativar para colocá-lo a serviço de uma ideia.
Essa foi a ignição para que eu entrasse na companhia da Lia Rodrigues, um grupo com uma dinâmica de criação coletiva em que eu passei sete anos, porque, até então, eu tinha participado de outros processos de criação na universidade que foram diferentes. Então, foi ali esse começo com a Escambo e o Grupo Experimental, depois teve Fervo com Valéria Vicente, o Santa-Fogo que era um grupo de música que integrei, junto com Carlos Ferrera, Eli Maria, Ana Diniz e Rosália Albuquerque, além de vários percussionistas que passaram pelo grupo. Essa ideia de uma criação compartilhada influencia na forma como penso a criação e a partilha de imaginário.
Quando você começou sua vida artística no Recife, como foi o processo de descoberta e apropriação dessa identidade? Nos trabalhos que você desenvolveu por aqui, você sentia a possibilidade (ou o impulso) de explorar esse processo de formação identitária nas suas pesquisas?
Sim e não. Dentro do meu percurso de intérprete, teve um parêntese de uma criação para um evento que aconteceu no Recife, chamado Plataforma Recife de Dança Contemporânea, executado pelo Movimento Dança Recife. Para esse evento, propus a criação de um solo de vinte minutos que se chamava Ensaio para Narciso. O meu trabalho, até hoje, tem muito a ver com as coisas que me acontecem na vida. Aquilo que me atravessa enquanto experiência, acabo trazendo para um campo de discussão mais aberto em forma de trabalho artístico.
Nessa época, tive uma descoberta pessoal como homem que me atravessava naquele momento que se relacionava ao fato de eu, de repente, começar a me tornar uma figura midiaticamente interessante. Comecei a mudar minha imagem com com dreads, piercing e roupas diferentes e, repentinamente, meu corpo negro terminou se tornando mais ‘vendável’. Ao mesmo tempo, essa imagem de mim se tornava interessante dentro de uma lógica capitalista, mas eu não sentia que era exatamente isso que me representava enquanto pessoa. Eu me perguntava: por que sou interessante desse jeito – e não de outro?
A minha questão estava nessa dicotomia entre continuar sendo um corpo negro com suas complexidades, mas, de repente, atrair interesse de um mundo externo por me mostrar um negro cool, estiloso. Isso me colocava muito em questão: será isso que me define? Essa imagem vendável, que serve para vender óculos escuros… Foi uma época que eu me envolvi, também, com publicidade e me deu um tilt. Terminei deixando essa questão um pouco de lado, até o momento em que ela reapareceu nessa minha experiência radical na Europa, com uma mudança de parâmetros, de vida, de padrões – especialmente sobre mim mesmo.
Talvez por isso que eu tenha considerado inevitável começar assumidamente um percurso de criador com uma performance que se dá como um grito inicial: quem eu sou para mim? De onde eu vim, para onde vou, qual o meu lugar no mundo e qual mundo eu quero inventar para habitar?
No Rio de Janeiro, você integrou a Cia Lia Rodrigues e a Escola Livre da Maré, que tem o objetivo de democratizar o acesso dos moradores da Maré – um bairro periférico do Rio – à arte e à dança articulando ações de educação e profissionalização. Primeiro, apresenta um pouco como funcionava teu trabalho na Cia e na Escola e, segundo, fala um pouco se, por ser um projeto que conecta arte e cidadania, se as questões identitárias relacionadas às negritudes atravessavam os processos criativos dos participantes.
Acho importante diferenciar o trabalho da escola e da companhia, embora estejam interligados. Entrei na Cia. Lia Rodrigues para trabalhar como um intérprete criador da companhia e eles estavam em um momento de transição da parceria com a ONG Redes da Maré e de mudança para um outro espaço. Nos trabalhos artísticos da companhia, o racismo e as negritudes não eram uma questão central, porque a experiência da Lia como criadora não passava pelas questões negras, por mais que ela estivesse muito ligada as questões mais sensíveis da comunidade e das minorias.
Obviamente, essas questões rondavam o trabalho da companhia, pelo fato dela sempre ter bailarinos negros e entender a complexidade do seu trabalho no apartheid que existe entre a Favela da Maré e a Zona Sul do Rio de Janeiro. Ela entendia a dimensão dessa inclusão de pessoas negras na companhia, porque ela se localizava em um enorme complexo de favelas com mais de 160 mil habitantes – em sua maioria, pessoas negras.
Como a escola funcionava no mesmo lugar da sede da companhia, cheguei a dar alguma aulas para os alunos, mas, como essa participação era bastante esporádica, a negritude terminava não aparecendo como uma questão na linha pedagógica que seguíamos na época. Estava presente no trabalho de uma maneira mais subjetiva: falava-se sobre sem falar sobre. Hoje esse empoderamento está difundido de uma maneira bem mais potente, aconteceu no Brasil em um mesmo período, eu acredito.
Agora, morando na França para fazer um mestrado em Montpellier, você criou oh!rage, um espetáculo em que coloca em questão os clichês em torno da negritude. Como tua experiência com a negritude na França motivou a criação do espetáculo?
A experiência da Lia Rodrigues me levou a conhecer outros contextos aqui na Europa e, pouco a pouco, me interessei em me articular mais como intérprete e foi surgindo a ideia de me reaproximar dos estudos a partir de um curso em Montpellier, e acabei vindo para cá. A experiência do mestrado foi muito intensa porque essa mudança para Europa foi muito difícil: mudar de vida, de guarda-roupa, de língua, de ambiente escolar, a perda de autonomia e viver com um orçamento muito reduzido. Como estava em um lugar muito solitário, isso me permitiu muitas descobertas sobre mim mesmo. A realidade educacional da França é muito diferente do Brasil e, no contexto do meu mestrado, existia uma ligação intensa com aquilo que vem sendo produzido para o mercado.
Cheguei ao mestrado sem compreender muito bem quais eram os jogos a serem jogados aqui – o que me tomou tempo e minha saúde emocional -, mas foi um período, ao mesmo tempo, gostoso pelas descobertas e duro pela exigência em olhar para si, de olhar para dentro e para fora, de ver como o mundo me olha. Passei dois anos dentro de uma instituição de ensino com diversas pessoas que passavam por ali para dar aula e fazer residências e vi poucos negros circulando por ali, o que me fazia perguntar: onde estão os criadores negros desse país?
Visualizar essa paisagem deserta terminou sendo uma consequência da minha pesquisa que culminou no oh! rage, baseada em três pilares: o carnaval, a precariedade para criação em performance e as epistemologias do Sul. Essas epistemologias são um conjunto de teorias e práticas que encontrei no sociólogo português Boaventura de Souza Santos, dentre outros, e se relacionam aos modos de pensar e agir que os habitantes do Sul global inventam para fazer face às relações imperialistas pós-coloniais nesse jogo de tensão com a hegemonia do Norte global.
O oh!rage funciona como uma forma de afunilamento dessas vozes das minorias de que tratam esses estudos sobre o subalterno. A partir disso, comecei a trabalhar essa precariedade como concretização cênica: o jeito como a coisa se dava a ver, não somente como contexto de criação, mas também como forma que o corpo assume. Mesmo que eu tenha tido recursos financeiros e estruturais para realizar esse trabalho, o fato de meu corpo estar em um espaço na minha fragilidade enquanto criador tornava a precariedade presente.
Tudo isso me levou a um processo de reeducação porque vim de um contexto em que essas questões não estavam presentes, o que me fazia, de certo modo, reproduzir um acordo da invisibilidade dos artistas negros: é como se existisse um muro que blinda esses trabalhos e eu estava blindado nela. Foi somente quando me afastei dessa falsa ideia de democracia racial que pude enxergar esse pacto de silenciamento de que fiz parte como ator desavisado.
Talvez tenha um pouco de falta de abertura minha mesmo, porque tudo que vinha realizado, até então, tinha sido confortável, possível e acessível, e eu tinha pouca consciência da necessidade de afirmação e da luta histórica. Se eu quisesse dar um passo para frente e me afirmar enquanto criador, teria que afrontar essa questão de alguma forma. Ao mesmo tempo, estou na dicotomia de querer quebrar a lógica de estar na caixinha do criador de causas negras, ao mesmo tempo criando obras artísticas relacionadas às causas negras, afirmando e firmando esse lugar como o ponto de partida do que quer que eu faça.
Agora, gostaria que você falasse de maneira mais geral sobre como percebe os espaços para as expressões das negritudes brasileiras nos últimos anos – na universidade, no campo e no mercado das artes, no cinema e audiovisual etc.? Que diferenças você percebe nessas discussões nos lugares por onde passou – Recife, Rio de Janeiro e França?
Aqui na França, fui chamado para participar de um festival, numa residência chamada Watch and Talk, que consistia em assistir e comentar sobre os trabalhos que faziam parte da programação. Em um momento desses encontros, pedi para as pessoas se juntarem para pensar o que poderia ser um catálogo criado somente com coreógrafos negros e uma das pessoas que estava conosco virou para mim e perguntou ‘o que é um negro?’. Como esse sujeito é um artista experiente, tem uma noção de processo pedagógico artístico que procura vê-lo além dessas questões identitárias, me pergunto até que ponto essa pergunta vem carregada de honestidade e de uma violência, por não considerar a dinâmica que a minha proposta também tinha.
Aqui na França, a palavra ‘raça’ foi eliminada da constituição e dos questionários de recenseamento da população. Então, quando se fala em raça, todo mundo se crispa porque se trata de uma questão muito sensível e que gera muitas questões porque as pessoas são obrigadas a enxergar a culpabilidade branca. Isso torna essa questão ainda mais difícil de ser trabalhada, visto que, no meio artístico contemporâneo, as pessoas costumam ser de esquerda, não-racistas, não-sexistas, não-homofóbicas etc., como convencer que essas posturas são consequência do racismo estrutural e que eles alimentam esse racismo? Então, se trata de um trabalho dobrado! Então, quando eu faço esse tipo de proposição, acontecem situações como essa, o que, provavelmente, não aconteceria se eu tivesse proposto um catálogo com pessoas francesas ou mulheres ou pessoas que tratem da questão LGBTQ etc..
Como estou afastado do Brasil há cinco anos, não consigo ter muita clareza sobre o que acontece, mas me sinto muito conectado com os amigos que eu fui fazendo por conta desse projeto,mas creio que está rolando uma abertura. O que posso dizer, também, é que sou testemunha aqui da política de cotas e todas as políticas afirmativas do governo Lula, cujo projeto teve início ainda do governo do FHC.
Eu sou uma testemunha dessas políticas, pois entro em contato com muitas pessoas que vieram para cá com bolsas do ciência sem fronteiras, antes dela ser cortada, e que antes ainda incluía ciências humanas, muitas dessas pessoas são negras e não teriam acesso a isso fora e dentro do país se não fossem por esses sistemas de cotas. É o seguinte: sistema de cotas é reparação histórica, acho que isso não se discute mais, né? Precisamos, queremos e exigimos que exista.
Creio que existe uma vontade de mudança que é muito presente, pensar o mundo e a sociedade com outros olhares. Isso está presente na vida das pessoas no Brasil, e com a aparição de uma presença mais marcante e afirmada de uma reivindicação das minorias. Acho que a aparição de pessoas como Jota Mombaça, Diane Lima, em Recife, o CARNE – Coletivo de Arte Negra, Jorge Kildery, Orun Santana, Jhanaina Gomes, Anne Costa, Iagor Peres, Luciane Ramos, Anderson Feliciano, Ana Pi e tantos outros. É muito importante fazer e dar espaço para essas pessoas aparecerem, criar esses espaços, porque isso garante que, no futuro, outras pessoas apareçam e cheguemos num cenário menos deserto para os artistas negros.
Mas o que acontece também é que se essas portas não se abrem, a gente vai criando outras portas pra abrir: a gente mesmo cria a porta e a abre. A minha geração está sempre dividindo nas mídias sociais os processos de trabalhos deles e vejo quem são as pessoas ao redor deles e conto nos dedos quem são os negros. Minha geração falhou na inclusão e o fato de estarmos reivindicando esse espaço hoje acontece para que a próxima geração não tenha que passar pelo o que a gente passa. Mesmo que esse espaço que eu e tantos outros temos hoje em dia seja fruto da luta de tantos e tantas que vieram antes de nós. É tudo uma questão de luta e resistência, pois se quisermos garantir um futuro diferente temos que criar esses espaços.
Isso passa pela tomada de consciência do que a gente quer, de onde nós vivemos e o que queremos para o futuro. O que podemos fazer para abrir esse caminho para os próximos que vêm. A luta é diária, precisamos estar atentos e fortes para que a morte não chegue. Finalmente, pessoalmente o que eu acho mais bonito nesse processo de criação do oh!rage, é que ativar esse lugar em mim me deu um gás na criação, uma perspectiva de futuro. Para ser sincero, depois de sair da Lia e chegar na Europa era como se eu vivesse numa bolha de perfeição, discutindo coisas que não me interessavam, ou que não me atravessavam.
Por outro lado, encontrar essa fonte de mudança em mim foi super motivador para continuar sendo artista, porque é um campo muito aberto e cheio de possibilidades de formas de trabalho que eu não encontrava em outros contextos. Isso foi o mais bonito que esse trabalho me deu. E também as parcerias que eu formei a partir dele: com Marcelo Sena, Isabela Fernandes de Santana e Carolina Campos. Essas pessoas foram fundamentais para que esse projeto conseguisse virar uma concretude, pois eu tinha os desejos e a matéria e eles me ajudaram no percurso.