#15 Deslocamentos | O teatro de rua transforma a relação com a cidade?
Imagem – Arquivo Pessoal | Arte – Rodrigo Sarmento
Por Alexandre Falcão de Araújo[1]
Professor da Licenciatura em Teatro (UNIR) e Doutorando em Artes (Unesp)
Em 2017, por ocasião de um trabalho para uma matéria de pós-graduação na área de antropologia urbana, ministrada pelo professor José Magnani, na FFLCH/USP[2], tive a oportunidade de acompanhar a circulação do espetáculo de teatro de rua Era uma Vez um Rei, em montagem do importante grupo Pombas Urbanas[3], de São Paulo, que está completando 30 anos de existência. Minha tarefa foi a de realizar incursões etnográficas (método de pesquisa da antropologia) para analisar a recepção da obra por parte do público, relacionando-a com as proposições da encenação e o projeto do grupo.
A peça, de autoria do chileno Oscar Castro, foi escrita na década de 1970, no contexto da ditadura militar daquele país. Em 2014, o grupo Pombas Urbanas retoma a montagem da obra (que já havia sido iniciada pelo grupo há 20 anos), adaptando-a para a rua (originalmente a peça era para palco), sob direção de Juliana Flory. A fábula mostra a vida de um grupo de catadores de materiais recicláveis: Barulheira, Papelão e Sucata, que trabalham e moram nas ruas. Em determinado momento, Papelão propõe uma brincadeira: ele seria um rei e Sucata o seu súdito. Uma sequência de peripécias se desenrola a partir daí, construindo um jogo de poder, que envolve suborno com cargos públicos, divisão de trabalho e golpe de Estado.
Subjaz à fábula uma perspectiva crítica à exploração do trabalho, demonstrando, em certa medida, como a ideologia burguesa está presente em nossa sociedade, inclusive na classe trabalhadora. O texto trata ainda, de forma alegórica, das diversas estruturas de exploração capitalista organizadas pelo Estado, em suas variadas formas históricas. Na encenação do grupo Pombas Urbanas, a obra ganha contornos contemporâneos, com a inserção de piadas, músicas, imagens e referências ao contexto político brasileiro contemporâneo.
Ao todo, tive a oportunidade de assistir cinco apresentações do espetáculo na capital e no interior paulistas: São Paulo (centro e zona norte); Campos do Jordão; Pindamonhangaba e Presidente Prudente. Compartilho aqui uma pequena parte do relatório de pesquisa etnográfica gerado pela observação participante junto ao público nessas cinco apresentações. Uma particularidade positiva do teatro de rua para este tipo de experiência investigativa é que na rua o público não é “domesticado” de acordo com as normas de comportamento que se espera de um espectador em um teatro em espaço fechado.
A professora Michelle Cabral Fonseca, da Universidade Federal do Maranhão, indica que
[…] a relação espetáculo e espectador, no teatro de sala, é mediada pelos rituais pré-instituídos entre ambos. Ou seja, há uma preparação do público, desde sua saída de casa até sua chegada ao edifício teatral. Este contrato, estabelecido entre artistas e público, inclui a aceitação de um valor financeiro (preço do ingresso) e do lugar onde se dará o espetáculo, como também está implícita a aceitação do ritual da experiência artística, que compõe, desde uma vestimenta de passeio para o espectador, obedecer aos horários e o lugar na plateia, até o silêncio e o aplauso, ao final (FONSECA, 2016, p. 111).
Já no teatro de rua as pessoas que assistem ao espetáculo podem comentar livremente a encenação, podem entrar e sair da roda de público no momento em que quiserem; podem, inclusive, entrar em cena se assim desejarem ou se forem convidadas para tal. O ator e a atriz de teatro de rua constroem seu jogo de cena muitas vezes apoiando-se nas reações de espectadores. Isso faz com que a dinâmica, o calor, a receptividade e a espontaneidade do público sejam fundamentais para o bom desenrolar da apresentação.
Tais características estiveram presentes em todas as apresentações de Era uma vez um Rei que pude acompanhar, em que o público frequentemente tecia comentários em voz alta, os quais pude anotar. Para ter uma visão um pouco mais abrangente, seguindo orientações do professor Alexandre Mate (no contexto da produção de leituras críticas de espetáculos de rua), em todas as apresentações eu circulava ao redor da área onde estava o público, para acompanhar a encenação a partir de distintos ângulos e junto a diferentes grupos de espectadores. Quando percebia alguns espectadores mais empolgados ou inflamados, tentava me aproximar deles e ficar apenas escutando suas conversas e comentários. No momento oportuno, anotava os comentários que havia escutado.
Além da resposta verbal do público, anotava parte das expressões faciais e corporais, reações físicas e movimento de espectadores ao longo da apresentação. Assim como o teatro não é uma arte puramente verbal/discursiva, mas também fortemente corporal/imagética, a recepção de uma obra teatral, especialmente no teatro de rua – onde as pessoas têm liberdade de se movimentar – passa também pela corporalidade. Por fim, somando-se à observação participante junto aos artistas do grupo e junto ao público, realizei também algumas breves entrevistas com espectadoras e espectadores após as apresentações.
De antemão, pude perceber que a experiência do espetáculo é radicalmente diferente de acordo com o local e contexto em que ele é apresentado. Cada uma das apresentações teve características muito específicas. Para não me estender, contarei neste artigo algumas apreensões da apresentação na Praça Monsenhor Marcondes, no centro de Pindamonhangaba, cidade de porte médio, no Vale do Paraíba.
A mesma praça, mas outras relações
Por volta das 10 horas do sábado, quando o espetáculo se inicia, a praça e o centro de Pinda (como carinhosamente é chamada a cidade) já estão bem movimentados. A movimentação cênica começa a atrair a atenção dos transeuntes, as pessoas afluem para a praça, vindas das ruas de comércio.
Alguns senhores, com características talvez de pessoas em situação de rua ou de dependentes de álcool se aproximam, são recebidos pelos atores e atrizes, sabendo que a peça fala desta população e quer também dialogar com ela. Alguns sujeitos um pouco maltrapilhos ficam por lá, aguardando a peça iniciar. Outros saem e dizem que voltam depois. Alguns realmente voltam depois.
Logo no início do espetáculo, Papelão chora em cena e sai para o público, para buscar consolo entre os espectadores: vai até o ombro de um senhor de idade que estava em pé assistindo à encenação. O senhor o recebe bem e faz carinho em Papelão. Papelão aceita o carinho. A cena tem uma singeleza destas que o teatro de rua é especialista em promover: em que outro contexto um senhor, aparentemente heterossexual e com vestimenta de estilo tradicional (trajando roupas sociais simples), de idade avançada, iria fazer carinho em um estranho que acabasse de conhecer na rua?
Este tipo de experiência gerada pelo teatro de rua caminha na direção contrária à atitude blasé apresentada por Simmel (1967) como característica da vida urbana moderna. Certas situações durante apresentações de teatro de rua nos dão indícios de que as experiências estéticas relacionais em espaços públicos promovem, ainda que de forma efêmera, outros tipos de relações sociais, que acontecem nas brechas existentes no sistema capitalista – tal como ele é estruturado nas grandes cidades.
Mesmo que estejamos em uma cidade de porte médio, este tipo de relação de afeto com um desconhecido em espaço público não costuma ser usual, até porque o personagem estava sujo, fedido, e porque há muito preconceito em torno da expressão de afeto entre dois homens, mesmo que esta expressão não tenha cunho sexual, como é o caso da cena em questão.
Assim, as sutis experiências geradas durante a apresentação do Pombas Urbanas em Pinda parecem suspender a realidade cotidiana, de ritmo mais acelerado e transformar o espaço de encenação não somente em um lugar de passagem, como praça pública e via urbana, mas também em um espaço de encontro. Para isso, os participantes do encontro dispuseram de seu tempo e superaram, mesmo que momentaneamente, a indiferença que costuma ser muito comum nos relacionamentos (ou falta de relacionamentos) de um centro urbano.
Desde cedo a praça já tinha um movimento típico de um espaço público de encontro: alguns casais, crianças brincando, mas também uma quantidade significativa de pessoas em situação de rua ou em condições materiais precárias. Aparentemente, as pessoas que de fato estavam habitando a praça, não apenas de passagem, eram predominantemente de classes populares, mas grande parte delas parecia estar somente passeando e “curtindo” a praça.
Porém, com o início da movimentação teatral a quantidade de pessoas habitando a praça aumenta na mesma razão da sua diversidade: pessoas de diversas idades, etnias, estilos e aparentemente de classes sociais também distintas param para ver o espetáculo e para passar cerca de uma hora juntos, em um espaço público. A troca ocorre com os comentários, as risadas, mas também com a simples convivência física no mesmo espaço. Uma senhora loira, de meia idade, provavelmente de classe média, passa um tempo considerável assistindo ao espetáculo ao lado de um senhor também de meia idade, porém com trajes curiosos: lembrando o estilo do cantor Reginaldo Rossi, mas tendo suas vestimentas rotas, sujas e rasgadas.
O tipo de atitude de ambos não significa, provavelmente, uma aceitação mútua, ampla e profunda de suas diferenças, no entanto, parece ir além da negação ou da indiferença, esta última associada à atitude blasé. O pedaço[4] Praça Monsenhor Marcondes durante a encenação de “Era uma vez um rei” parece ser mais diverso, tolerante e propício a trocas afetivas que durante o cotidiano usual da cidade.
Em determinada cena mais adiante, há uma disputa de poder entre as personagens: Barulheira assume a presidência e se volta contra seu amigo Sucata. No público duas senhoras debatem:
“Não era um do lado do outro? Agora tá um contra o outro!?”
“Mas, é assim que funciona, né?”
Tal diálogo remete aos escritos do teatrólogo francês Denis Guénoun (2003), quando diz que o edifício teatral foi limitador do sentido político do teatro, uma vez que colocou o público frontalmente, em fileiras retas e paralelas e (especialmente com a chegada da luz elétrica) também no escuro, de forma que os espectadores não conseguem observar-se entre si. Além disso, as regras estabelecidas para o comportamento dos espectadores nos teatros fechados mantêm o público em silêncio. Segundo o autor francês, a disposição espacial citada e suas regras associadas desarticulam a consciência de pertencer a um grupo, a uma comunidade reunida temporariamente durante o acontecimento teatral. Guénoun defende que a circularidade do teatro (presente e quiçá predominante até os dias de hoje no teatro de rua) é uma predisposição política e, remetendo às assembleias livres, afirma que “o círculo permite a um grupo que ele se reconheça” (GUÉNOUN, 2003, p. 23).
Um espetáculo na caixa preta tradicional provavelmente não teria gerado a oportunidade de diálogo entre as senhoras, relatado anteriormente. Não pude escutar a continuidade da conversa entre ambas durante o desenrolar da peça, mas a curta parte que pude escutar denota que ambas foram provocadas pela cena e talvez deem continuidade a estas reflexões no cotidiano de suas vidas.
O teatro de rua como importante campo de ação cultural
A experiência do teatro de rua tem entre suas características certa imponderabilidade da recepção, além do aspecto efêmero, que é inerente à toda arte teatral, não só à de rua. Porém, no caso específico do teatro de rua, o alcance da relação efêmera se amplia, na medida em que ela envolve também o espaço onde ocorre a encenação e não somente o palco e a plateia stricto sensu.
No teatro de rua, as praças, parques, ruas, terrenos baldios e muitas outras áreas mais são, além de cenário, muitas vezes “personagens” da história a ser contada, influenciando com suas cores, com seus cheiros, sons e sujeitos a trajetória da cena. Nesse sentido, os lugares que recebem as encenações são transformados pela experiência estética.
Todos os lugares onde pude acompanhar apresentações de “Era uma vez um rei” já tinham suas características próprias de ocupação (mais ou menos evidentes) e poderiam se caracterizar como pedaço, uma transição entre os espaços público e privado, que é habitado pelos “chegados”. Na pesquisa que originou este artigo não houve tempo hábil para debruçar-se em cada um dos lugares e acompanhar o dia-a-dia dos mesmos de forma mais contínua e intensa, já que o foco das incursões etnográficas era, prioritariamente, acompanhar a circulação do espetáculo em questão. Porém, cada um dos locais em destaque já indicava, antes das apresentações, as características predominantes de uso e relação com o espaço.
O que foi possível perceber é que tais formas de uso e de relação com o espaço se alteram no momento da experiência teatral. As pistas do campo etnográfico indicam a potência que o teatro de rua tem, com suas provocações e mediações, de promover transformações na constituição provisória do pedaço. O quintal dos moradores se amplia e passa a envolver as praças também para a fruição artística e para, em alguma medida, o estabelecimento de ágoras.
O clima, o horário, o público presente, a geografia do espaço, acontecimentos no entorno, além de diversos outros fatores, influenciam diretamente a recepção de espetáculos teatrais de rua. No entanto, a despeito das diferenças em cada um dos locais, em todos eles a dimensão explicitamente política da obra do grupo Pombas Urbanas ressaltou aos olhos e ouvidos do público (notadamente do público adulto), que, muitas vezes, comentava em alto e bom som as críticas trazidas no espetáculo, aderindo a boa parte delas e talvez refletindo ou buscando entender outra parte.
A reação do público, em regra, tem uma natureza distinta da atitude blasé que é característica dos moradores dos grandes centros urbanos segundo Simmel (1967). Mesmo em apresentações na capital paulista, locais de grande fluxo de pessoas e que já estavam ocupados de outras maneiras tornaram-se mais receptivos com o acontecimento teatral. Neste caso, a citada encenação potencializou a dimensão de trocas, já visíveis ou latentes no lugar.
Mesmo com as contradições, dificuldades e limitações observadas e vivenciadas, o campo etnográfico e a posterior análise me permitem reafirmar o teatro de rua como importante campo de ação cultural, social e política. No entanto, mais estudos e práticas etnográficas e artísticas podem colaborar no amadurecimento da compreensão em torno das especificidades destas experiências, especialmente no que tange ao estabelecimento das relações com as comunidades e com os pedaços, os quais tal modalidade teatral ocupa intermitente ou continuamente.
Referências
FONSECA, Michelle Nascimento Cabral. Performatividade e espaço público: processos comunicacionais no teatro de rua. Tese (Doutorado em Comunicação Social), PUCRS. Porto Alegre, 2016. Disponível AQUI. Acesso em 25 de março de 2020.
GUÉNOUN, Denis. A exibição das palavras: uma idéia (política) do teatro. Tradução Fátima Saadi. Rio de Janeiro: Teatro do Pequeno Gesto, 2003.
MAGNANI, José Guilherme Cantor. Da periferia ao centro: trajetórias de pesquisa em Antropologia Urbana. São Paulo: Editora Terceiro Nome, Coleção Antropologia Hoje, 2012.
SIMMEL, Georg. A Metrópole e a Vida Mental. In: VELHO, Otávio Guilherme. O Fenômeno Urbano. Rio de Janeiro: 1967.
Notas de Rodapé
[1] Ator formado pela Escola Livre de Teatro de Santo André – ELT (2011) e mestre em Artes pela Universidade Estadual Paulista – Unesp (2013). Atualmente é professor do curso de Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia – UNIR, doutorando em Artes pela Unesp e coordenador do grupo de trabalho Artes Cênicas na Rua da Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-graduação em Artes Cênicas – ABRACE.
[2] Tal pesquisa ainda não foi publicada em sua íntegra, entretanto, parte significativa do trabalho foi relatada em: ARAÚJO, Alexandre Falcão de. Reis e plebeus nas ruas: Incursões etnográficas junto à circulação do espetáculo de teatro de rua “Era uma vez um rei”, do grupo Pombas Urbanas. Anais Abrace. v. 18, n.1. 2017. Disponível AQUI.
[3] À época em que acompanhei o grupo, o elenco do espetáculo era composto por Adriano Mauriz, Cínthia Arruda, Juliana Flory, Marcelo Palmares, Marcos Kaju, Natali Conceição, Paulo Carvalho e Ricardo Big.
[4] Pedaço é uma categoria de Antropologia Urbana proposta por José Magnani. Para o autor, o pedaço “[…] designa aquele espaço intermediário entre o privado (a casa) e o público, onde se desenvolve uma sociabilidade básica, mais ampla que a fundada nos laços familiares, porém mais densa, significativa e estável que as relações formais e individualizadas impostas pela sociedade” (MAGNANI, 2003, p. 116). Para o pedaço convergem os colegas, os chegados, os indivíduos que compartilham dos mesmos códigos, em busca de seus iguais.