#16 Urgências do Agora | Entre eu y vc – Ensaio de voo sob o abismo que nós somos

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Arte – Rodrigo Sarmento
Por Agrippina Manhattan
Artista, pesquisadora e travesti
VOCÊ
Quero falar da descoberta que o eu faz do outro. O assunto é imenso. Mal acabamos de formulá-lo em linhas gerais já o vemos subdividir-se em categorias e direções múltiplas, infinitas. Podem-se descobrir os outros em si mesmo, e perceber que não se é uma substância homogênea, e radicalmente diferente de tudo o que não é si mesmo; eu é um outro. Mas cada um dos outros é um eu também, sujeito como eu. Somente meu ponto de vista, segundo o qual todos estão lá e eu estou só aqui, pode realmente separá-los e distingui-los de mim.
(Tzetan Todorov, pág 7)
Quando Cristóvão Colombo chega às praias de Guanahani (nome dado pelo ponto taino que habitava o território cujo nome roubado foi trocado por San Salvador) dá-se início ao processo de invasão dessa terra que chamaram de América. Dá-se início a esse longo processo que tem sido relembrar e procurar nesses nomes traduzidos, roubados e assassinados encontrar os mecanismos que configuram essa invasão enquanto projeto de esquecimento. Tomando a tradução como metodologia, procuro entender como conseguir lembrar dentro das possibilidades e impossibilidades que a língua permite.
O historiador franco- búlgaro Tzetan Todorov vai escrever que com essa chegada, inaugura-se também a concepção e a ideia de outro. Nesse momento dessa história sabe-se que povos europeus já empreendiam ações coloniais sobre nações e povos em terras aonde chamaram África e Ásia e que na construção das suas subjetividades extrativistas, mantinham relações com estes que ali habitavam, apesar de classificá-los. Em outras palavras os outrelizava por assim dizer. Selvagens, exóticas. primitivas, diferentes, sujas, impuras e obscenos, o outro foi criado para dizer tudo o que não era eles (ou tudo o que eles não queriam ser). E também porque tudo que não era eles jamais poderia ser um Eu e assim toda tentativa de contato se tornava um projeto de dominação.
A Europa nesse ponto de sua história conhecia a existência e manteve relações com povos próximos geograficamente de si, especialmente para se apropriar de suas tecnologias, riquezas e conhecimentos cujos avançados produzidos marcaram a mentira que o continente europeu construiu para sim nos processos que configuraram a criação de sua identidade. Primeiro Mundo. Pais Desenvolvido. Ao lembrarmos outros momentos na história onde o encontro desse ou desses povos europeus,, sobretudos aqueles que investiram massivamente em incursões sobre territórios com o intuito de dominação como por exemplo Espanha e Portugal, notamos como esse tipo de pensamento e sociedade são fundadas na ideia da binariedade e da exclusão de maneira que a própria ideia de eu (e de humano também) é circunscrita em território, então é impossível reconhecer o outro como igual ou ainda mais como ser autônomo.
Quando por exemplo Marco Polo lança-se sobre a Ásia em um exercício cartográfico que culmina na chegada em terras do império Chinês e conhecimento das ilhas japonesas, instaura-se uma relação com essa parte do continente eurasiático e uma narrativa que o historiador palestino Edward Said vai se referir como Orientalismo. Said vai descrever isto como a invenção do oriente, ou seja a maneira como a Europa ocidental convenceu e convencionou a si mesma como o centro do mundo e assim moldou o mundo a sua imagem e semelhança não somente como a maneira como entendemos o ocidente como referencial geográfico mas como projeto. Isto vai produzir uma separação entre a Ásia e Europa e consequentemente estabelecer um parâmetro colonial que configura a ideologia que perpassa a construção do limite entre o eu e o outro.
Todorov vai argumentar, que a descoberta do Novo Mundo causa um choque justamente por configurar a elaboração de um novo mundo para os europeus. Digo descoberta pois a invasão dessas terras inaugura um momento onde se instaura uma fratura na historia. Um marco, uma ferida, um trauma, uma descoberta. Até 1492, desconhecia-se a existência de tal continente e dos povos que o habitavam. Existem diversos momentos na construção desse projeto de historia universal em que esses encontros criam uma rachadura no mundo No entanto, é na chegada à América que se dá a sistematização dessa pulsão de morte que hoje conhecemos como projeto colonial e que já se evidenciava a forma de relação que era desenvolvida pelos povos europeus.
Numa leitura feita pelo historiador Daniel Levy ele elucida bem a visão de Todorov quando diz que esse compreender o outro para dominá-lo configura um “amor” assimilacionista mais preocupado com as riquezas produzidas do que pelos novos sujeitos “encontrados” Ao chegarem nesta terra, os europeus empreenderam um projeto que sinto perdurar até hoje: a possibilidade de não só se colocarem como sujeitos universais, mas de se isentarem do peso de serem sujeitos localizados na história e no espaço. Se é possível falar de um lugar onde cada encontro impacta na cosmogonia e no pensamento mas não afeta (ou localiza) quem fala então estamos presenciando o que a professora e artista estadunidense Adrian Piper configuraria como a ilusão de onisciência
Ela em sua pesquisa vai dissertar sobre a ideologia e sobre os mecanismos de defesa que esta produz para proteger a si mesma de evidencias contrarias, garantindo sua manutenção enquanto verdade inabalável. A soma desses mecanismo resulta na ilusão da onisciência , uma experiencia característica de relaciones onde se priorizam nossas percepções sobre o outro ou seja consiste em estar convencido da infalibilidade das suas próprias suposições sobre todos os outros de maneira que você esquece que está percebendo e experenciando outras pessoas de uma perspectiva que é de sua própria maneira tão subjetiva e limitada quanto a do outro. (Piper, pág 6)
Aqui temos a exemplificação do que acontece quando essa ficção é contrastada e entra em fricção com o mundo do outro. A descoberta deste mundo elucida que na verdade toda relação passa por uma ficção, ou seja, uma convenção que se disfarça por uma naturalidade E o que complexifica esse discurso é a possibilidade que esses corpos hegemônicos tem de transicionar entre esses espaços entre o eu e o outro. Criando para si um mundo onde podem falar de tudo e o outro só pode falar de si. Ou seja cria sob a noção de autoria corpos que podem ser autores pois são os donos do mundo e designa para algumas o destino de serem eternos objetos de pesquisa.
você confunde suas experiencias individuais com realidade objetiva e esquece que você tem um self limitado e subjetivo que está selecionando, processando e interpretando suas experiências de acordo com suas próprias capacidades limitadas. Você supõe que suas percepções sobre alguém são verdade sobre ele ou ela; que seu entendimento sobre alguém é compreensivo e completo. Portanto sua concepção de real não é demarcada pela existência de outras pessoas. Ao invés, você os apropria na sua produção de mundo como objetos psicologicamente e metafisicamente transparentes da sua consciência. Você ignora sua independência ontológica, sua opacidade psicológica e, portanto, a essência de sua personalidade. A ilusão da onisciência resulta na falácia do solipsmo.
(Adrian Piper, pág 6)
Agora, em perspectiva contrária, os colonizadores-invasores que vinham sentiam-se na liberdade de estabelecer em território que até o nome roubaram um lugar para espalhar sua doença cujo sintoma é desejar isentar-se da memória da sua divida criaram para si. Um novo mundo para conseguirem a vida que não seria possível de onde vieram. A não tão boa, mas bem velha história: não sou mais europeu, agora sou americano… em outras palavras, não sou branca, sou latina. Nesse mecanismo da miscigenação que permite que uma pessoa branca no Brasil usufrua de todos os acessos que a branquitute possibilita mas recorra a memória de sua bisavó ou mãe racializada para negar a própria branquitute demonstra desconhecer o processo pelo qual foi criada.
Quando catequizaram a força povos não europeus, quando infligiram politicas de embranquecimento por meio de estupros e processos de eugenia para cometer genocídios físicos e epistêmologiccos, eles estavam oferecendo aos “selvagens” a chance de se tornarem civilizados, ou seja, terem passabilidade europeia.Como toda passabilidade é uma ilusão a identidade brasileira serviu como um mecanismo de defesa para a ideologia colonial cisbranca que deliberadamente apagou e destruiu boa parte das culturas, arquiteturas e vidas desses povos que a compõe priorizando a memória e narrativas dos seus componentes dominadores/invasores. Sempre num esforço constante de se reafirmar tradição e não se encontrar contestada em face da mais óbvia evidencia contraria.
Isso resulta na covardia que nós, pessoas brancas, herdamos ao tremer a voz para se dizer branco. Entender esse processo com cuidado e respeito por minhas ancestrais tem se mostrado essencial na ética que venho exercitando. As identidades passadas pelo sangue se apresentam em diferentes complexidades mas se instauram no código penal do brasileiro enquanto múltipla escolha. Branco, negro, indígena, amarelo e pardo. Entender e reconhecer com honestidade os privilégios da branquitude começa em aceitar que disser que desejamos abrir mão do privilégio branco é uma hipocrisia pois o privilegio branco infecta também o mundo o outro. E se herdamos esse controle sob o mundo isso é uma dívida. O que se manifesta fenotipicamente organiza a maneira como a vida se mostra. falar (ou no meu caso escrever) sobre isso deve ser desconfortável e se não estiver sendo talvez nao estejamos cavando fundo o bastante um mundo onde não estejamos no centro não existe entre eu y você há um espaço. um tempo um deslocamento se chama:
TRANSIÇÃO
toda palavra possui espírito. um nome é uma alma provida de um assento. é uma vida entonada em uma forma. vida é o espirito em movimento. espirito é silencio e som, um apelido, um escudo uma palavra pode proteger ou destruir uma pessoa, o poder de uma palavra na boca é o mesmo de uma flecha no arco.
(KAKÁ WERÁ JECUPÉ, pág 11)
É preciso versatilidade (e que as gays não roubem também essa palavra) na relação, pois elas se constroem na complexidade. No cistema de pensamento que a heterocisnorma cria, nossas identidades existem a partir de oposições e diferenças: existe a pobreza, pois existem os ricos que concentram a renda; existem colônias, pois existe a metrópole que a mantem refém; existe eu porque existe você. Nesse modelo, transicionar indica um movimento, sair do ponto a e chegar no ponto b. E essa transição indica, necessariamente, deixar de ser para se tornar. Ao virem para América, os invasores buscam abandonar sua branquitude transformando a culpa que sentiam no desejo colonial dominar o seu e todos os outros para eternamente estarem no centro.
Esta perspectiva, apesar de ser amplamente enraizada em nosso pensamento não é universal e tampouco natural. Um sintoma desse choque epistemológico foi o contato dos invasores com outras mundos que organizam, desorganizam, interpretam e ocultam em mistérios sua relação com a natureza e com o planeta de formas outras. Um exemplo disso, foi o encontro de colonizadores portugueses com parentes tupinambá. Desse encontro, deu-se a construção da imagem que na historia da arte ocidental que importamos se criou-se em torno do ritual, que os invasores nomearam antropofagia. Antropofagia não é uma palavra tupinambá. Antropofagia: (do grego anthropos, “homem” e phagein, “comer”) foi como estes nomearam. Nesse encontro, um dos mais antigos e difíceis problemas de relação se torna evidente: como se comunicar se falamos línguas diferentes ?
Nessa perda, ocorreu o caso daquela que nomearam Tibira, morta em 1614 e catalogada na história como primeiro assassinato por homofobia registrado no Brasil. Os relatos dizem que Tibira, na realidade, seria um termo usado pelos Tupinambás para designar sexualidades homoafetivas. Na verdade, isso sou eu enfeitando, porque o texto fala que seria o termo para índios gays. No século XVII, não existiam indígenas gays, pois o conceito de gay não existia (para quem não sabe gay vem de uma palavra francesa e começou a ser usado enquanto nominação de homens cisgêneros que se relacionavam com outros homens cisgêneros no século XX).
Para além disto, a maneira como Tibira foi descrita diz que “parecia mais homem no exterior, mas era “hermafrodita” e tinha “voz de mulher”. Escolho pensar em Tibira como uma travesti, ainda que ela não o fosse, pois essa palavra ainda não havia. Como falar dela quando não sei seu nome? Como posso acreditar que a língua dos tupinambás traduzia em palavra para designar homossexualidade, se esse relato chega a mim pela voz dos invasores? Existia cisgeneridade em Abya Yala?
Tradução (e transição) é um exercício perigoso, pois muita coisa se perde no meio da jornada entre eu y você. Ainda que os invasores tenham aprendido o vocabulário dos povos originários, somente para começarem a lecionar e impor seu próprio idioma posteriormente, nunca houve um esforço ou uma pesquisa de tentar compreender como estes viam o mundo. Pois na verdade não existia, como Piper coloca, possibilidade de consideram que o outro fosse também um eu logo toda tentativa de mistura se configura enquanto um roubo uma vez que esse jogo opera por regras viciadas e viciantes.
A relação com a floresta é muito exemplificadora, para mim da maneira como esse pensamento é traduzido sobre os corpos: a vida acontece na pluralidade e na diversidade. Como traduzir isso para um povo que pensa por latifúndio e monocultura? Como traduzir Tibira para aqueles que apagaram seu nome? Kaka Jecupé vai ressaltar como a linguagem é importante artefato para demarcar esse limite entre os mundos. Na esfera que tange as identidades existem sempre algo que mora no intraduzível e muitas vezes os corpos são meio e mensagem tão mutuamente poderosos como o arco e a flecha.
A história do Brasil contada por um indígena vai divergir radicalmente daquela contata pela colonização portuguesa. Isto porque enquanto a branquitude insiste em generalizar para criar a narrativa universal algumas corpas se recusam a negarem a si mesmas a ponto de esquecer seus nomes e de onde vem. Enquanto a cisgeneridade escolhe acreditar na mentira que criou as travestis escolhem procurar as verdades que lembraram. A ficção Brasil foi erguida sob genocídios mascarados como progressos e isso é escrito em sangue e carne. O mito da miscigenação enquanto ferramenta para a construção da democracia racial escancara o desespero desse câncer colonial . Criando e recriando narrativas para justificar seu embranquecimento.
Transicionar na verdade é um movimento continuo como as ondas do mar. A história que nos trouxe ate aqui tem possibilitado que os encontros que aconteceram antes se manifestem em nossas vidas. Quando unificaram esse território houve um momento de passagem. Agora, povos que antes se distinguiam entre si passaram a ser unidos tanto por uma banalização de suas identidades (generalização) tanto quanto pelas alianças que formaram para resistir a implementação e manutenção desse cistema (nós) . De maneira alguma se trata de achar um lado positivo o que ocorreu. Nossas alianças são atos de guerra tanto quanto são de amor pois como coloca Todorov : é o amor que esta em disputa. É a possibilidade onde eu e você não sejam antagonismos ou propriedades ou ainda complementares.
É sobre disputar um mundo onde a legislação do amor seja antiética pois amar por si deve ser reconhecido como ética a ser construída .
EU
Eu venho contar uma estória, mais do que apenas uma história. Estória por ter ocorrido, pelo episódio ter sido registrado. Mas esta também é uma História, a nossa. A dos opressores e a dos oprimidos. A do pensamento eurocêntrico e a das epistemologias “amefricanas” (GONZALEZ, 1988), que se constituem na complexa realidade psíquica e cultural brasileira, que nos constitui como sujeitos de uma América Africana La(t/d)ina. Um olhar a partir das vidas trans, tão longamente apagadas, violentadas, assassinadas.
(Jaqueline Gomes de Jesus, pág 2)
Esse texto apareceu e eu estava sem você. Eu sentia uma falta porque eu queria ser nós. Eu aprendeu assim que queria aprender ser eu e só. Quando estou só eu fico pensando nessa diferença que tem entre eu e você. Eu e você foram criados achando um ser o oposto complementar do outro. E isso não é verdade. Porque eu sou eu e você é você e conseguimos ser algo que não é nós dois: algo novo, algo sem nome, algo que é metade do caminho pra nós dois. Por isso é possível se apaixonar.
Escrevendo esse texto, comecei a imaginar que os objetos podiam amar. Comecei a reparar alguns pares, entre eles, percebi que imagino o amor como um par, uma armadilha monogâmica que caio às vezes. Mas reconheço nesse encontro algo que é (ou era) outra coisa, um par me remete ao número 2 que significa estar mais que 1. Não estar sozinha. Um começo para algo mais, para compreender a beleza e o perigo de estar perto. Para aprender a juntar sem se diluir . Para me diluir e não me perder. Para me perder e assim achar você
Não precisa parar em 2, não precisa muito mas pode tudo. Frequentemente os objetos são movidos, uns abruptamente na faxina, outros com a devida atenção. As coisas se aglomeram pela casa, não faço muita faxina, mas tento sempre pelo menos dar um jeito. Nem que seja levando o copo pra cozinha. Tenho me sentindo preguiçosa e acho que sou. Meu pai sempre diz que eu arranjo desculpa pra tudo e ultimamente tem me doído separar esses objetos. Tenho tentado também não acreditar em culpa, fui evangélica e é muito difícil. Mas se quero falar de amor preciso falar de responsabilidade e não culpa.
Dois é um número misterioso, mas frequentemente é associado a binariedade. Isso se dá mais pela construção de pensamento, afinal a matemática, como toda abstração vem do pensamento e de seus limites. Tenho estudado um conceito de nações ameríndias traduzido como two-spirit (dois-espíritos), um termo amplo que engloba o pensamento de diversas
nações acerca da transmutação dos corpos (não só no quesito entre gêneros, mas em alguns momentos transmutando em flor, águia, rio, etc), relações entre individuais do mesmo gênero, outras percepções de gênero.
É um campo muito complexo, cujo significado não é estável de povo para povo nem de corpo para corpo. Ainda estou na superfície dessa pesquisa, mas recomendo o documento produzido pelo National Congress of American Indians (NCAI), que publicou uma relação demonstrando como cada nação norte americana lida com esse mundo e suas possíveis traduções. Um que particularmente me tocou foi a interpretação do povo Navajo, sua palavra nadleehi identifica não só indivíduos que transicionaram de gênero, mas em tradução literal significa: aquele em constante estado de mudança. Transição de gênero consegue chegar perto? Como traduzir algo em constante estado de mudança?
O pesquisador Estevão Fernandes vai discutir sobre o paradigma que essas identidades criam quando contrastadas com o sistema colonial de identificação civil. Pois em vez de operar por oposição (ou hierarquia), como no modelo colonial, a lógica indígena operaria por complementariedade, com os two-spirit podendo circular nos diferentes planos (animal, cosmológico, ritual, etc.) da vida indígena, de modo a trazer equilíbrio. ( Fernandes pág
Então, como pode que eu sou você também e sou eu ainda? Como podemos ser diferentes manifestações de um mesmo? Como pode transmutar? Muitos pensamentos de povos da floresta sabem como manter o equilíbrio entre ser homem e animal. Uma vez que o homem é um animal, e os animais são parentes não humanos. Nesse pensamento nossa alianças existem pois estamos aqui, estamos vivas. A natureza ensina que nada é estável, mas existe um equilíbrio que precisa ser mantido e ensinar a reconhecer nas diferenças que existem enquanto evidencia da riqueza que é o que nos traz para perto. Afinal, transição é movimento que vai e volta.
Existe no discurso teológico judaico-cristão um pensamento que diz que Deus criou tudo porque não queria estar só. Outros dizem que construiu a humanidade para adorar sua perfeição. Isso denota um narcisismo epistemológico intraduzível para a maioria das línguas indígenas. Assim como a própria ideia de arte como a entendemos. A falta de léxico para dimensionar essas relações com os objetos, os corpos, as relações e o mundo em si evidenciam o problema.Entre eu y você algo que nos une, maior que qualquer distância; o desejo de estar junto, construir em comunidade a vida que quero pra eu y você. Tenho pensado em chamar isso de amor, mas não podemos ser ingênuas , as palavras tem historia. As palavras são história.
Jaqueline Gomes de Jesus professora e pesquisadora abre essa parte falando sobre Xica Manicongo. Conta sobre uma rainha que aprendeu e ensina a negociar com o mundo nosso tempo. Xica foi destituída de sua humanidade, racializada, classificada e escravizada. Como poderia qualquer debate de gênero não saudar Xica? Caio em armadilhas coloniais o tempo todo. Ainda não entendi o infinito e por isso acredito na morte. Mas reconheço a todo momento um ciclo que não tem fim.. Ou que tem um nome que eu esqueci faz muito tempo. Talvez um nome que eu ainda vou aprender. Mas isso vem antes da palavra e existe independente dela. Aprendo com Xicas, com travestis pretas a identificar a branquitude como a cisgeneridade dentro de mim. Abandono o sonho da passabilidade enquanto possibilidade de me misturar, de me domesticar. Aprendi com Castiel que se a heresia é um testiculo feminino ao invés de disforia aprendo relações honestas com meu corpo, por meio de exercícios com o espelho e perguntas com o espírito.
Jaqueline fala também sobre a antropóloga e professora Lelia Gonzalez e sobre a possibilidade que ela descreve nessa Amefrica Ladina, a contrapartida ( ou contra-descoberta?) do fracasso total desse projeto chamado America Latina. Ela ensina a subverter a lógica colonial enquanto estratégia de sobrevivência e o faz também a partir da língua. Quando Lelia vai falar do pretugues, ela instaura essa fratura da criação de um novo mundo. Entendendo as possibilidades da língua, do pensamento e das epistemológias ela demonstra as fugas possíveis para abandonar esses fantasmas sem jamais esquecer dessas almas. Para todas de nos que querem e precisam viver nesse mundo, Lelia coloca a fuga como perspectiva de liberdade possível frente ao peso que estar nesse mundo nos coloca. Para evidenciar que não é preciso ou nossa responsabilidade conserta-lo e sim destrui-lo.
Aqui mais para o final me aventuro a falar em nós. Quando me pego pensando no nível atômico. Tudo é construído da mesma matéria, que se estrutura de diferentes maneiras, originando diferentes elementos químicos, que geram diferentes composições orgânicas e inorgânicas que gera uma gama de proteínas que gera um código que gera a célula que gera o corpo que gera eu. E quando antes de Pangea os continentes era um, antes da transição. Movimentos tectônicos aproximaram isso o que a colonialidade tentou aprisionar junto. É preciso lembrar no entanto do aqui e o agora. Nossos corpos estão juntos mas são historicamente e subjetivamente diferentes, então o que em nossas desobediências impossíveis faz com que seja possível uma ficção de coletividade ?
Aqui reconheço gargalhando que não tenho respostas. Esse texto é uma flecha que ainda nao pousou e segue procurando por esse lugar que aqui e agora ainda chamo: Eu e Você
Referências
ALVARENGA, Daniel Levy de. A questão do outro. Rio de Janeiro, Revista Desvio, 2019..
BRASILEIRO, Castiel Vitorino. Estéticas macumbeiras na Clínica da Efemeridade. 4º Encontro: Heresia é um testículo feminino 2020.
EDMO,Se-ha-dom; PRUDEN Harlan. Two-Spirit People: Sex, Gender & Sexuality in Historic and Contemporary Native America. National Congress of American Indians (NCAI)
FERNANDES. E. R. (2017). Quando Existir é Resistir: Two-spirit como crítica colonial. Revista De Estudos E Pesquisas Sobre As Américas, 11(1). Acesso AQUI
_________________Homossexualidade Indígena no Brasil: Desafios de uma pesquisa. Novos Debates: Fórum de Debates em Antropologia / Associação Brasileira de Antropologia, V. 1, n.2, p.26-33, 2014.
JECUPÉ, Kaka Werá. A terra dos mil povos – História indígena brasileira contada por um índio. São Paulo; Petrópolis, 1998- (Série Educação pela paz).
JESUS, Jaqueline Gomes de. XICA MANICONGO: A TRANSGENERIDADE TOMA A PALAVRA. Revista Docência e Cibercultura, [S.l.], v. 3, n. 1, p. 250-260, jun. 2019. ISSN 2594-9004. Disponível AQUI
PIPER, Adrian. Ideologia, confronto e autoconsciência política. Traduzido por Agrippina R. Manhattan. Ideology, confontation and poliical self-awareness. High Paper Magazine, Chicago 2008.
SAID, Edward. Orientalismo : O Oriente como Invenção do ocidente. Traducáo: TOMÁS
ROSA BUENO/ Sao Paulo : Companhia das Letras, 1990.
TODOROV, Tzvetan. A conquista da América, A invenção do outro. São Paulo; Martins fontes 2º edição. Tradução de BEATRIZ PERRONE MOI