#20 Territórios em Trânsito | MECANISMOS DE SUBVERSÃO EM MEDEIA: TESSITURAS DE UMA ENCENAÇÃO
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Arte – Rodrigo Sarmento
Por Everton Kaian (MG)
Graduando em Teatro (UFSJ). Integra Grupo de Pesquisa e Extensão CASA ABERTA e o Grupo de Pesquisa e Artes Cênicas da UFSJ
O que compartilhamos a seguir são vestígios das investigações, reflexões, deglutições, aproximações que levaram à criação do espetáculo. Todo este material integra o Trabalho de Conclusão de Curso para obtenção do grau de bacharel em Teatro do autor, ou seja, a pessoa que vos escreve.
No ínicio, ainda tateando os meus desejos, entendo que queria explorar questões (auto)biograficas e as potências do meu corpo, enquanto pobre, bicha e negra dentro da academia, fundindo-se com a prática teatral. Disso surge a proposta de pesquisar uma poética que contemple todos esses atravessamentos na cena.
Meu encontro com o mito de Medeia se dá por meio da disciplina Voz em cena: contribuições de Chico Buarque para a cena teatral, ofertada, em 2020, pela professora doutora Juliana Mota, dentro do curso de Teatro da Universidade Federal de São João del-Rei, em Minas Gerais. Dentro dessa disciplina assistimos ao espetáculo Gota D’Água [A Seco], e alguma coisa aconteceu comigo.
O texto é uma adaptação de Gota D’Água de Chico Buarque e Paulo Pontes, que por sua vez é uma apropriação do projeto teledramatúrgico Medeia de Oduvaldo Vianna Filho. Aquela montagem a seco, provocou-me a querer saber mais sobre a história daquela mulher, houve uma identificação com aquela figura que sente ódio, raiva, vingança, e é abandonada por um homem que busca poder.
Após algumas coisas assentarem em mim, decido que meu material investigativo seria a mitologia de Medeia, porém nesse percurso algumas questões me surgem, por exemplo: será que me cabe investir tão a fundo em questões sobre mulheres? Como o meu feminino se identifica com aquela figura? Será que sou mais Jasão ou Medeia? O que eu quero descobrir sobre mim? Será que remontar esse texto me bastaria ou precisamos reescrevê-lo? Daria pra interpretar esse Mito a partir do olhar de uma Bicha e não de uma Mulher?
Ainda rondo essas questões, algumas com um pouco mais de clareza outras ainda na penumbra e algumas que nem foram iluminadas e adormecem nas sombras. Porém, uma parcela do que consigo responder é graças às pesquisas, teorias e todas as vozes que vieram antes de mim e se debruçaram a pesquisar sobre os mesmos temas.
A dissertação de Adélia Carvalho, Teatro negro: uma poética das encruzilhadas, é um exemplo disso. Nessa pesquisa Adélia propõe “uma análise da dramaturgia do teatro negro a partir da peça Além do rio (Medea, 1957), de Agostinho Olavo, uma reescritura da tragédia grega Medeia, de Eurípides (431 a.C.)” (CARVALHO, 2013).
Dessa forma, ao analisar adaptações, apropriações e traduções da mitologia, Adélia me apresenta vários olhares sobre a “mesma história”, além de conceitos que me foram preciosos para elaboração deste trabalho. Por exemplo, a noção de reverberação que a mitologia provoca e instaura através dos tempos, como se fosse uma pedra lançada no lago criando ondulações constantes.
É importante atentar para o fato de que olhamos para a tragédia construída por Eurípedes através de lentes contemporâneas, de forma que tendemos a questionar os pensamentos sobre a sociedade e o modo como o texto se estrutura, oriundos de uma outra época.
O que a mitologia irá nos revelar é uma força para ser transmitida pelas tradições orais e perpetuar-se no imaginário popular, sendo transmitida com vários valores e conhecimentos de uma determinada época e espaço, sendo que muitos desses valores escondem opressivas formas de violências que são e/ou foram questionadas pelas sociedades atuais, tais como o machismo e o racismo.
Assim, o que não se pode passar despercebido é como as influências daquela sociedade assim como os pensamentos estruturais daquele tempo marcam e se revelam na obra.
Em seu trabalho “Medeia, Mito e Magia: a imagem através do tempo”, Maria Regina Candido dirá sobre o tempo em que Medeia foi escrita e sobre as estruturas sociais da Grécia Antiga. Na voz da autora, “a narrativa repleta de emoção de Medeia pode ser a história de todas nós, mulheres, que buscamos um lugar de fala e realização no mundo de predomínio masculino” (2006/2007, p.12).
Sobre algumas modificações que o mito de Medeia sofreu através dos anos, a autora aponta sobre uma versão pré e após Eurípedes:
Na tabela, podemos entender que a sociedade ateniense passava por uma transição matriarcal para patriarcal, de ideais onde se cultivava a terra e a tinha como Deusa-Mãe para a perda gradativa dessa relação. Dessa forma, a mulher que estava ligada a terra por sua relação com a fecundidade, fertilidade e por suas fases menstruais que se relacionavam com as fases da lua, deixam de ser centrais e a agricultura e o domínio sobre a terra começa a ser mais importante, ou seja, produzir materiais como o arado para o plantio e domar os animais tornavam-se mais importantes que a figura sagrada do solo e da mulher. O patriarcado ganhava espaço e relevância dentro da sociedade.
Nessa situação, Eurípedes elabora em sua narrativa uma forma para que as mulheres atenienses conseguissem identificar-se com a história. Ele utiliza do casamento de Medeia e Jasão como forma de aquelas mulheres se reconhecerem dentro da narrativa.
Medeía representa a mulher envolvida em circunstâncias hostis, saiu da casa de seus pais muito jovem para acompanhar o seu marido. Acreditamos que houve uma empatia entre o personagem Medéia e o público feminino, pois casar jovem era uma situação familiar com as quais as mulheres de Atenas, presentes no teatro, se identificavam. (CANDIDO, 2006/2007, p.23)
Eurípedes traz a questão de que tanto Medeia quanto as mulheres atenienses não tinham controle sobre seus corpos, eram tratadas como mercadorias para uma sociedade patriarcal.
Medeia estava sobre influência do deus grego Eros, e foi induzida a fugir com Jasão, ajudá-lo no que precisasse e depois se juntar a ele; já as mulheres de Atenas não podiam decidir com quem iriam se casar, essa decisão era tomada por seus pais ou pelos homens da casa. Assim, elas não tinham como exercer a liberdade sobre seus corpos, seus desejos, e tinham que torcer para não se casarem com um “Jasão”, que só as usaria e depois as abandonaria ou, pior, as matariam.
Nesse sentido, podemos perceber estruturas sociais de dominação e poder que vazavam para dentro das estruturas dramatúrgicas da época. Medeia é construída pela dramaturgia de Eurípides, enquanto a mulher bárbara, feiticeira, estrangeira, verborrágica, apaixonada. Porém, algum movimento acontece que instaura essa figura mitológica como um arquétipo potente que reverbera energia até os dias atuais. Do palco da Grécia antiga até a sala de ensaio em São João Del Rei, mais uma vez revisitamos Medeia.
Subversões e mecanismos presentes em releituras do Mito
Ao nos debruçarmos sobre a mitologia de Medeia encontramos várias obras que adaptaram e se apropriaram da versão de Eurípides para atualizar a história. Porém, para os estudos da nossa montagem utilizamos de releituras onde a personagem se modifica e se aproxima da realidade brasileira.
A seguir compartilhamos alguns mecanismos de subversão da história de Medeia que identificamos em cada obra e como em nossa montagem tentamos nos aproximar de tais mecanismos.
Cabe ressaltar que subversão significa destruir ou perturbar a ordem estabelecida, com isso, nossa investigação se dá em entender quais mecanismos ou ferramentas foram ou podem ser usadas dentro das artes cênicas para tensionar e questionar, pela via da arte, as opressões e violências contra corpos não brancos, femininos e marginalizados.
Mata teu Pai – Grace Passô
“Preciso que me escutem” é a fala que inaugura o texto de Grace Passô, em oposição à primeira fala de Medeia no texto de Eurípedes, “Tristeza! Infeliz de mim! Pudera morrer!”, Grace propõe uma personagem que já não está mais em lamento, e sim em um estado de urgência de ser ouvida.
E é a partir da proposta de um monólogo que Grace instaura a voz de sua Medeia, de forma que o diálogo é subvertido para a fala de uma pessoa que precisa dizer coisas e ser ouvida, “…agora não mais interrompida como ocorre no formato do diálogo, mas por meio do monólogo, força motriz que impulsiona o alcance desses discursos”(ARANTES e FERREIRA,2019,p.32), o convite é para escuta.
Ao pensarmos nessa fala verborrágica enquanto ferramenta estética e potencializadora do discurso, fomos percebendo a necessidade de trazer para a cena a voz não só de Medeia mas também de outras mulheres.
As escolhas das canções que compõem o espetáculo são atravessadas por essa tentativa de aproximar a tragédia grega das realidades de mulheres brasileiras, criando espaço para que elas sejam ouvidas em diálogo com a mitologia.
Para isso, temos a presença de Clara Nunes, Leci Brandão, Alcione, Elza Soares. Mulheres: branca e negras, cantoras de samba, que cantam sobre o amor romântico, negritude, o patriarcado e sobre se reinventar através da arte.
Outro ponto importante no texto de Grace é sua abordagem quanto ao fato de Medeia de Eurípedes ser estrangeira. A autora nos apresenta uma personagem que não identifica sua localização, mas pontua que onde vive é cercado por mulheres imigrantes. E é a partir do compartilhamento dessa experiência de ser estrangeira, que a dramaturga nos provoca pensar sobre os afetos possíveis quando se está em diáspora.
De forma que nos é proposto pensarmos o encontro por meio das diferenças, ou então, as diferenças como ponto de encontro, pois é com outras imigrantes que a personagem cria relações, ela compra seus produtos, ela conta seus segredos, ela beija na boca. É uma provocação, pois mesmo com tantas diferenças culturais, étnicas, linguísticas, entre outras, essas mulheres criam um diálogo possível inventando um espaço de acolhimento.
A sororidade e/ou a rede de apoio entre os desterritorializados se fazem essenciais em um mundo contemporâneo onde há confluência de locais geopolíticos e de fronteiras, ao mesmo tempo em que ocorre um cerceamento dessas minorias nas práticas sociais e cotidianas. (ARANTES e FERREIRA. 2019, p.40)
Partindo do imperativo do título: Mata teu Pai!, podemos problematizar o patriarcado, subentendido como a febre sentida por Medeia (TELES, 2021). Enquanto proposta metafórica, a doença que corre nas veias da personagem e a adoece, é o sangue do opressor, dessa forma, Grace provoca uma resolução para acabar com a doença – sistema patriarcal – matar a raiz do problema, o pai.
Na cena intitulada A Festa a personagem se direciona para a plateia com uma arma nas mãos e convoca uma das mulheres a usá-la.
Olha pra mim, para de achar que a gente é um destino, muda essa história. Tem bala aí. E tem gatilho. Tem eu aqui, agonizante, tem meus peitos explodindo. De leite e de dor. Tem você. Mulher como eu. Filha. Tem bala aí. Tem ele que vai chegar. Tem teu braço que você vai levantar e apontar para ele, tem tua mira. (PASSÔ, 2017, p.39)
Essa passagem do texto é marcada por didascálias que indicam sentimentos como por exemplo, “sofre”, “com desprezo e ironia”, “em desespero”, e no término da cena “sons de tiro inauguram a festa”. Esse trecho nos provoca a pensar tanto na construção interna de sentimentos que a personagem percorre quanto na elaboração dos afetos negativos como o ódio e a raiva, que podem ser utilizados como mecanismos de subversão.
Para refletir sobre o ódio e a raiva enquanto mecanismos de subversão trazemos a voz de Audre Lorde em Irmã Outsider, onde ela propõe entendermos esses afetos como, “Raiva – emoção de desprazer que pode ser excessiva ou inapropriada, mas não necessariamente prejudicial. Ódio – hábito emocional ou disposição mental em que a aversão se une à agressividade. A raiva, quando usada, não destrói. O ódio, sim.” (2019, p. 194)
Portanto, de todos os afetos negativos que a mitologia de Medeia provoca, articulando a alusão à violência direta proposta por Grace à perspectiva de Audre Lorde, podemos entender a raiva enquanto força propulsora de mudança.
O desejo de matar, não uma pessoa específica como o pai mas a simbologia que ele representa, traz a possibilidade do uso de um sentimento como a raiva enquanto provocação cênica. Isso é proposto diretamente para a plateia. É como se a questão fosse colocada nas mãos de alguém que assiste a cena, de forma que, desloca o uso do sentimento como apenas uma provocação de estados internos nas pessoas atuantes.
Gota D’Água, de Chico Buarque e Paulo Pontes
Na peça, escrita em 1975, os dramaturgos apropriam-se da mitologia para narrar, por meio de metáforas, a tragédia brasileira. No prefácio são elencados três pontos principais a serem destrinchados pelos autores: o capitalismo, o povo e a crise da palavra.
Em nossa investigação sobre subversão de opressões, observamos que tais pontos fundamentam a elaboração do texto de Gota D’Água e apontam para a reflexão sobre ferramentas possíveis para um Teatro que se pretende subversivo.
Assim, este prefácio se registra como um documento na história da dramaturgia brasileira, possuindo força por si só, mas também se coloca como um convite aos bastidores, uma reflexão sobre o fazer teatral da época, sobre a própria época e as reflexões e angústias que vazam do texto cênico. É perceptível que Gota D’Água aborda o capitalismo, o povo e a palavra, mas o que nos é revelado no prefácio apresenta uma compreensão a mais.
Por exemplo, Chico e Paulo, usam do termo “capitalismo caboclo” para criticar uma forma de capitalismo que se mantinha de forma autoritária, mas não só, pois ela também dependia também das classes médias, “o capitalismo caboclo passou a ser capaz de cooptar os melhores quadros que a sociedade vai formando. E isso, de certa forma, é inédito no Brasil (BUARQUE e PONTES. 2004, p.7), ou seja, os intelectuais e a classe média começaram a afrouxar e se vender ao Estado
A exemplo, na dramaturgia de Gota D’Água, Jasão é o homem que consegue alcançar sucesso com o seu samba, mas ao se tornar popular e tocar sem parar nas rádios, ele vai se esquecendo de sua origem e começa a se tornar uma peça valiosa para Creonte, dono do conjunto habitacional onde Jasão e Joana moram.
Nesse sentido, Creonte é a representação do Estado, da autoridade e do poder, e vê em Jasão a figura de um porta voz que poderia dialogar com a comunidade. Ou seja, para Creonte essa seria uma forte aliança, pois ele entendia que Jasão seria uma figura respeitada entre a comunidade.
Em outras palavras, “‘a peça de Eurípedes dá muita importância à personagem Medéia […]. Mas […] o que está em jogo ali é ambição de Jasão de chegar a ser rei. Isso é o que deflagra a tragédia interna […]. A tragédia, diria, das classes subalternas’“(PONTES apud SOUSA, 2005, p.16).
Em nossa montagem, essa reflexão aparece através da canção Lama de Clara Nunes,
Pelo curto tempo que você sumiu
Nota-se aparentemente que você subiu
Mas o que eu soube a seu respeito
Me entristeceu, ouvi dizer
Que pra subir você desceu
Você desceu
Todo mundo quer subir
A concepção da vida admite
Ainda mais quando a subida
Tem o céu como limite
Por isso não adianta estar
No mais alto degrau da fama
Com a moral toda enterrada na lama[2]
Comentando brevemente os outros pontos do prefácio, ao se referir a forma como o discurso se daria em cena, acreditava-se que era necessário criar uma linguagem que falasse com o povo, que fosse possível atrair o povo para o Teatro, pois “o fundamental é que a vida brasileira possa, novamente, ser devolvida, nos palcos, ao público brasileiro. (…) Nossa tragédia é uma tragédia da vida brasileira” (BUARQUE e PONTES. 1975, p.14).
Assim sendo, há uma preocupação com a forma do discurso, por isso as escolhas de versos rimados, numa tentativa de aproximar de uma linguagem popular, que fosse mais acessível e compreensível para as massas.
Como último ponto, temos a morte de Joana e seus filhos, que representa simbolicamente a perda da liberdade em meio à ditadura militar no Brasil. Se na tragédia grega têm-se a leitura que as motivações de Medeia foram puramente por vingança a Jasão em Gota D’Água isso é subvertido. Citando Dolores Sousa:
O período de Gota D’água, em 1975, foi um momento em que os intelectuais perceberam não conseguir acabar com o autoritarismo a curto ou a médio prazo. Da mesma forma, Joana não consegue matar, na peça, as figuras autoritárias simbolizadas por Creonte e sua filha. (2005, p.21.)
Dessa forma, o que nos é apresentado por Chico e Paulo é uma constatação da realidade, uma angústia: a morte dos filhos se torna a falta de esperança. Já no texto de Grace Passô, a morte aparece como um movimento de (re)ação.
A nossa versão de Medeia
Dramaturgia – Cena – Elaboração – Afetos – Canções
A seguir, elencamos algumas cenas comentando sua elaboração, os lugares que pretendemos provocar, assim como alguns atravessamentos e reflexões do que tecemos. Os títulos que aparecem fazem parte da nomeação dada a cada cena na dramaturgia final de Ensaios sobre as tragédias: Medeia.
Cena I: O grito
“Pai, te escrevo esta carta porque sei que você consegue decifrar os códigos da minha língua. Ainda não podemos olhar olho no olho. Mas no fundo espero que você saiba que eu estou impressa nestas palavras, em cada escolha minuciosa de verbo.
Carrego um apreço pela língua e pela memória pois sei que é dela que virá a reviravolta.
(…)
Me subestimam porque sou mulher mas temem o meu nome, Medeia, e é quando eu desejo trocar de nome, trocar de genitália, só para possuir o poder que foi dado a Jasão, poder que eu dei de mãos beijadas para ele. (…) ” [3]
Cena II: Deboche
Durante os experimentos em sala de ensaio, foi pedido para as atuantes escreverem cartas como se elas fossem Medeia, e o destinatário às vezes se alternava, ora eram cartas para o pai, os filhos ou até mesmo Jasão. O texto presente nesta cena é uma carta escrita por uma das atrizes endereçada a Jasão.
Enquanto experimentavamos a cena percebemos uma quantidade de ódio alimentando a atriz ao dizer o texto, de forma que a cena era apenas um expurgo de sentimentos e afetos, pois havia questões (auto)biográficas na escrita do texto. Porém, precisávamos transformar essa primeira aparição de Medeia em algo que anunciasse a nossa tentativa de subverter e atualizar a figura feminina, e não apenas a restringisse ao lugar de dor e sofrimento.
Com isso, em um dos ensaios foi proposto que a atriz elaborasse sua fala como se debochasse de Jasão, o texto falado seria Medeia em plena consciência dos atos que cometeu e de como Jasão a usou para conseguir o que queria. A voz, a consciência e o deboche seriam o nosso carro de fogo, o nosso mecanismo de fuga e de elaboração frente às injustiças.
E ainda, paralelo a atriz que diz o texto, ouve-se simultaneamente outra atuante cantando Lama, de Clara Nunes, só que numa versão acompanhada por guitarra. Essa sobreposição de vozes cria camadas de interpretação ao mesmo tempo que debocham sobre o mesmo assunto: o homem que para subir na vida perdeu os seus princípios.
Cena III: Casa, pão e cerveja
É marcada por contrastes de outras dramaturgias, provocando outras leituras através de re-interpretações de signos. A favela presente no ambiente/cenográfico de Gota d’água, de Chico Buarque e Paulo Pontes, é recortada para o ambiente interno de uma casa e a intimidade de um casal, a mulher faz o pão para os filhos, remetendo a figuras femininas sempre atreladas ao cuidado dos filhos e da casa, enquanto o homem bebe cerveja sem preocupação alguma.
O ambiente e a movimentação cotidiana que se cria é oposto a linguagem dura e arcaica que as personagens falam, pois o diálogo é extraído da tradução de Medeia, de Eurípedes. O que se criou a partir disso é uma cena em que a figura mitológica de Medeia é evocada, através do discurso verborrágico, mas somos imersos em um ambiente cotidiano, lembrando Gota d’água.
Seria como se a Medeia grega ainda passasse pelos mesmos problemas que Joana de Gota d’água, que a nossa personagem de Ensaios sobre a tragédia, como várias outras mulheres na vida, hoje. Seria como
O velo de ouro de Jasão que em gota d’água é representado pelo seu samba sucesso que toca sem parar nas rádios, em nossa montagem, perde seu espaço e em seu lugar, o rádio é ocupado pela voz de uma mulher negra que canta sobre a decepção de uma porta bandeira, que chora pois perdeu seu amor para outra mulher.
Retiramos o lugar de poder do homem e sua voz que ecoa para dar lugar a uma voz feminina que nos induz a pensar que talvez a mulher chora só porque foi trocada, é ciumenta, assim como na interpretação comum da obra de Eurípedes. E é, através da canção que questionamos esse lugar que foi imposto às mulheres.
Ela pode estar chorando porque perdeu o seu amor, mas não só. Ela chora pois está sendo deportada, pois é estrangeira, pois no final não ter sido valorizada e reconhecida, pois está fadada a ser mãe e dona de casa. Há um reconhecimento com essa mulher, ela é negra, é estrangeira e é mãe.
A canção facilita humanizar a personagem, acrescentando camadas de interpretação sobre sua figura, que é composta por Medeia grega, no discurso, Joana de Gota D’Água, nas ações, o eu-lírico da canção, no subtexto, as emoções e experiências da atriz, na condução dos afetos e interpretação, entre outras camadas possíveis.
A cena é preenchida pela voz de mulheres, no rádio e no discurso verborrágico, são elas que têm o que dizer, elas disputam o lugar de poder que pertence àqueles que são ouvidos.
Cena IV: O Poder
A cena de transição sobre o poder nos ajuda a pontuar dentro da dramaturgia sobre o que estamos falando nesse momento e na discussão que abrimos. Entra em cena uma das atuantes com uma fala épica direcionada para a plateia e provoca os ouvintes a perceber as relações de poder existentes no mito grego e na sociedade atual.
Nunca ser pensado é uma forma de domínio sobre o corpo do Outro, por isso nos questionamos, há algum poder mais soberano do que o poder de ser considerado universal? Não falar sobre a branquitude, a cisnormatividade não é uma forma de achar que esses são os parâmetros que devemos usar para pensar o lugar do Outro?
Nossa crença é que a consciência é o esmeril para afiar a palavra e a voz é o poder que nos resta. Por isso também precisamos que nos escutem e que não esqueçam os ecos das tragédias atuais. Durante essa cena é citado alguns exemplos de tragédias atuais, como por exemplo, a fila que aumentava em Cuiabá, para conseguir ossos com retalhos de carne durante a pandemia da Covid-19[4], a guerra no Oriente Médio, os mísseis e as mortes[5] ou então a lama que deixou pessoas desabrigadas no Rio Grande do Sul[6].
Após essa passagem sobre o poder, as atuantes se montam de Creon e Medeia.
Creon é a figura de poder, o homem que não tem medo, não tem pressa, está no mais alto domínio sobre outras pessoas. Em nossa montagem, ele está em pé sobre a mesa, iluminado por uma lâmpada tubular com luz fria. Enquanto Medeia, que sabe de sua posição e está literalmente abaixo de Creon, não se rebaixa, e usa de seu discurso consciente de seu lugar, compreende o que Creon faz com outras mulheres, a exemplo de sua filha, Glauce, que entrega a Jasão como mercadoria barata. Ela então, utiliza de sua verborragia para conseguir mais um dia de vida. De forma que a articulação de ideias, a força da palavra aqui é usada como mecanismo de sobrevivência, de revogação pelos direitos numa luta diária.
Ato II: A cabeça de Medeia, O caos
O que nomeamos como segundo ato é mais uma tentativa de atualizar a figura de Medeia para as questões atuais, pensar e refletir quais questões podemos elaborar. O que ainda pode ser dito? O que podemos apontar como respostas?
Cena I: O épico
Já na primeira cena desse ato, temos uma fala direta com a plateia. Após provocar uma ambientação dramática e imersiva, acendem as luzes gerais, revelando todo o palco e as atuantes revelam que ponto estamos na história de Medeia e questiona a realidade das mulheres brasileiras em paralelo a mitologia.
Será que existe algum Deus Ex Machina[7] capaz de mudar o curso da vida das mães pretas, das amas de leite, das mães que dobram jornadas de trabalho, das mães estudantes, das mães que nunca quiseram ser mães?
O que se segue a partir dessa cena são vários fragmentos e reflexões, sem acompanhar uma linha cronológica ou uma narrativa linear. Alguns temas são evocados para a cena e através de imagens, sons e afetos apresenta-se uma proposta de discussão.
Cena VII: Samba
Nesta cena, temos um discurso musical e textual atravessado por vários afetos, canções e indagações de Si. É através dos estudos de como são colocadas as mulheres e o amor romântico em algumas canções brasileiras que escolhemos nossas canções.
Trechos de Elza Soares, Alcione, Chico Buarque, Martinho da Vila revelam como essas questões percorrem a criação musical brasileira e em alguma medida contribuem para a reflexão e criação de outros imaginários sobre mulheres e amores. E ainda, intercalado com as canções temos um texto que discute masculinidades, paternidade, e amor, essa palavra que tanto é ensaiada em nossa montagem.
Cena VIII: Outras mulheres que semeiam comigo
A última cena, é uma consagração a união, a força de estar junto, estar junto enquanto mulher, enquanto potência, enquanto semente de uma ideia que é plantada por várias mãos. Ela também não é uma resposta a tudo que foi dito, mas é uma indicação de que acreditamos que é preciso plantar a vida e encerrar a morte coletivamente.
Conclusão
Compreendemos que por meio das adaptações do Mito, alguns dispositivos serviram como mecanismos para pensarmos a nossa dramaturgia e trazer a reflexão sobre possibilidades de subversão de violências.
Em “Mata teu Pai!” observarmos o uso da voz enquanto potência discursiva para ‘verborragizar’ a sua versão da história, assim como o uso da metáfora da doença para criticar o patriarcado, e a elaboração da raiva para mobilização.
Já em “Gota d’água” temos na sinopse um desvelar crítico sobre a situação do país, assim como uma autocrítica sobre quem escreve a dramaturgia. E ainda, o apelo para que o povo e o discurso que alcance as massas voltem para o centro da cena.
Dessa forma, observando, experimentando e criando a partir desses mecanismos, acreditamos que em nossa montagem, o épico, o deboche, as canções populares e o samba formaram um discurso potente que instiga a mais uma vez pensarmos sobre a mitologia de Medeia nos dias de hoje.
Referências
ARANTES, Mariana de Oliveira; FERREIRA, Lorena Ribeiro. “PRECISO QUE ME ESCUTEM”: UMA ANÁLISE DA VOZ DIASPÓRICA DA MEDEIA DE MATA TEU PAI. Cadernos Letra e Ato, Ano 9, N°9, 2019.
BUARQUE, Chico; PONTES, Paulo. Gota d’água. São Paulo: Círculo do Livro S.A., 1975.
CANDIDO, Maria Regina. Medéia, Mito e Magia: a imagem através do tempo. Rio de Janeiro: NEA/UERJ Fábrica do Livro/SENAI, 2006/2007.
CARVALHO, Adélia Aparecida da Silva. Teatro negro: uma poética das encruzilhadas. Dissertação – Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Letras, 2013.
LORDE, Audre. Irmã Outsider. 1ª ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.
MARINHO, Cecilia Silva Furquim. Gota D’Água entre o mito e o anonimato. Dissertação de Mestrado. São Paulo: 2013.
PASSÔ, Grace. Mata teu pai. Rio de Janeiro: Cobogó, 2017.
SOUSA, Dolores Alves Puga. TRADIÇÕES E APROPRIAÇÕES DA TRAGÉDIA: GOTA D’ÁGUA NOS CAMINHOS DA MEDÉIA CLÁSSICA E DA MEDEIA POPULAR. Fênix: Revista de história e estudos culturais, Volume 2, ano 3, Julho/Agosto/Setembro de 2005.
TELES, Euler Lopes. A cura pela violência em mata teu pai e mulher de Juan. Anais V Desfazendo Gênero… Campina Grande: Realize Editora, 2021.
ZAMPERON, Simone. Cenas do teatro de resistência na América Latina: Gota D’Água (Brasil, 1975, Chico Buarque e Paulo Pontes) e Lo crudo, lo cocido, lo podrido (Chile, 1978, Marco Antonio de La Parra). Dissertação de Mestrado. Foz do Iguaçu, 2015.
Notas de Rodapé
[1] Tabela proposta por Maria Regina Cândido, ilustrando a posição de Medeia na historiografia. (CÂNDIDO, 2006/2007, p. 59)
[2] A música Lama, de Clara Nunes, composta por Paulo Marques e Aylce Chaves, foi lançada pela intérprete em 1976 no álbum Canto das Três Raças. Disponível AQUI. Acesso: 05/11/2024.
[3] Trecho da dramaturgia Ensaios sobre as tragédias: Medeia (arquivo pessoal)
[4]G1. Fila para conseguir doação de ossos é flagrante da luta de famílias brasileiras contra a fome. G1. 25 jul. 2021. Disponível AQUI Acesso em: 13 set. 2024.
[5] BBC. China proíbe construção de novas igrejas e diz que religiões não podem “subverter” o governo. BBC News. 30 ago. 2023. Disponível AQUI Acesso em: 13 set. 2024.
[6]UOL. Lama e destroços: imagens impressionam com o que sobrou das cidades no RS. UOL Notícias. 16 maio 2024. Disponível AQUI Acesso em: 13 set. 2024.
[7] Deus ex machina é um recurso narrativo onde um conflito complexo é resolvido de forma repentina e, muitas vezes, sem uma preparação adequada ao longo da trama. Como se milagrosamente descesse do céu alguma solução para resolver o embate vivido pelas personagens.