#20 Territórios em Trânsito | Teatro Afeto: Relação Comunitária entre Territórios Teatrais
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16Arte – Rodrigo Sarmento
Por Layla Alves Tavares (GO)
Atriz, arte educadora e pesquisadora goiana. Graduanda em Teatro (UFG) e Artista pesquisadora no Teatro Afeto, com formação em interpretação teatral e técnica em Teatro
Takaiúna Correia da Silva (GO)
Dramaturga, criadora da Escola Latino-americana de Dramaturgias Emergentes. Doutoranda e Mestra em Artes Cênicas (UFU)
Teatro Afeto nasce no ano de 2023, como núcleo aberto de pesquisa em Dramaturgias Emergentes coordenado pela professora Ms. Takaiúna, vinculado ao Teatro Ludos, Grupo de Pesquisa e Extensão da Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás – EMAC-UFG, coordenado pela professora Dra. Clarice Costa. Inicialmente a professora Ms. Takaiúna, criadora da metodologia de desenhos dramatúrgicos intitulada Dramaturgias Emergentes[1] fez um convite aberto às graduandas de Teatro Licenciatura e à comunidade externa para composição do grupo.
O núcleo, hoje, conta com três mulheres participantes e tem realizado pesquisas teórico-práticas com as artistas/pesquisadoras Layla Alves, Sarah Vieira, graduandas em Teatro Licenciatura – EMAC-UFG com a direção de teatro e orientação dramatúrgica da doutoranda em Artes Cênicas pela Universidade Federal de Uberlândia – UFU, Takaiúna, desenvolvendo um trabalho de construção cênica e práticas a partir da metodologia Dramaturgias Emergentes.
Dramaturgias Emergentes
Dramaturgias Emergentes é uma metodologia de experiência em criação de desenhos de narrativas para cena, que compreende os elementos cênicos em territórios que se relacionam entre si de forma comunitária[2]. A relação comunitária entre os territórios da cena se dá no processo de criação, sendo assim a metodologia apresentada se desenvolve dentro de uma base comunitária mas que é distinta de um Teatro Comunitário, pois esse pode não se desenvolver estruturalmente numa base comunitária e realizar um processo de montagem de um espetáculo a partir de uma estrutura de relação de base grega, em que o texto pode estar no centro de sua composição. Ressaltamos que dentro da metodologia Dramaturgias Emergentes, os territórios/elementos da cena se relacionam sem que um deles esteja a serviço do outro, como por exemplo: uma atriz a serviço de um texto.
O Território do Afeto
Para o desenvolvimento do trabalho com a metodologia citada, os processos se dão inicialmente com o Território do Afeto, primeiro território convidado a compor a criação cênica. O Território do Afeto é composto por práticas de escuta presente com propostas de trabalho em que as participantes possam a partir do afetar-se impulsionar-se a ação. As práticas do Território do Afeto foram desenvolvidas para ampliação dos sentidos, numa escuta expandida do fazer por meio do olhar, o tocar, o respirar e o sentir seu Território do Corpo e as relações que emergem ao encontrar o Território do Corpo de outra atriz. O sentir é desenvolvido tanto para que atriz possa conhecer o seu próprio Território do Corpo em tempo presente como também possa estabelecer conexão como o Território do Corpo de outra atriz, essa conexão é estabelecida pela mediação do Território do Afeto, para que a partir das práticas propostas, como por exemplo a prática de sentar-se em frente uma à outra, construam experiências juntas. Logo, o afetar é um dispositivo de ação e integração entre as intérpretes, a fim de que as impressões que surgem deste contato possam ser vistas e refletidas desde o primeiro encontro, para que se estabeleça relações de confiança e existam histórias em comum. Assim, os primeiros movimentos dentro do processo da cena acontecem por motivo do afeto.
Tendo ciência de que afetar é “um encontro presente entre ações, um ato de transformação, capaz de produzir afecção, provocar uma resposta” (ANDRADE, 2021, p. 170) trabalhar com o dispositivo do afeto como impulsionador da ação é considerar que os movimentos realizados pelas intérpretes sejam carregados de presença, por acontecerem em resposta à escuta ampliada uma das outras e de outros elementos compositores da cena que foram emergindo no processo ou que se reconhecem a medida em que o processo se desenvolve. No espaço de trabalho emergem outras narrativas que atravessam a cena a partir da reflexão: de que é feito o piso da sala? Se é de madeira, de onde veio? Quem a colocou nesse espaço? O trabalhador que construiu já assistiu algum espetáculo de teatro? Qual a luz ou sua ausência que atravessa o ambiente? O que sentimos em relação a todos esses elementos que compõem o nosso fazer? Essa escuta afetuosa compõem novas histórias compartilhadas em relação comunitária com os elementos/territórios que emergem e impulsionam a criação da cena. As relações de escuta e ações-respostas, têm como principal objetivo o desenvolvimento de experiências comuns no núcleo de pesquisa, pois são essas memórias compartilhadas que serão a base de nosso processo, a partir uma relação comunitária que emerge do Território do Afeto em escuta, por exemplo, ao chão da sala. O chão já não será mais percebido como um elemento servidor da atriz para a sua criação, mas como criador, ele e a sua biografia atravessam o processo de montagem, trazendo novos sentidos. O Território do Afeto faz emergir novos territórios para o processo de montagem de ½ kg de Coração, como o Território da Luz e o Território dos Objetos.
Durante o processo de montagem do espetáculo ½ kg de Coração, todas as atrizes são necessariamente dramaturgas, contam suas histórias, comunicam, dialogam com outros elementos de cena. É importante que cada artista envolvida no processo de criação tenha consciência da dramaturgia que está construindo para a cena.
A decisão do que será lembrado/esquecido cabe à atriz. Direção e texto não podem dar sentido à cena sozinhos, e muito menos dizer o motivo pelo qual a atriz comunitária, o seu corpovoz, estará no palco. Essa resposta é dada pela atriz: o que você (atriz comunitária) movimenta em seu corpovoz na escuta da vozterra em seu território? Por isso, seja rebelde ao ser dirigida. Dê significado a cada palavra, gesto… Escute a comunidade e seu corpovoz, e decida o quer que habite seu corpo na cena, abra janelas dentro de si (SILVA, 2021, p. 60).
Assim, como a interpretação que acessamos quando falamos em dramaturgia tem cada vez mais se ampliado, nos fazendo ter consciência que vai muito além do texto escrito, a imagem da dramaturga também precisa ser ampliada. Dramaturgas trabalham no encontro, possuem distintos materiais de escrita cênica, algumas escrevem com a luz, outras com as sonoridades, outras com os corpos e o certo é que a dramaturgia avança, além dos papéis, além das palavras. Mota, nos alerta em seu livro Dramaturgias: Conceitos, Exercícios e Análises que:
[…] a descentralização do processo criativo para a cena é vinculada à ampliação do escopo do conceito de dramaturgia. Com isso aquela imagem que se tinha das companhias teatrais comerciais do século XIX, com suas hierarquias e privilégios durante as decisões criativas, materializada na ideia de um autor, da univocidade de uma voz responsável pela coerência e coesão de todas as etapas de representação de autoria autoritária, faculta-nos a compreensão do teatro como um evento singular, multifacetado, multidisciplinar e interartístico (MOTA, 2017, p. 35).
A metodologia Dramaturgias Emergentes traz a experiência para a cena de um diálogo que ultrapassa os escritos para interpretação e avança na compreensão de um território dramatúrgico para cada elemento cênico. Esses territórios, por sua vez, que compõem o processo de criação se relacionam de forma comunitária, criando experiências compositoras para a cena.
No desenvolvimento das práticas no Teatro Afeto, o território fez emergir escritas a partir das relações estabelecidas. Destacamos que esses primeiros exercícios de compartilhamento tanto de histórias, de memórias e até mesmo de sensações a partir de atividades propostas não são consideradas, mesmo que aconteçam de forma escrita, pertencentes ao Território do Texto posteriormente desenvolvido com o grupo. A palavra e escrita da palavra surgem aqui como facilitadoras na comunicação entre as artistas/pesquisadoras, como registro das experiências comuns e como material impulsionador. Aqui o objetivo é ir além do que é possível ser registrado na escrita, pois, como nos ensina Kopenawa e Bruce em A queda do Céu:
As palavras dos xapiri estão gravadas no meu pensamento, no mais profundo de mim […] Desde sempre elas vêm protegendo a floresta e seus habitantes. Agora, é minha vez de possuí-las, mais tarde elas estarão na mente de meus filhos […]. Então, será a vez deles de fazê-las novas. Isso vai continuar pelos tempos afora, para sempre. Dessa forma elas jamais desaparecerão (KOPENAWA. 2015, p. 65).
Existem muitas narrativas em nossos corpos a partir das quais emergem estados de afeto, não necessariamente como histórias mas também como sensações que muitas vezes provocam uma relação com o presente e consequentemente uma relação de diálogo, escuta e resposta: materiais indispensáveis para que aconteça Teatro.
Durante esse momento da pesquisa vários textos a partir das experiências de afeto comum foram emergindo, entre eles podemos trazer: “quero te falar tantas coisas, mas nenhuma delas parece encontrar o caminho dos meus lábios. Essas palavras exalam pelos meus poros. Como se transbordassem em mim” (escrito em junho/2023 por Layla). O texto criado se dá a partir das relações entre as atrizes e os elementos compositores presentes, como espaço, luz e situação criada.
Posteriormente, a partir das ações criadas pelas intérpretes no Território do Afeto foram elencados três movimentos corporais. Apesar de não termos desenvolvido até então o Território do Texto, já havia um eixo central que conduzia nossas experimentações: o afeto. Portanto, trabalhamos com encontro de corpos, olhares, quase toques, mas também com contradições e desencontros, com elementos que formam pontes e com elementos que formam fronteiras. Então, quando começamos a pensar sobre cenas, cada intérprete escolheu alguns movimentos e com papel e caneta, externalizamos e organizamos as vivências para então ressignifcá-las em cenas.
Território do Corpo
O segundo território desenvolvido foi o Território do Corpo. A cada momento que emergem mais territórios a serem desenvolvidos é necessário maior cuidado com a relação entre os mesmos, para que aconteça de forma comunitária. Quando um território não tem autonomia para ser plenamente desenvolvido, ele acaba enquanto camada de outro(s) território(s). Nesse sentido, não significa que o corpo não “existia” ao desenvolvermos o território do Afeto, mas que não paramos para fazer a escuta desse território e consequentemente permitir que o mesmo pudesse se desenvolver. Suas ações, sentimentos, movimentos foram todos direcionados a partir do Território do Afeto. Quando os territórios não se fazem presentes de forma consciente, se desenvolvendo de forma independente, tendo a sua própria dramaturgia, não podemos afirmar que o processo de montagem acontece a partir de uma base comunitária. O Território do Corpo diz sobre o que necessitará ser desenvolvido pela atriz, como por exemplo maior resistência física para determinada ação. O Território do Corpo é um território muito complexo, pois abrange não apenas o momento presente, mas o mesmo no presente atravessado por suas experiências anteriores ao início do processo, ou mesmo anteriores ao início do ensaio.
Sendo uma relação comunitária, essa hierarquia entre os territórios e suas dramaturgias, (como nos fala Mota na citação anterior sobre o teatro do século XIX), não existirá, ou ao menos será questionada para que cada território possa ter garantido o direito de contar a sua própria narrativa para cena, as multiplicidades de vozes se fazem presentes.
Logo, para melhor compreensão e desenvolvimento dos territórios, a metodologia Dramaturgias Emergentes trabalha de forma separada com cada um deles, compreendendo suas camadas, os diálogos que se estabelecem criando pontes e/ou fronteiras. Visto que muitas vezes podemos já estar acostumadas a não os escutar, percebê-los e até mesmo identificar a sua presença, e essas práticas por sua vez são distantes de uma relação comunitária. A prática e o recorte de trabalhar com os territórios de forma separada nos faz compreender as micropoéticas existentes em cada um deles, estas por sua vez compreendem as microdramaturgias escritas para a composição da cena, fazendo escuta aos elementos que emergiram durante o processo cênico. Estes que podem conflitar ou demarcar ainda mais essa diferença, no caso da criação de fronteiras, ou podem aproximar quando poéticas e/ou imagens formam pontes. Um exemplo disso é que determinado sentimento pode ser desafiante para algumas pessoas e extremamente confortável para outras, o afetar a partir de um mesmo dispositivo proporciona emoções distintas em cada participante, podendo também uma mesma participante ter emoções conflitantes perante um mesmo estímulo.
Território do Texto
O Território do Texto, foi o terceiro território desenvolvido durante o processo de montagem do espetáculo ½ Kg de Coração. Neste território o objetivo era a investigação das camadas de escritas, camadas de silêncio e a camada da forma textual das participantes. Compreendendo como esse território poderia atuar de forma mais acolhedora em seu diálogo com outros territórios, os permitindo trazer para a cena suas próprias dramaturgias. Aqui, compreendemos que os territórios emergentes durante o processo e as suas histórias compositoras dos mesmos não são uma escolha das atrizes e/ou diretora, não escolhemos a árvore que seria cortada para posteriormente ser chão em nossa sala de ensaio. O que escolhemos é o recorte, a micro-dramaturgia que comporá o espetáculo a partir da escuta desses territórios.
Realizando um diálogo com FÉRAL que por sua vez traz uma definição em diálogo com Richard Schechner, afirmando:
Um teatro alicerçado no texto como ponto de partida para a encenação e que estaria inserido na tradição escrita ocidental, e um teatro baseado no performance text (que aqui traduziremos como “texto performativo”, indissociável da representação e que se destacaria sobremaneira no que diz respeito à tradição oral ocidental (FÉRAL, 2015, p. 247).
A experiência durante o processo de montagem de ½ Kg de coração, um espetáculo que duas pessoas estão em algum lugar em que se configura como um lugar compartilhado e por vezes não. Durante os diálogos, conversam sobre suas relações e sobre os sentimentos que emergem dessa experiência comum. Talvez elas se amem ou se amaram em algum outro lugar. O texto revela situações ausentes no espaço físico da montagem, mas que compõem o universo das intérpretes/personagens em cena, a seguir apresentamos trechos da dramaturgia escrita durante as práticas de desenvolvimento do Território do Texto:
LAYLA: Muitas vezes tive dificuldade de sentir seu coração apesar de achar que quase tudo que saia da sua boca era previsível.
SARAH: Sua presença é daquelas capazes de manter uma mesa cheia de pessoas entretidas.
LAYLA: Isso foi me incomodando cada vez mais.
SARAH: Contava suas próprias histórias como se fosse uma narradora de filme. LAYLA: Antes não te via e agora tudo que sai da sua boca parece roteirizado, previamente pensado.
SARAH: Cada detalhe da sua vida poderia ser espetacular e penso que era exatamente isso que fazia seu carisma pulsar.
LAYLA: Seu toque me cansa, me desgasta, tira de mim a energia que tanto lutei pra acumular.
SARAH: Em algum ponto eu já nem sabia mais o que era real e o que tinha sido inventado e olhava em seus olhos procurando um pouco mais de verdade.
O texto é indissociável do corpo que o escreve. A escrita é uma ação que emerge com o seu movimento criando caminhos no papel, criando percursos. Estabelecendo diálogos para que possam se desenvolver dentro de uma relação de base comunitária para a composição da cena.
Conclusão
A partir dos diálogos na sala de ensaio, foi possível ao longo do trabalho de um ano, desenvolver os três territórios que emergiram na montagem do espetáculo ½ Kg de Coração, sendo eles: Afeto, Corpo e Texto. A partir das experimentações teórico-práticas em Dramaturgias Emergentes, desenvolvemos os territórios autônomos, permitindo que suas narrativas fossem valorizadas e a constante busca pela não hierarquização das relações resultou em um processo humanizado e sensível. A pesquisa encontra aqui seu “meio”, um ponto decisivo para novos começos e múltiplos fractais de criação.
Referências
FÉRAL, Josette. Além dos limites: teoria e prática do teatro; tradução J. Guinsburg – 1- São Paulo: Perspectiva, 2015.
ANDRADE, Eduardo dos Santos. O espaço encena: teatralidade e performatividade na cenógrafa contemporânea – 1 ed. Rio de Janeiro: Synergia, 2021.
KOPENAWA, Davi, BRUCE, Albert. A Queda do Céu. Companhia das Letras. São Paulo, 2015.
MOTA, Marcus. Dramaturgia: Conceitos, Exercícios e Análises. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2017.
SILVA, Takaiúna. As dramaturgias comunitárias em uma atriz. Dissertação de mestrado em Artes Cênicas, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, p. 97, 2021.
Notas de Rodapé
[1] Em 2022, a metodologia Dramaturgias Emergentes é reconhecida como tecnologia social pelo Banco de Saberes Iberoamericano, por meio de uma iniciativa de três programas do Espaço Cultural Ibero-Americano, vinculado à Secretaria Geral Ibero-Americana (SEGIB): Ibermuseus, Ibercultura Viva e Iber-rutas que unem três pontos cardeais da ação cooperativa regional – patrimônio museológico, memória social e ação cultural comunitária.
[2] O conceito de relação de base comunitária tem como fundamento o próprio conceito de Teatro Comunitário: “é aquele em que a pessoa em estado de ser comunitária, escuta e encontra um lugar comum, e a partir desse lugar comum ela constrói sua dramaturgia comunitária” (SILVA, 2021, p. 31).