Crítica – A Mulher Monstro | Dramaturgias da Intolerância
Imagens – Jorge Almeida
Por Luana Félix
Graduanda de Licenciatura em Teatro (UFPE)
Calabouço, cárcere, enxovia, ergástulo, masmorra, cela, cubículo, clausura, jaula, gaiola, penitenciária, presídio, ferros, estufilha, casa de detenção, grades, xadrez. Confinamento. Momentos de horror. Instantes de verdades cortantes destiladas sobre a superfície oca que é o nosso cérebro. Ouvem-se sussurros de fora temer e gritos intensos de volta ditadura. É tempo de chorar.
Movido por um desejo de discutir a atual cena política do país, que encontra-se tomada pelo ódio e pela indignação seletiva, a S.E.M Cia de Teatro, do Rio Grande do Norte, busca em seu espetáculo A mulher monstro, um diálogo incisivo, quase um vômito, sobre temas tabus que circulam nossas vidas diariamente. Uma MULHER monstro, que poderia ser, e é, facilmente um homem. Talvez a escolha da mulher deva-se ao fato da característica pejorativa de “tagarela”, “matraca”, “a que fala pelos cotovelos”. QUESTÃO DE ORDEM: Há momentos da peça em que ainda pode-se confundir a figura (mulher monstro) com a travesti. O que soa ainda mais pejorativo.
Apenas essa personagem protagoniza a trama. Uma mistura de monga[1] com a sua vizinha capitalista. Uma aberração social de saia longa e camisa de mangas compridas. Sua boca é tão grande que serve de porta jóias para um enorme terço, além de servir para sustentar dois terços de suas opiniões convictas e hipócritas.
Essa figura meio gente, meio bicho, ganha corpo na pessoa de José Neto Barbosa, ator que também brilhou em Borderline, monólogo que discutia questões familiares a partir da vivência de uma pessoa que possuía a síndrome de boderline, doença que leva o humano a transitar entre o limite da normalidade e da psicose. O desempenho do ator é preciso, consciente e eficiente. Inicialmente ele propõe um jogo de cena que se assemelha com as apresentações da Monga, espetáculo facilmente encontrado em parques de diversões, onde uma bela mulher sofre uma metamorfose e é transformada em macaco. Com o rosto coberto por uma máscara com pêlos, a ator se aquece por um longo tempo dentro de uma jaula de metal, enquanto o público se organiza dentro do espaço. Ouve-se um áudio característico das apresentações de Monga, algo que relata a mutação que acontecerá ali, algo que amedronta o público. O áudio se esvazia de sentido conforme o tempo vai passando, uma vez que é repetido cerca de 30 vezes. Assim também acontece com o aquecimento do ator.
A surpresa, o medo, o encantamento pelo que virá, sentimentos pulsantes da experiência de assistir a Monga nos parques de diversão, volta a ganhar sentido, quando algo além do aquecimento começa a acontecer na cena. Bruscamente, o ator troca de roupa, substituindo a máscara e as peças íntimas que vestia, por uma saia preta na medida do joelho e uma blusa branca de mangas compridas. O jogo da Monga é interrompido pela aparição de uma mulher branca que lentamente se apresenta cuspindo um terço da boca.
Parece-me que esse é um código do diretor para informar que a peça começou. Começou e não acaba mais. É essa a sensação que a personagem transfere para o público quando começa a atirar opiniões horripilantes da sociedade midiática do século XXI. A personagem passa cerca de uma hora falando sem parar, aparentemente sobre o primeiro assunto que lhe passa pela cabeça, quase como uma máquina, em um frenesi de expurgação.
A luz é extremamente essencial na primeira parte do espetáculo. É uma coreografia executada com maestria. Ambos estão tão íntimos que não há espaço para falhas. É forte, potente, enche os olhos. Cada vez que uma luz acendia, ascendiam diversas possibilidades de interpretações do ator, que seguramente as dominava. Fazia tempo que não via tão bonito jogo entre o ator e a luz, ambos mantinham o corpo delineado no espaço. À medida que o espetáculo segue, são inseridas iluminações de LED, que de nada preenchiam o espaço, nem esteticamente, nem sensivelmente. Deve-se ater cuidado sobre o uso da luz de LED, ela causa cansaço na relação de fruição do espetáculo, além de causar incômodos reais nos olhos.
Embora o espetáculo tenha como sustentação a dramaturgia textual, construída através de recortes do conto de Caio Fernando Abreu, Creme de Alface, e dos depoimentos extraídos das redes sociais, a estrutura do texto é frágil, previsível e convencional. A escolha pela fragmentação é delicada, mas delicada ainda é a costura. Mesmo que se queira a crueza dos textos ditos nas redes sociais, eles precisam passar por um processo de maturação cênica, de poética teatral, que nada tem a ver com o lirismo, mas tudo tem a ver com a construção de uma dramaturgia. Não queira competir com a vida real, ela sempre estará anos luz a nossa frente.
A peça te relembra coisas que você já sabe que existem. Ela mostra a vida particular de figuras que você vê no shopping, nos restaurantes e nas novelas. Ela desmancha trincheiras, o ambiente urbano e o interiorano se encontram, sobretudo da reverberação do discurso da protagonista. Ela iguala as idades, quando não limitamos aquelas palavras apenas a mulheres de meia idade. E ela te faz pensar, por pelo menos três dias, sobre o nascimento da ignorância. O medo da austeridade se faz presente mesmo após o fim do espetáculo. A peça dialoga com o tempo sombrio em que vivemos no ano de 2016. E sobretudo, nos lembra que a transgressão grita por existir em ambos os palcos, o do teatro e o da vida.
[1] Perfomance inspirada em uma metamorfose onde uma mulher muito bela se transforma em macaco apresentada geralmente em parques de diversões.