#08 Memória, Arquivo e História | Corpo, testemunho e memória
Imagem – Arquivo Pessoal | Arte – Rodrigo Sarmento
Por Letícia Damasceno
Doutorado em Memória Social (UNIRIO) e Professora Adjunto da Licenciatura em Dança (UFPE)
Para iniciar este ensaio, esta conversa sobre o tema Memória, Arquivo e História, torna-se fundamental trazer breves esclarecimentos sobre a concepção adotada. Este título, por si só suscita amplas discussões abarcando distintos e legítimos campos de saber. Assim sendo, a minha proposta é trazer um relato, uma abordagem do ponto de vista subjetivo, aproveitando a minha experimentação prática envolvendo pesquisa do movimento, dança e artes visuais em suas interfaces.
Portanto, compartilho reflexões a respeito da memória do corpo e suas implicações. A que implicações me refiro? História, nesta perspectiva, é relato, testemunho, singularidade. Arquivo é arquivo como acontecimento, da ordem do que se encontra cunhado no corpo, sendo atualizado na medida em que os sentidos ativam o impresso no corpo.
Testemunho é algo múltiplo e envolve diversos sentidos. Quanto à noção de testemunho, a visão desenvolvida por Marcio Seligmann (2005) propõe um caminho que expande a ideia de um testemunho puramente visual. Ao invés de reduzir o testemunho à visão, ele sugere:
Entender o testemunho na sua complexidade enquanto um misto entre visão, oralidade narrativa e capacidade de julgar, um elemento completa o outro, mas eles se relacionam também de modo conflitivo. O testemunho revela a linguagem e a lei como constructos dinâmicos, que carregam a marca de uma passagem constante, necessária e impossível entre o “real” e o “simbólico” entre o “passado” e o “presente”. Se o “real” pode ser pensado com um “desencontro” (algo que nos escapa como o sobrevivente o demonstra a partir de sua situação radical), não deixa de ser verdade que a linguagem e, sobretudo, a linguagem da poesia e da literatura busca esse encontro impossível (SELIGMANN, 2005, p.81,82)
Esse encontro envolve múltiplos sentidos e se torna possível pela arte. Nela, a multiplicidade envolvida no testemunho envolve, ao mesmo tempo, a singularidade dessa experiência. Nesse sentido, a perspectiva proposta por Seligmann a propósito do testemunho pode entrar em consonância com a perspectiva do Movimento Autêntico de Mary Whitehouse (1911-1979) e Janet Adler (1941-).
Esta abordagem somática aposta numa relação entre Movedor e Testemunha. De acordo com Soraia Jorge (2009, p.18), Movimento Autêntico trabalha a percepção de “uma testemunha interna que é uma maneira de burilar um estado de consciência”. Para além de trabalhar com o princípio da testemunha externa que assiste aquele que se move, é importante compreender o papel de uma testemunha interna.
Neste artigo, penso em apresentar uma ótica, um certo olhar para o MA como acionador da criação em dança, isto é, expor como essa abordagem pode trazer à tona memórias lacradas (ou inacessíveis) até então? Da mesma maneira, irei relatar brevemente a propósito de investigações fundamentadas na pesquisa corpo/objeto[1], refiro-me aos Objetos Relacionais da artista Lygia Clark e do uso que venha fazendo ao longo dos anos, nas quais os objetos sensoriais têm papel de dispositivos que ativam a memória corporal dando passagem à criação de movimentos. Na relação corpo/objeto, o corpo sujeito se expressa.
É interessante destacar que o MA é realizado pelo movedor de olhos fechados: não há estimulo visual externo e a testemunha interna do movedor é acionada. O parceiro que testemunha é regido e mobilizado pelos princípios: eu vejo, eu sinto, eu imagino. São protocolos estabelecidos na presença do outro que se entrega ao movimento. Para tanto, o relato é feito e partilhado a partir dos sentidos de quem testemunha, não há julgamento do movimento assistido. Leva-se em conta a subjetividade implícita no olhar, o relato da testemunha é, assim, construído na primeira pessoa, assumindo o quanto ele próprio também pode se afetar, se contagiar com o mover do outro. Essa dinâmica dialógica se constrói e se sustenta nesse trânsito.
Desse modo, ao fechar os olhos enquanto movedora dessa experimentação, transitei entre o tempo passado, presente num piscar de olhos. E fui capturada por memórias de um remoto tempo que, ao moverem meu corpo de modo quase involuntário, deram livre acesso à criação de movimentos a partir de marcas do passado. A esse respeito, posso destacar:
As marcas produzidas pela memória, além de ocorrerem em outra temporalidade, longe de serem representações, se manifestam na atmosfera daquilo que nos afeta. Lembro a importância de destacar este aspecto, visto que trato da memória enquanto um processo no qual estão intrínsecas as forças que afetam o corpo (DAMASCENO, 2014, p. 56).
Nesse mesmo sentido, Suely Rolnik afirma que as “marcas são sempre gênese de um devir”. Ela indica uma concepção de marcas ligada a uma memória distinta da concepção tradicional. A ideia de marca está sendo compreendida aqui num sentido distinto (e mesmo prévio) à ideia de representação. A direção é pensar uma memória de marcas enquanto virtualidade, potencialidade capaz de receber sentidos diversos[2]. Essas marcas, eventualmente (mas não necessariamente), podem se transformar em representação, quando algum desses sentidos se cristaliza. Porém, aqui destaco os efeitos potencializadores que as marcas podem produzir em nosso processo de criação. Tais marcas podem levar a estados que nos desestabilizam:
Ora, o que estou chamando de marca são, exatamente, estes estados inéditos que se produzem em nosso corpo. Cada um destes estados constitui uma diferença que instaura uma abertura para a criação de um novo corpo, o que significa que marcas são sempre gênese de um devir (ROLNIK, 1993, p.2).
Portanto, as marcas, nos tirando do lugar conhecido, nos impelem a experimentar a produção de sensações inéditas, dando possibilidades para a produção do novo.
Corpo/objeto memória criação
Apresento a perspectiva de criação em dança a partir da relação corpo/objeto e sua dimensão senso performativa, dando destaque ao papel dos dispositivos, isto é, aos objetos sensoriais enquanto ativadores de uma memória que se abre, se atualiza e cria no instante em que os sentidos são ativados.
Vale dar um esclarecimento sobre os dispositivos criados por Lygia Clark em seus objetos relacionais[3]. Esses objetos, em última instância, têm como foco a experimentação sensorial, por meio da ativação de uma memória corporal. Para ela, o objeto relacional não tem a intenção de ilustrar o corpo, mas, sim favorecer a exposição à subjetividade por meio da sensorialidade, da textura, da temperatura, do olfato, da sonoridade e do movimento do objeto.
Os desdobramentos dessa relação sensorial são a minha provocação: utilizo esses objetos para promover a criação em dança. Desta maneira, os processos de experiência subjetiva continuam a impulsionar a relação consigo mesmo, com o outro e com o espaço, a fim de fomentar o processo criador.
Nesta esteira, tenho me interessado a estimular a criação de variadas performances tanto por alunas da Licenciatura em Dança (UFPE), em que ministro aulas, tais como Papoulas Murchas e Áspero Afago, performances foram criadas por alunas durante o curso de graduação ao experimentarem os objetos relacionais, além de assinar a direção de Ventre que era seu corpo (2012), a criação do solo De cordas, faixas e metal ( 2013) e a direção e concepção de Thalassa (2015/ 2016). Todas tiveram como mote o Movimento Autêntico enquanto método de investigação, assim como o método de pesquisa ativadora da memória do corpo, proposta por mim tendo como aspecto central a relação do corpo com o objeto, mobilizando os sentidos e a criação de movimento.
Referências
CLARK, Lygia. Lygia Clark Arte Brasileira Contemporânea. Rio de Janeiro: Funarte, 1980.
_____________. Objeto Relacional. In: Catálogo de Exposição Fundação Antônio Tápies Barcelona, 1997
DAMASCENO, Letícia. Dança e subjetividade: constituição e manifestação da memória do corpo. 2014. Tese (Programa de Pós-graduação em Memória Social – PPGMS) – UNIRIO, Rio de Janeiro, 2014.
JORGE, Soraia. O Pensamento Movente de um corpo que dança (ou a necessidade de se criar um estilo para falar de Movimento Sensível). 2009. Monografia (Pós-graduação lato sensu em Terapia através do movimento. Corpo e subjetivação.) – Faculdade Angel Vianna (FAV), Rio de Janeiro, 2009.
ROLNIK, Sueli. Lygia Clark e a produção de um estado de arte. Imagens. Campinas: Unicamp, abril 1995, vol. 4, p. 106-110.
SELIGMANN, Márcio. O local da diferença: ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução. Rio de Janeiro: Editora 34, 2005.
Notas de Rodapé
[1] Esta discussão é aprofundada em minha tese de doutoramento, ver Dança e subjetividade: constituição e manifestação da memória do corpo, de Letícia Damasceno, defendida no Programa de Pós-graduação em Memória Social – PPGMS/UNIRIO – 2014.
[2] A concepção aqui adotada está em consonância com autores como Bergson (1939) que concebem a memória enquanto virtualidade e não como identidade. A memória sob este prisma de intervalo de espaço tempo é baseada na ótica de Bergson, em Matéria e Memória. São Paulo, 1999. Editora Martins Fontes.
[3] Objetos relacionais – Estruturação do self (1977-1986) é a última obra de Lygia Clark. Os objetos são feitos de materiais ordinários, tais como: sacos plásticos, areia, pedras, água. Em contraposição à arte mercadológica vigente, a artista tencionava desterritorializar o objeto, a galeria e o espectador, ao propor uma obra inteiramente experimental, baseada na sensorialidade. Lygia Clark fez parte do movimento neoconcretista carioca, surgido no ano de 1959, em contraposição ao movimento concreto, defendido pelos paulistas. Para os artistas cariocas, a participação do sujeito na obra é imprescindível, é um modo de incorporação da subjetividade na experimentação.