#16 Urgências do Agora | O impossível como matéria de pensamento e ação
Arte – Rodrigo Sarmento
Eleonora Fabião se apresenta como uma artista que realiza ações. Suas ações, exposições, publicações, falas e workshops acontecem em cidades do Brasil e do exterior (Alemanha, Argentina, Bolívia, Canadá, Colômbia, Cuba, Emirados Árabes, Espanha, EUA, França, Holanda, Inglaterra, Noruega, Peru, Portugal e Suécia). Suas ações são realizadas com desconhecides nas ruas, em casas ou no trânsito entre espaços públicos e institucionais com grupos de colaboradores convidades.
Nessa entrevista realizada pelo colaborador editorial Elilson, a performer, teórica da performance e professora do Curso de Direção Teatral e do PPGAC (UFRJ) comenta sobre estas atividades em interconexão, entendendo o conjunto performar-escrever-ensinar como dimensões de uma mesma prática artística. Seus “programas performativos” afastam “o perigo da coisa política desaparecer do mundo” ao estimularem práticas gregárias em meio ao caos e violência que têm desengajado os habitantes nas cidades. É justamente uma “política dos encontros” que tem alimentado suas práticas artísticas.
Eleonora, você costuma partilhar que realiza ações para imaginar-construir, em contato corpo a corpo com tantas concidadãs e concidadãos, “a cidade onde deseja(m) viver”. Poderíamos começar falando sobre como tem se desenvolvido esse princípio performativo pensando na sucessão de encontros que se desencadeiam em tua prática artística nas ruas, nos contextos expositivos, nas salas de aula e na escrita? Nesse fluxo, como tem se articulado a noção de “programa performativo”, seu conceito que tem vibrado na prática de uma nova geração de artistas e pesquisadores da performance no Brasil?
Olá, querido Elilson – muito obrigada pelo convite para pensar e conversar. E também, muito obrigada por esse movimento que você está realizando na e.Revista 4.parede. Acabo de inserir na bibliografia de um curso que estou lecionando entrevistas anteriormente publicadas aqui. Como sabemos, não há tanto material disponível sobre performance no Brasil quanto gostaríamos. Tampouco, muitos livros sobre o tema em língua portuguesa. Então vem sendo nosso trabalho, sobretudo daquelas de nós que também atuam nas universidades, ampliar e disseminar a discussão. Afinal, a performance é um elemento fundamental na produção artística, reflexiva e política contemporânea. Ela age no simbólico, no imaginário e sua força de entrada no cotidiano sociopolítico é determinante.
Sim, sou uma artista que trabalha com arte de ação (os espanhóis traduzem “performance” como “arte de acción” e gosto do termo). As ações que concebo vêm acontecendo em contextos diversos – ruas, espaços expositivos, festivais, bienais, museus, universidades, páginas (de papel e virtuais), canais no YouTube, domicílios e instituições de poder público. As matérias também são as mais variadas: o que for necessário de acordo com o que for imaginado – matérias humanas e não-humanas, visíveis e invisíveis, leves e pesadas, estético-políticas. E há, digamos, uma matéria de base, uma matéria-chão: as circunstâncias. A coisa consiste em escutar as circunstâncias e me meter nelas – ser movida por elas, mover-me com elas e movê-las nas direções que me parecem precisas (necessárias e certeiras). O trabalho é lidar com lugares, pessoas, instituições, legislações, massa histórica e matéria fantasma. Lidar com volumetrias, velocidades, densidades, cores, luminosidades, atmosferas, campos de força. Lidar com múltiplas perspectivas, pontos de vista, saberes, sistemas de inclusão e exclusão, lugares de fala e forças de silenciamento. Cada ação se dá como uma movida de corpos, de muitos tipos de corpos, articulados por um programa performativo.
O “programa”, colocado da maneira mais concisa que consigo, é um disparador. Ele é o enunciado de uma ação performativa. E por ser enunciado performativo, já é ação. Como escrevi em textos onde apresento o conceito, esse enunciado determina um conjunto de ações previamente estipuladas, claramente articuladas e conceitualmente polidas a ser realizado por artistas, pelo público ou por ambas as partes sem ensaio prévio. O programa age como uma espécie de contorno. Ele me dá contorno para agir. É como uma pele, flexível, porosa e firme. É isso, ele é um tipo muito sutil de matéria e não propriamente uma metodologia de trabalho (algo que antecederia as ações, de caráter ordenador, com um peso que não precisamos aqui). Entendo o programa não como uma metodologia, mas como um procedimento composicional (“procedimento” da linguagem médica e “composicional” da linguagem artística). E ele age paradoxalmente, a energética é paradoxal: o que um programa faz é justamente des-programar tudo aquilo em que toca e que o toca. No final das contas, ele é um corpo estranho que se mete nas circunstâncias, ele é uma forma de vida poética que suspende o estabelecido. Importante também dizer que ele sempre envolve experimentação; experimentação psicofísica, social, política e existencial, conjugadamente, por meio de ações marcadamente estéticas.
E sim, Elilson, quando percebo, como você diz, que o “programa” reverbera por aí, fico eletrizada. De fato, esse conceito-ação vem se espalhando, vem acendendo, vem sendo ativado e ampliado pelas mais variadas pessoas. Talvez ele tenha uma força liberadora? Seja um modo de fazer vida poética e abrir imaginação política? Ao menos comigo ele faz assim. Faz sempre assim. Outro dia, João Turchi, do Coletivo Mêxa – coletivo em São Paulo que reúne pessoas em situação de vulnerabilidade, em situação de rua e membros da comunidade LGBTQIA+ – me contou que o grupo vem desenvolvendo programas e se fortalecendo por meio deles. Mês passado, estava numa live com o pessoal do educativo do MuBE (Museu Brasileiro de Escultura e Ecologia) e um dos educadores fez um depoimento super bonito sobre como ele vem usando, no seu dia a dia, a noção de programa; sobre como “aquilo” deu contorno a ele num momento difícil. Volta e meia, leio uma dissertação de mestrado ou tese de doutorado e lá está o programa fazendo acontecer mais e mais programas. Sentir como esse procedimento composicional energiza e inspira as mais variadas pessoas e grupos é eletrizante. Constatar como a estética é fonte de vida, que a estética é uma força estruturante como poucas, me anima inteira.
E, para concluir, é sempre importante dizer que, assim como concebo, um programa não é uma improvisação ou um jogo. Um programa não é a realização de uma improvisação; quando agindo um programa não estou exatamente investida em ser inventiva, mas concentrada em levar a cabo o que precisa ser feito. Tampouco, um programa é um conjunto de regras preestabelecidas que guiam um jogo. O que está em jogo não é um jogo. Um programa é um desejo. E não me parece que esse desejo, uma vez enunciado, opere como um conjunto de restrições ou se imponha como uma obrigação. Ele é de outra ordem, funciona de outra maneira, sintoniza em outra frequência. Um programa é a manifestação e a atualização de um desejo. E desejo, no final das contas, só quer desejar mais. E mais.
Voltando à dimensão política dos encontros, parece que, em tua trajetória, esta encontrou seu terreno fértil naquele que possivelmente é teu trabalho-coração, “Converso sobre qualquer assunto”. Em um dos relatos desse trabalho, você conclui que “a rua é o lugar onde o impossível acontece”. Tendo em vista os múltiplos contextos urbanos onde já realizou essa ação e a diversidade de imaginários em confluência oral, você poderia compartilhar alguns acontecimentos, em diferentes cidades do mundo, em que esta ação disparou as dimensões de “acaso” e “impossível” nos encontros?
Fiquei um tempão parada diante dessa pergunta. Olhando pra ela, ela olhando pra mim… Como você sabe, reproduzo várias vozes que escuto nas ruas em muitos textos que escrevo. São textos polifônicos e, rindo aqui com essa ideia, psicografados. Chego em casa possuída pelo espírito daquele acontecimento e descarrego no papel todas as vozes escutadas e experiências vividas. Seria uma psicografia etnográfica ou uma etnografia psicográfica? (rindo alto agora). E, claro, acontece de tudo e mais um pouco quando estamos abertas e disponíveis na rua. No Rio de Janeiro então, nem se fala. Porém, pra te responder vou por outro caminho, Elilson. Vou propor que pensemos um pouco sobre “acaso” e “impossível” para depois ver que vozes aparecem.
Primeiro, o acaso. Um codinome para rua talvez pudesse ser imprevisibilidade, apesar de toda a ordenação urbanística e legislativa (ou por meio dela). A rua é uma espécie de canal de imprevisíveis – não há mesmo como prever o que irá acontecer, sobretudo se você se lança nela agindo programas performativos. Considerando esta perspectiva, não me parece que aconteçam “acasos”, em seu sentido mais convencional, quando estamos justamente no campo da imprevisibilidade. Talvez, para pensarmos performance na rua, seja interessante suspender a dicotomia clássica, a dicotomia do tipo adesivo de vidro de carro onde se lê: “só há acasos / o acaso não existe”. A rua, sugiro, vibra nas frequências paradoxais. Estou falando de uma massa de matéria – humana e não-humana, visível e invisível (histórica, arquitetônica, legislativa, urbanística, social, espiritual, gritaria, passarinho, três garotas, buzina, cheiro de pastel e urina) – que vibra para além (ou aquém) da dicotomia acaso/previsibilidade, acaso/determinação. A rua é o reino de Exu, o “Senhor da Terceira Cabaça”. O reino do movimento, da passagem. Como articulam Luiz Rufino e Luiz Antonio Simas no excepcional “Fogo no Mato: a ciência encantada das macumbas”, quando Exu foi desafiado a escolher entre duas cabaças qual levaria para o mercado de Ifé – “Uma continha o bem, a outra continha o mal. Uma era remédio, a outra era veneno. Uma era corpo, a outra era espírito. Uma era o que se vê, a outra era o que não se enxerga. Uma era palavra, a outra era o que nunca será dito.” –, ele pediu uma terceira cabaça e misturou tudo. Desse dia em diante, como escrevem Rufino e Simas, “remédio pode ser veneno e veneno pode curar, o bem pode ser o mal, a alma pode ser o corpo, o visível pode ser o invisível e o que não se vê pode ser presença, o dito pode não dizer e o não dito pode fazer discursos vigorosos”. A rua não está de brincadeira e só está de brincadeira.
Quanto ao “impossível”, estou cada vez mais acreditando que ele, o impossível, é uma matriz de pensamento e ação. Ele é o modus operandi, o ímpeto político. Isso porque a convocação do impossível é sempre da ordem da iniciativa radical: trata-se do ato de imaginar o que não existe. De virtualizar o que não há. Ou seja, trata-se da atividade do bom artista e do bom profissional da política, que, aliás, deveriam trabalhar com mais frequência juntos. O “impossível” seria uma espécie de desejo em último grau. A abolição da escravatura era o impossível. O direito de voto para as mulheres era o impossível. Tratar a AIDS era o impossível. Neste momento a vacina contra o COVID-19 é um impossível. O impossível é a única coisa que realmente existe, que realmente importa, que realmente move e interessa. O inimaginável é justamente o espaço da imaginação, a força da invenção. E, veja, acho que não se trata de trabalhar para “tornar o impossível possível”; não se trata de docilizar, domesticar, capitalizar essa potência extraordinária. O que importa é se lançar nas coisas com a força vital que o impossível abre.
Então, chegamos a ação “converso sobre qualquer assunto” que você evoca na pergunta. O programa é: “Sentar numa cadeira, pés descalços, diante de outra cadeira vazia (cadeiras da minha cozinha). Escrever numa grande folha de papel: ‘converso sobre qualquer assunto.’ Exibir o chamado e esperar”. Desde 2008 venho realizando essa ação em muitos lugares e por horas a fio. Levei cadeiras para praças e ruas em diferentes bairros de cidades como Berlim, Bogotá, Fortaleza, Santo André, Rio de Janeiro, Miami, Nova York, São José do Rio Preto, São Paulo. Inicialmente eram duas cadeiras, mas, com o passar dos anos, comecei a acrescentar mais e mais. A fazer grandes rodas, assembleias sobre qualquer assunto. Já cheguei a levar dez cadeiras, mas, se preciso for, o pessoal pede outras emprestado em bares e restaurantes. As rodas já chegaram a ter 15 pessoas. Meu momento de glória é quando nem preciso mais explicar o programa pra quem chega. Outra pessoa enuncia ou, simplesmente, quem chega se junta e conversamos. Conversamos, debatemos, discutimos sobre os mais variados assuntos. E, sim, o impossível às vezes comparece de forma evidente (como quando fatos inacreditáveis acontecem). Porém, assim como a vibração é exusíaca, o impossível é a própria atmosfera do acontecimento. Aquilo tudo, aqueles encontros todos se dando em contextos culturais tão marcadamente separatistas e individualistas, aquelas longas conversas acontecendo entre pessoas completamente estranhas umas às outras e ensinadas a “não conversar com estranhos de jeito nenhum”, são profundamente brincantes e impossíveis. Não sei se me faço clara, mas é simples assim. E a sensação às vezes é lisérgica.
Houve o dia em que alguém se sentou e me disse que deveríamos estar sempre prontos para morrer. Perguntei como era estar pronta pra morrer, e ele, policial aposentado, respondeu: “estando em paz”. Houve o dia em que ele, um homem lindo, chorando e buscando palavras para descrever sua mãe adotiva disse: “ela era preta como o vestido daquela moça ali”. E houve o dia em que ela declarou, de pé ao lado da cadeira, se negando veementemente a sentar, que os vizinhos estavam andando dentro da cabeça dela. Os passos, os saltos, o abrir e fechar das portas, o rodar das chaves, das maçanetas, as moedas caídas dos bolsos rolando pelo chão, as cadeiras arrastadas, a piaçava da vassoura arranhando o corpo dela, bem ali, naquele instante. Falou: “Será que você não poderia, por gentileza, me receitar um remediozinho?” Houve o dia em que conversamos sobre construções de pontes. Pontes enormes, de até 13 km, e pontes curtas, que se fazem com uma tábua. Contei que quando eu era criança caí de uma ponte de tábua e chorei profundo no riacho raso. E ele contou que há cadáveres dentro dos pilares da ponte Rio-Niterói, corpos de operários mortos durante a construção. E houve o dia em que ela disse que seu filho de 10 anos foi levado à força, pelos guerrilheiros, para compor o exército da revolução. Mas que ela tinha muita fé e esperava seu retorno. O dia em que ela nos disse que o advogado a traiu e levou tudo. O dia em que ela me disse que traiu o seu namorado que, por sua vez, traía sua esposa com ela. O dia em que entendemos que sentir ciúmes é uma forma de ódio. O dia em que nós cantamos em coro “Meu coração, não sei por que, bate feliz quando te vê”. O dia em que ele nos alertou para nunca mais tomarmos café em avião porque aquilo é um veneno, “um veneno mesmo porque eles não trocam o filtro nunca e isso faz muito mal pra você”. O dia em que ele me convidou para sairmos porque eu era muito jeitosa e ele dançava gafieira que era uma beleza. O dia em que ele me agrediu e eu repeti cada frase dele acrescentando exatamente o que eu sentia quando ele proferia cada palavra. E ele ouviu. O dia em que ele me confessou que nos últimos quatro anos, desde que chegou naquela cidade vindo do Oriente Médio, nunca havia conversado com ninguém daquela maneira. Ninguém. O dia em que o Brasil caiu ali mesmo. E escutamos, juntas, sons que o Brasil faz quando quebra. O dia em que as cadeiras cortaram meus ombros de tão pesadas e do tanto que era preciso caminhar para chegar até a praça da catedral pois o hotel onde me botaram ficava longe. O dia em que ela voltou com dois cafés pra gente, muito doces e frios os cafezinhos. O dia em que saímos e deixamos as cadeiras vazias pra ir comer uma coxinha de galinha logo ali. O dia em que ela me trouxe no dia seguinte o “Livro de Mórmon” de presente, e eu agradeci. O dia em que se formou uma fila de mulheres que queriam sentar comigo ali e conversar à sombra da amendoeira. O dia em que ele tentou me assaltar, eu expliquei a situação e ele aceitou a explicação. O dia em que ele se despediu com um aperto de mão suado, melado, forte e duro. O dia daquele beijo suave. O dia em que ele chegou de manhã e passou o dia inteiro comigo, levantando o chamado junto, conversando sobre qualquer assunto com quem chegasse. E ele apareceu no dia seguinte também, sempre usando chapéu e não ficou descalço. O dia em que gargalhamos sem fim porque ela contava piada como ninguém. Loura oxigenada ela. Bonita toda vida. O dia em que uma criança adivinhou o nome da minha filha na primeira tentativa. Pimba, sem titubeação. O dia em que ficamos juntas, ali, fazendo silêncio. Silêncio, que na rua, nem tem muito como fazer. Ou tem.
É justamente através de encontros, “de acordo com o alcance de cada ação”, como você diz, que teus trabalhos imbricam proposição, vitalidade e experimentação para “transvalorar” modos de produção e relação. Mirando o pensamento costurado em diferentes épocas por Yoko Ono, Hélio Oiticica e por você, de que o papel do artista é “mudar o valor das coisas”, queria que comentasse sobre os processos de trabalhos como “MOVIMENTO HO” e “se o título fosse um desenho, seria um quadrado em rotação”, nos quais o alcance das ações perpassa colaboradores, materiais, passantes nas ruas e instituições de arte e de poder público. Como se dá esse trânsito negociativo?
Por ordem cronológica, aconteceu primeiro o MOVIMENTO HO (2016) com curadoria da Tania Rivera e da Izabela Pucu, que na altura era a diretora do Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica (CMAHO). O programa: “Ocupar com 4.700 tijolos, 3 livros e 7 pessoas 4 galerias do andar térreo do Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica por 7 dias seguidos. Desligar a energia elétrica nas galerias, desligar o ar condicionado e as luzes, abrir janelas e portas e pintar uma das paredes de amarelo 100%. De segunda-feira a domingo fazer e desfazer composições, formar e desformar espaços, mover e ser movidos. Aceitar a ajuda de quem quiser ajudar. Construir, seguir construindo, seguir aprendendo a construir. No meio da semana abrir uma roda de conversa. E, no último dia, transportar os tijolos e livros para a Casa das Mulheres da Maré, um projeto da ONG Redes no Complexo da Maré. Os tijolos se transformarão no quarto e último andar da Casa e os livros farão parte da biblioteca”.
E assim foi: sete dias, sete desenhos, sete títulos. Um movimento em sete movimentos e sete pessoas colaborando ali – você, André Telles, Felipe Ribeiro, Maria Acselrad, Mariah Miguel, Viniciús Arneiro e eu. Porém, raramente estávamos sós; muita gente quis ajudar. Trabalhamos com 4.700 tijolos, ou seja, com mais de nove toneladas de material enquanto a brisa com os cheiros da cidade cruzava as galerias abertas; enquanto a luz mudava ao longo dos dias. Muitos valores estavam em movimento ali. E sim, acredito que uma das tarefas da artista é transvalorar. Vou pensando em voz alta contigo, pois há mesmo muita coisa em jogo aqui.
O primeiro ponto que me ocorre diz respeito ao modo de ocupar uma galeria de arte. A premissa do trabalho foi arrancar as paredes falsas das galerias, abrir tudo, deixar o corpo do prédio à mostra, desinvestir completamente em condições “adequadas” de temperatura e luminosidade para o encontro com a obra de arte, articular o máximo possível o espaço interno e o espaço externo, a rua e a instituição. Afinal, convidaram uma artista que trabalha sobretudo nas ruas para ocupar galerias e sabiam que eu traria essa questão. Sabiam e queriam, pois a gestão da Izabela buscava justamente essa permeabilidade entre o CMAHO e seu entorno. O segundo ponto, diz respeito à própria nomeação daquele acontecimento. Lembro de um momento em que parei para beber um copo d’água – tínhamos que beber água a cada hora e meia já que os tijolos puxam mesmo os líquidos do corpo da gente –, e me pareceu que, talvez, o MOVIMENTO HO fosse uma peça de dança. Mas, se assim fosse, quem dançava era o espaço. Fato é que a questão volta e meia se colocava: “aquilo” era uma exposição? Se sim, o quê exatamente estava em exposição? Talvez melhor dizer que se tratava de uma instalação? Mas se assim fosse, seria uma instalação onde nada parava quieto, onde nada se fixava pois quando finalizávamos a construção de um desenho, outro era logo iniciado. Então, talvez melhor dizer que se tratava de uma escultura cinética? Ou seria mais certeiro olhar a peça como escultura social? Pode ser que o mais condizente fosse afirmar que estávamos realizando uma performance coletiva de longa duração, ainda que a força escultórica se impusesse de modo tão definitivo. Ou então, como sugeriram as curadoras, entender aquela movida como uma “contra-coreografia”. E, pergunto, será que o termo “arte socialmente engajada” se encaixaria ali? E “arte relacional”? Ou ainda, será que qualquer tipo de categorização faz sentido quando o que está em questão é movimento e, especificamente, um movimento do tipo “HO”? Um movimento de movimentos no movimento.
Outro ponto a considerar é a perspectiva de quem visitou o MOVIMENTO HO. De saída, para adentrar o espaço, era preciso atravessar a primeira galeria cujo chão foi forrado, já no primeiro dia, com tijolos bem paginados, porém não amalgamados. Havia então essa instabilidade. E havia o contato direto do corpo de quem ali adentrasse com os tijolos e com o pó dos tijolos; havia, de cara, uma espécie de relação tátil, além de visual, olfativa e auditiva com o trabalho. Uma vez dentro dali, fazia-se parte daquilo ali. O MOVIMENTO engolfava, fagocitava. Além disso, visitantes poderiam chegar, por exemplo, em um momento em que “a obra” consistia em um grupo de pessoas debatendo sobre como fazer a melhor “amarração” de tijolos para que estes se derramassem como línguas pelas altas janelas das galerias até o chão da rua. Lembro de uma mulher que entrou e me perguntou quando a exposição estaria pronta para visitação e eu expliquei que aquilo era a exposição. Ela sorriu e eu aproveitei pra perguntar se ela não gostaria de ajudar. Fato é que o público que viesse ver o MOVIMENTO HO era sempre convocado, direta ou indiretamente, a trabalhar porque “a obra” estava em permanente fazimento (e desfazimento). Uma vez abertas as portas do CMAHO às 10:00h, sempre havia gente trabalhando no espaço, muitos corpos em movimento, conversas em andamento, debates. O ambiente era de espetacularidade grau zero. E muita gente arregaçou as mangas para fazer junto.
De modo geral, me parece que o valor maior ali, o que de fato estávamos operando ali, era uma aliança radical entre todes aqueles “actantes” presentes (humanos e outros-que-humanos). Não estávamos fazendo arte visual, mas arte de dar a ver relações. Nos guiava a escuta e a respondibilidade, a valorização da co-implicação intra-ativa entre tudo e todes em ação. Nos interessava a ética da aprendizagem permanente. E, importante, havia um debate de fundo acontecendo ali sobre institucionalidade, sobre modos de gestão e ocupação de espaços públicos condizentes com as necessidades das artes contemporâneas. Essa era uma questão extremamente importante para a equipe do CMAHO. E também, aquela ação que literalmente não media esforços, era uma resposta direta ao desmanche democrático já em curso no país. Estávamos em novembro de 2016 e o impeachment da presidenta Dilma Rousseff havia recém acontecido. O ímpeto construtivo era determinante naquele momento – como continua sendo agora.
Sabe, Elilson, difícil é dizer o que não estava em questão ali. Eram mesmo muitos os valores em movimento. Como escrevi no texto de parede: “MOVIMENTO HO é uma disputa explícita por espaços concretos, imaginários e simbólicos na arena pública. MOVIMENTO HO performa aberta, coletiva e corporalmente uma luta em favor de experimentação e de imaginação política. MOVIMENTO HO é uma meditação sobre abstracionismo e concretude, materialismo e encantamento, ausência de cimento e presença de espírito, agenciamentos singulares e coletivos na cidade do Rio de Janeiro. O MOVIMENTO HO quer todos os encantamentos. Encantamento, material definitivo e derradeiro”. Vivemos uma transmutação recíproca – as pessoas, os tijolos, os três livros, a arte, os espaços e as instituições envolvidas – uns por meio dos outros, umas por meio das outras. Tudo ali material de construção. Tudo ali obra de arte. O espaço da arte, um canteiro de obras. O canteiro de obras, de construção da Casa das Mulheres da Maré, um espaço de arte. E mais as várias negociações entre nós sete. Afinal, sabemos, não se realizam programas sem negociar (e muito) ao longo do caminho.
Voltei, reli a resposta até aqui, e penso que faltou acrescentar, com todas as letras, que também concebi esse programa para efetivar uma transação financeira mesmo. O capital angariado para a exposição passou pelas mãos da performer e foi transformado em material de construção para a Casa das Mulheres da Maré e em pró-labore para o grupo de artistas envolvido. Os 4.700 tijolos foram profundamente tocados, acrescidos em valor estético, energia vital, brilho performativo e, então, repassados para erguer o quarto andar da Casa. Na ocasião me disseram que este seria o andar destinado a atendimentos jurídicos e psicológicos para as mulheres da comunidade. Ou seja, cada tijolo foi movido com a maior atenção para chegar na Maré em sua melhor forma e erguer esse espaço de cuidado. A nossa parte do trabalho acabou quando entregamos os tijolos e livros na Rua da Paz, Parque União, e brindamos com cerveja amarela e gelada em frente à Casa. Depois disso, coube aos tijolos, aos livros e suas novas interlocutoras fazer destino. Assim que, e este é outro ponto importante, esse MOVIMENTO não tem propriamente um fim. Ele continua se desdobrando para além do controle e da intencionalidade da artista. A este MOVIMENTO interessa valorizar e respeitar o movimento das coisas e(m) suas relações.
Elilson, te conto que esse trabalho me deu de presente uma questão que, desde então, passou a ser minha guia. O MOVIMENTO HO pergunta: como manter sempre 100% ativas, e sem separá-las sob hipótese nenhuma, as dimensões estética, social, política e espiritual das ações? Eis a questão.
Dois anos depois, a convite do Festival de Teatro de Curitiba, concebi “se o título fosse um desenho, seria um quadrado em rotação” (2018). Outras circunstâncias, outras dinâmicas e materiais, mas princípios ativos semelhantes. E também parte do grupo que colaborou no MOVIMENTO HO: Felipe Ribeiro, Mariah Miguel, Viniciús Arneiro e você. Reproduzirei aqui o programa da peça na íntegra e só. Não farei comentários pois o programa já diz. Ele foi escrito como uma carta destinada aos cidadãos e cidadãs da cidade de Curitiba. Assim:
Cara Concidadã, Caro Concidadão –
Escrevemos para contar sobre o projeto se o título fosse um desenho, seria um quadrado em rotação: uma série de 4 ações a serem realizadas nas ruas e céus do centro de Curitiba em dias úteis; entre 2 e 5 de abril, segunda a quinta, como parte do Festival de Teatro de Curitiba 2018.
Nosso ponto de partida é o quadrado. Especificamente, a forma quadrada da ágora – o espaço público das assembleias e feiras. se o título fosse um desenho, seria um quadrado em rotação quer experimentar, fazer, pensar ágora hoje. Muito aqui e bem agora.
Nosso campo de trabalho é o tecido social, a malha social. Ali nos meteremos para realçar alguns entrelaçamentos e ativar novas tramas. Ali realizaremos uma série de deslocamentos de matérias (humanas e não humanas) criando relações, situações e imagens raras. Nosso desejo artístico e cidadão é, por meio de ações incomuns, valorizar e cuidar do bem comum: nossas instituições públicas, seus serviços e trabalhadores, nossas ruas e praças.
Somos 5 colaboradoras e colaboradores realizando as 4 ações ao longo dos 4 dias de trabalho – achamos bonito quadrados de 5 pontas. Para realizar as 4 rotações convidamos quem mais queira juntar-se a nós. Caso você se interesse, venha conosco!
AÇÃO UM: CADEIRAS
Trocar cadeiras entre instituições públicas – uma escola, um teatro, um hospital e a câmara municipal. Caminhar com as cadeiras pelas ruas, uma de cada vez, pelo alto, amarradas nas pontas de 4 varas de bambu, 4 metros acima de nossas cabeças.
Assim, receberemos uma cadeira no Colégio Estadual Tiradentes que será levada e doada ao Teatro Guaíra; no teatro, receberemos uma cadeira que será levada e doada ao Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná; no hospital, receberemos uma cadeira que será levada e doada a Câmara Municipal de Curitiba; e na câmara, receberemos uma cadeira que será levada e doada ao Colégio Estadual Tiradentes. Colada em cada cadeira, uma pequena placa de metal indica seu local de procedência, o título da ação e a data. E nosso trajeto desenha um quadrado no mapa da cidade.
dia 2/4 (segunda-feira)
início às 8:00h em frente ao Colégio Estadual Tiradentes (Rua Presidente Faria, 625, Centro)
AÇÃO DOIS: TRABALHADORAS E TRABALHADORES
Levar, de modo especial, um(a) trabalhador(a) de cada uma dessas instituições até seu local de trabalho. Buscar o(a) trabalhador(a) no ponto de chegada de seu meio de transporte nas imediações da instituição e, a partir dali, levitar a pessoa até a entrada do edifício. Para isso utilizar 1 cadeira e 2 bambus (agora paralelos ao chão).
dia 3/4 (terça-feira)
6:00h em frente ao Colégio Estadual Tiradentes (Rua Presidente Faria, 625, Centro) – participação de Maria Angelina Padilha, merendeira da escola
7:45h em frente ao Teatro Guaíra (Rua 15 de Novembro, 971, Centro) – participação de João Bicalho, bailarino do corpo de baile
dia 4/4 (quarta-feira)
6:45h em frente ao Hospital de Clínicas da UFPR (Rua General Carneiro, 181, Alto da Glória) – participação de Lúcia Helena Ribeiro, enfermeira-chefe
8:45h em frente a Câmara Municipal de Curitiba (Rua Barão do Rio Branco, 720, Centro) – participação de Nei Brigano, técnico administrativo
AÇÃO TRÊS: SONS
Quatro pessoas sustentam no topo de suas cabeças uma placa quadrada de madeira e caminham pela cidade. Em cima do quadrado, uma caixa de som espalha música e silêncio.
dia 4/4 (quarta-feira)
início às 17:30h na Praça Santos Andrade, Centro
AÇÃO QUATRO: CORES
Presentear concidadãs e concidadãos em filas de teatro, ônibus e supermercado com placas de cor feitas por nós – 44 quadrados de madeira cor de laranja, amarelo, rosa e lilás de tamanhos variados (60, 70, 80cm, ou seja, peças que não cabem dentro de uma bolsa). Estes quadrados serão utilizados de acordo com a vontade de sua(seu) proprietária(o) – como obra de arte, bandeja, teto, tampo de mesa, piso ou simplesmente fonte de cor. 44 quadrados passando de mão-em-mão, 44 quadrados em rotação.
dia 5/4 (quinta-feira)
início às 17:30h em frente a Casa Hoffmann (Rua Doutor Claudino dos Santos, 58, São Francisco)
ATELIÊ A CÉU ABERTO:
Ao longo da semana estaremos pintando os quadrados num ateliê a céu aberto no Largo da Ordem. Toda ajuda é mais que bem-vinda.
dias 3/5 e 4/5 (terça e quarta-feira)
início às 11:00h
em frente a Casa Hoffmann (Rua Doutor Claudino dos Santos, 58, São Francisco)
UM QUADRADO É UM QUADRADO, É UM QUADRADO, É UM QUADRADO (E É UM QUADRADO):
Por meio de gestos simbólicos muito concretos, se o título fosse um desenho, seria um quadrado em rotação articula relações entre saúde, educação, cultura e legislação. Ou melhor, evidencia suas inter-relações co-constitutivas.
As pessoas fazem os deslocamentos e as cadeiras deslocadas fazem seu trabalho de coisa. As cadeiras trazem consigo memórias, histórias e, quem sabe, podem rearranjar um pouco os lugares onde passarão a habitar. Quem sabe, com o tempo, as cadeiras não levarão seus novos usuários a imaginar e propor ações interinstitucionais? Quem sabe uma deputada não convidará um enfermeiro a palestrar sobre escuta e cuidado em seu gabinete? Quem sabe uma professora, uma médica e um deputado não decidirão realizar uma ação conjunta no teatro para um público de estudantes? Quem sabe um estudante não passará a realizar trabalho voluntário com pacientes no hospital ou se tornará estagiário na câmara? Quem sabe? Interessa escutar as coisas e abrir horizontes. Interessa esticar a noção presente de futuro. Interessa ampliar e futurar.
Levitar trabalhadores até seu local de trabalho envolve cuidado, atenção, confiança e respeito. se o título fosse um desenho, seria um quadrado em rotação quer valorizar quem dedica sua energia de trabalho a instituições públicas voltadas para o bem comum. Quer refletir sobre sustentabilidade. Quer performar a dimensão pública do espaço pois isso não está dado. Para garantir que um espaço seja público é preciso ação política e corporal.
Para existir, se o título fosse um desenho, seria um quadrado em rotação depende integralmente do interesse e da receptividade de inúmeras pessoas e de múltiplas instituições. O trabalho não pode ser realizado sem o engajamento de muitos e a articulação de muitas diferenças. Aqui não é possível agir fora de circuitos de cooperação e solidariedade interpessoal e interinstitucional. Assim se faz a arte em questão. Co-realização é o modo de produção. Agradecemos imensamente a quem vem cooperando conosco – o trabalho é de todas e todos nós.
Por fim, queremos contar que durante o período de pré-produção, antes mesmo da realização das ações, este trabalho já começou a trabalhar. Por via dele, o Festival fez parceria com o Colégio Tiradentes para que os alunos e alunas assistam espetáculos (no momento estão atravessando um período difícil, sem professoras e professores suficientes, e isso ajudará nesse início de ano letivo). O Hospital de Clínicas da UFPR ofereceu seu auditório de 300 lugares para a realização de espetáculos do Festival no ano que vem, uma parceria inédita (além do público habitual, as apresentações ali serão frequentadas por pacientes, familiares e trabalhadores do hospital). E escutamos a seguinte narrativa de uma das enfermeiras que nos recebeu: desde que escutou sobre as ações, anda sonhando que levita.
se o título fosse um desenho, seria um quadrado em rotação é uma disputa explícita por espaços concretos, imaginários e simbólicos na arena pública. Performa-se aberta, coletiva e corporalmente uma luta em favor de experimentação e imaginação política. A proposta é inequívoca: à brutalidade responde-se com poeticidade, à violência responde-se com colaboração, à paralisia responde-se com iniciativa e ao medo responde-se com determinação. Experimentemos e re-imaginemos pois.
forte abraço,
Eleonora Fabião e colaboradorxs.
Este projeto é uma co-realização com o Festival de Teatro de Curitiba 2018.
Ainda caminhando junto com você nas ruas, poderíamos te ouvir sobre as relações entre poder e solidariedade, entre fluxo e confronto que podem se desencadear nas ações, levando em consideração o que você diz, que nos espaços públicos “regulamentação e imprevisibilidade reinam juntas e delirantes”? Pensando também na crescente do fascismo e da imposição do medo como estratégia de controle dos corpos, como você tem visto a dimensão/precisão de fazer e criar arte, sobretudo neste Brasil atual?
Fazer arte sempre foi uma atividade fundamental e artistas sempre foram, na minha opinião, agentes sociais da maior importância. Acontece que hoje, especificamente em nosso Estado fascista suicidário (Vladimir Safatle), pornofarmaco neoliberal (Paul B. Preciado), necropolítico (Achille Mbembe), capitalístico-colonial (Suely Rolnik), em nossa eco-catástrofe planetária (Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro), antropocena capitalocena plantationocena chthulucena (Donna Haraway), a arte passou a ter uma função vital. A arte mantém o estado de experimentação e o corpo como questão. O espírito crítico e a imaginação política. Opera torções reveladoras e indica estratégias de ação. A arte imagina, inventa, dobra, expõe, propõe, denuncia, inspira, move, faz acontecer. Precisamos mais e mais das dinâmicas e da sagacidade artísticas pois estamos em ferrenha disputa. Nosso presente e nosso futuro estão em disputa. Nosso passado está igualmente sendo disputado. A roda está girando velozmente e é preciso que nós, artistas, façamos a nossa parte. Muitas e muitos estamos fortalecendo, belamente, as lutas antifascistas, antirracistas, antissexistas e antiantropocêntricas. Muites estamos trabalhando para que a geração de força estética seja abundante e abrangente. E a estética é uma força estruturante e curativa.
E penso que a prática da performance é muito importante nesse movimento. A performance estranha. Ela estranha esse mundo desencantado e produz estranheza crítica com lucidez e rigor. De uma vez por todas: a questão da performance não é se ela faz ou não faz sentido; a beleza da performance reside justamente no jeito como ela pratica o sentido como um fazer coletivo. E outra coisa: a performance não é um ensaio ou um lembrete, é um tipo de inteligência e um modo de ação. Para voltar ao que disse logo no início desta entrevista, a performance é arte de ação.
Ultimamente, tenho repetido em entrevistas, lives e textos o seguinte: como é possível que secretarias, departamentos e ministérios governamentais brasileiros não contem com a consultoria permanente de artistas contemporâneos? Como é possível que ainda não tenhamos nos organizado nesse sentido? Me surpreende a nossa lentidão. E digo que “me surpreende a nossa lentidão” pois trata-se apenas de uma questão de tempo, certo? Chegou a hora de artistas contribuírem mais diretamente para a criação de políticas públicas e para a invenção de modos de sociabilidade mais vivazes em nossas cidades. Precisamos agir com a urgência e a determinação que as circunstâncias exigem.
Por fim, gostaria de perguntar sobre o “JANELAS ABERTAS”, projeto que você e a professora Adriana Schneider coordenaram e realizaram junto ao Núcleo Experimental de Performance (NEP ECo UFRJ). Neste contexto de pandemia, em que a dimensão dos encontros se torna ainda mais urgente – mas que muitas iniciativas têm convocado artistas quase unicamente para explicar este momento ou teorizar o futuro – me parece que o “JANELAS” investe radicalmente e porosamente na imaginação política dos encontros, o que talvez se reflete na opção de vocês por não manter o registro em vídeo das conversas, mas privilegiar o aqui e agora mesmo nesse âmbito virtual. O que atravessou os interesses de vocês nesses encontros?
O JANELAS ABERTAS aconteceu no Canal de YouTube do Núcleo Experimental de Performance todas as quartas-feiras ao longo de cinco meses (entre abril e setembro de 2020). O NEP é formado por mim, Adriana e nossas orientandas, orientandos e orientandes de graduação em Direção Teatral e pós-graduação em Artes da Cena. O projeto nasceu do desejo de proporcionar encontros entre artistas, curadoras/es, pesquisadoras/es, cientistas, mestras e mestres de saberes populares e criar uma rede de solidariedade que estimulasse a permanência em casa e o apoio mútuo durante a quarentena. Um objetivo central do JANELAS ABERTAS era divulgar a campanha de doações para os Hospitais da UFRJ no combate ao COVID-19. Entendemos que docentes, estudantes e servidoras e servidores da área de saúde na universidade estavam trabalhando diretamente no front e cabia a nós, das Artes da Cena, colaborar a partir das nossas redes e saberes específicos. Por conta da plataforma virtual, foi possível convidar participantes de vários estados e de fora do Brasil. E fato é que este projeto, feito de modo caseiro e extremamente afetuoso, acabou reunindo muita gente. Centenas de pessoas frequentaram os encontros.
Como todos os eventos do NEP, este também era baseado em um programa performativo. Nos interessa investigar modos de sociabilidade e o que chamamos de “cenas do pensamento”. O programa do JANELAS ABERTAS consistia em: “convidar duas pessoas para uma entrevista mútua, ou seja, ambas seriam entrevistadas e entrevistadoras ao mesmo tempo”. Nossa opção curatorial foi convidar duplas que já se conheciam previamente, gente amiga entre si que, portanto, daria continuidade as suas conversas privadas na nossa praça virtual. Duplas amigas como eu e Adriana somos amigas. No pesado contexto da pandemia, em meio a tanto sofrimento, perdas, medo, insuficiências sanitárias e calamidades políticas, o importante era disseminar diálogo, escuta, pensamento e amizade. Como você diz, não estávamos focadas em diagnosticar o presente e prognosticar o futuro, mas, tão somente, abrir espaço para que, em circunstâncias tão tensas e impressionantes, encontros acontecessem. A cada encontro, convidávamos quem nos assistia a abrir suas janelas e deixar o ar correr. Começávamos a transmissão pontualmente às 17:00h e, enquanto a tarde caía, as luzes das telas acendiam nossas casas. O intuito era mesmo arejar e inspirar. E partilhar. Partilhar o que cada dupla julgasse importante partilhar entre si e conosco naquele momento. No NEP, a lógica é sempre da partilha.
Foram 46 participantes ao longo do período. Não tivemos nenhuma recusa. Todas as pessoas contatadas, sem exceção, foram inteiramente disponíveis e generosas. Não posso deixar de citar os nomes. Além das 16 pessoas que compõem o Coletivo NEP, estiveram conosco: Leda Martins e Marcio Abreu, Cabelo e Gabriela Gusmão, André Lepecki e José Fernando Azevedo, Carla Guagliardi e Keyna Eleyson, Tania Rivera e Vladimir Safatle, Danielle Almeida e Max Hinderer, Francisco Mallmann e Miro Spinelli, Luiz Rufino e Thiago Florencio, Grace Passô e Ricardo Aleixo, Carmen Luz e Silvia Soter, Arto Lindsay e Barbara Browning, Amilcar Packer e Negro Leo, Jaciara Augusto Martim e Valéria Macedo, Enrique Diaz e Mariana Lima, Luiz Camillo Osório e Patrick Pessoa. Nunca é demais agradecer, mais uma vez, a todas as pessoas que participaram do JANELAS como falantes e como ouvintes. Estivemos semanalmente juntas lá, estimulando as doações, inventando a nossa rádio com imagens, trançando atos de fala e atos de escuta, realizando investigação teórica, artística, pedagógica e criação universitária. Estivemos semanalmente lá, no tubo, no chat, no zoom, em coletivo.
A gravação de cada JANELA ficava no ar por uma semana. Assim, quem não pôde estar presente teria oportunidade de assistir até antes do próximo encontro, período em que o pessoal do NEP se engajava nas transcrições. Ou seja, o programa não acontecia exclusivamente ao vivo, mas perto disso. Nos pareceu importante privilegiar o imediatismo do encontro mesmo no plano virtual. Colocar no ar essa onda performativa. Sintonizar nessa frequência presencial para marcar ritmo em um momento tão esgarçado. Um ritmo estruturante e afirmativo na temporalidade de uma quarentena sem prazo para acabar. Te conto que no presente momento estamos trabalhando nos textos e buscando verba para publicação do livro JANELAS ABERTAS em formato impresso e digital. Estamos buscando meios para fazer uma ampla distribuição. Acreditamos que esse será um documento significativo do período da pandemia. E, neste exato instante, estamos iniciando um novo projeto no Canal de YouTube do NEP. Chama-se “nep.recebe”. Abrimos, de fato, um novo espaço de ação ali. As circunstâncias agiram e nós agimos com elas. E seguiremos agindo!