#19 Artesanias Digitais | Bombardeio do Invisível – A atriz como atleta do olhar
Ouça essa notícia
|
Arte – Rodrigo Sarmento
Por Larissa Pinheiro
Atriz-pesquisadora. Formada pelo Curso de Interpretação Teatral – CIT
Dedico esta escrita a todos os sobreviventes de guerras invisíveis e àqueles onde a memória os mantém vivos.
PRÓLOGO – CORPO AO FRONT, A PRIMEIRA BATALHA (ENTRE O PRESENTE E O PASSADO)
“[…] ninguém deve saber da guerra que se trava no meu íntimo. Guerra entre o desejo e o bom senso. Até o momento que escrevo, tenho ganho o último, mas se o primeiro demonstrar ser o mais forte dos dois? Às vezes receio que seja assim e outras vezes desejo que o primeiro saia vencedor!” (Anne Frank)
Aos 12 anos sofri um abuso. Aos 22, recebi o diagnóstico de estresse pós-traumático, assim como um soldado que volta de uma guerra. Hoje essa memória se espalha em mim como um vírus. As lembranças do trauma que sofri são um confronto diário que carrego. Semelhante à uma fotografia, os flashes de imagens acionam vestígios de bombas explosivas e, às vezes, minha visão é turva e acinzentada. Assim, silenciosamente meu corpo se torna mais poroso.
Tudo em mim soa como imagem e som. Ligar o chuveiro e entrar de cabeça pode me levar a um mar turbulento, em pleno afogamento, ou até mesmo flutuar, sendo banhada pela água que escorre suavemente pelo meu rosto. Tem dias que acredito que vou me tornar pálida, sinto frio e penso que, antes dos 25 anos, minha cabeça estará coberta de cabelos brancos, assim como as meninas – tão precocemente! – ficavam quando eram combatentes de guerra.
Esse fato, narrado pela autora Svetlana Aleksiévitch, no livro ‘A guerra não tem rosto de mulher’, me faz pensar nas marcas do tempo e da guerra no corpo delas para dar ênfase ao meu. Em todas as minhas células correm memórias, porque a história contada por mim terá cheiro, textura, temperatura, som e me transportará ao exato momento em que tudo aconteceu. Minha intenção aqui não é fazer um lamento, nem tão pouco fazer do trauma que sofri o ponto central do “bombardeio” que aqui descrevo.
Esse relato é minha passagem e impulso para dar forma às minhas reflexões ou mesmo (quem sabe) fazer com que meu subconsciente se expresse através desta criação. Neste trabalho, tento dar continuidade à uma reflexão iniciada na pandemia, quando ainda não sabia que seriam mais de duas semanas em casa. Existe uma guerra invisível em meu íntimo e ninguém sabe. Bombardeio do Invisível, é como consigo nomeá-la. Assistir em casa a morte de milhares de pessoas todos os dias e o medo pela morte das pessoas que me cercavam deixou-me mais sensível à observação constante de todas as coisas que aconteciam ao meu redor.
O medo do invisível, provocado pelo vírus, possibilitou que meu corpo estivesse com a memória mais ativa. Em um diário escrito por mim, no início de 2020, estabeleci a relação entre o vírus e a guerra, a partir do momento em que percebi a inutilidade dos inúmeros confrontos bélicos, cujas armas são incapazes de deter o avanço de uma pandemia.
A partir dessa análise, percebi que precisava dar um outro significado para o trauma que passei, fazendo com que essa cicatriz não fosse a única sentença marcada na minha vida. Além disso, ao longo dos últimos dois anos, a relação entre o invisível e o visível ganhou outros significados para mim, tornou-se mais profunda. O que me fez debruçar sobre este trabalho, foi saber do privilégio que tenho como artista de ressignificar o que me rodeava, ouvindo as respostas que meu corpo dá ao trauma e transformá-las em estímulo de criação para um trabalho.
Assim, durante a pandemia, coloquei-me na obrigatoriedade de estar viva para pôr em prática o ato da criação, formando, a partir dele, um estado de vida. Quero, enquanto artista, deixar clara minhas ideias e memórias relacionadas ao tempo em que vivíamos, mas sem esperar convites, papéis ou uma grande atuação. Meu interesse ia além dessas coisas. O que desejo é, sobretudo, sentir-me segura no meu corpo, no palco e com o público.
A única certeza que tive – e até agora tenho – é de que o teatro só iria continuar em mim se eu estivesse viva para criar e torná-lo visível para o outro. Aqui ainda estou. Essa é minha matéria. O teatro para mim é uma ciência. Uma ciência tão exata quanto a vida. Para fazer teatro é necessário estar em ‘bio’ constante. Essas reflexões me levaram a pensar em uma prática, uma espécie de atletismo ou exercício em prol do teatro, em prol da vida.
I – NAS TRINCHEIRAS DO ISOLAMENTO
“Todo atleta perde até 10% de força muscular se parar de treinar por duas ou três semanas. Quantos por cento de sensibilidade perco nesse mesmo tempo?
Nossa olimpíada é o teatro!” (Fragmento retirado do meu primeiro diário escrito em 09/04/2020)
Antes do decreto da quarentena, vivia no Coletivo Domínio Público do SESC Santo Amaro (PE) – ainda como integrante – um processo de experimentações. A proposta inicial era que fizéssemos a leitura da obra ‘MAUS’ (2005) e, a partir das reflexões suscitadas pelo livro, criássemos experimentos os quais mais adiante tornariam-se um exercício cênico.
Me recordo, com clareza, que narrei entusiasmadamente minha leitura inicial do quadrinho de Spiegelman que havia começado antes da suspensão das atividades do coletivo. Em resumo, a história narrada em MAUS (2005) relata a vida de um pai durante e após o holocausto que ocorreu durante a Segunda Guerra Mundial. Contudo, apesar da expectativa para se aprofundar na obra e iniciar os experimentos, a primeira bomba explodiu: 15 dias em casa.
As tentativas para continuar com o nosso estudo continuou e perpassou por Hangouts, Meets e Zoom, esperançando que aquele momento seria breve. Todavia, os encontros virtuais que estavam previstos para acontecer durante um período de 15 dias, até que a situação da Covid-19 fosse contornada, perduraram por um ano.
Durante o tempo de espera pelo retorno dos encontros e ensaios presenciais, li ‘O Diário de Anne Frank’ (1985) e percebi a relação direta entre os bombardeamentos que acontecem fora de casa e os que estavam acontecendo dentro de mim. O campo minado na minha casa iria além do vírus, eram as minas da minha memória. Assim como Anne Frank, que teve sua vida entre as explosões vistas da sua janela no anexo secreto.
Nesse sentido, a tentativa de fazer teatro em minha casa foi a de buscar dar forma ao meu íntimo, aquilo que não consigo colocar em palavras, mas que com o ato da criação se transformam, e fazendo disso, em alguma medida, o meu próprio anexo secreto. Ao buscar uma ampliação da caixa cênica, senti frustração e prazer de quando escrevi um dos diários em que intitulei: Bombardeio do Invisível.
Com a continuidade dos encontros do Coletivo Domínio Público de forma virtual, entramos num exercício de transformar em cenas as nossas memórias descritas durante os diários daquele ano. Para iniciar a atividade, João Pedro Pinheiro, ator e membro do coletivo, decidiu interpretar o meu diário ‘Bombardeio do Invisível’ e, logo em seguida, nosso exercício ganhou também o mesmo nome. Apesar de partirmos desse meu diário, acrescentamos outros relatos coletados nas redes sociais, bem como dos demais membros do coletivo.
O primeiro trecho deste diário que escrevi é uma reflexão sobre o adiamento que ocorreu no dia 24 de Março de 2020 dos Jogos Olímpicos. Isto porque, em outros momentos da história, as Olimpíadas pararam por conta de uma guerra, agora, paravam por conta de um vírus. No entanto, antes da suspensão dos Jogos Olímpicos, os artistas – atletas afetivos como nomeia Artaud – tiveram suas atividades suspensas antes de quaisquer outras.
Porém, mesmo diante do vírus, das guerras, e das paralisações oficiais, o teatro sempre permeou como uma nuvem, numa dança diante de todos esses acontecimentos e fez do corpo dos atores-performers registros desses tempos. A título de exemplo, o Butô e o Teatro do Absurdo são criações de corpos marcados por guerras, na tentativa de expressar as marcas de conflitos traumáticos. Em ‘MAUS’ (2005, p. 45), Spiegelman deixa claro sua admiração por Samuel Beckett quando diz: “É Samuel Beckett já disse: toda palavra é uma mancha desnecessária no silêncio e no vazio”. Não por acaso, Beckett viveu dentro de um regime nazista e é um dos grandes autores do Teatro do Absurdo.
Assim, ainda em 2020, apesar de todo arsenal de listas de produtividade que poderíamos exercer num momento tão atípico, poderia me sentir privilegiada por estar viva. Foram imensas listas de filmes, séries, exercícios físicos e livros que fiz, influenciada pelas redes sociais, na intenção de tentar me manter produtiva mesmo diante da dolorosa realidade pandêmica que estava inserida.
Diante da curadoria de atividades feita por mim, consegui terminar a leitura de algumas obras como: ‘MAUS’ (2005) de Art Spiegelman, ‘O Diário de Anne Frank’ (1985), de Anne Frank, e ‘O Teatro e seu Duplo’ (2006), de Antonin Artaud. As reflexões desses três livros suscitaram algo diferente em mim, e serviu de base para o surgimento da videoperformance que também intitulei de Bombardeio do Invisível ainda no coletivo Domínio Público.
Durante a pandemia, tive um reencontro com Artaud. Essa reaproximação veio da busca de traduzir suas ideias, inserindo-as no meu dia a dia, talvez por uma “necessidade implacável de afirmação da vida”, como diria Cristina Tolentino (2005) em seu artigo sobre o autor. Por isso, trago Artaud como o teórico que permeia os meus registros, justamente ele que viveu durante as duas guerras mundiais e que também analisou as insuficiências do teatro através do seu olhar sobre a vida, relacionando a presença da peste no corpo como uma chama necessária para estar no palco, para se expurgar o que há de mais íntimo em prol da cena.
Nessa perspectiva, O Bombardeio do Invisível é para mim o impronunciável, o que se torna quase intraduzível, sentido como grandes tremores presentes numa guerra. Esse foi meu impulso para entender que o teatro e a vida não se separam. Principalmente quando há iminência da extinção. Assim como fez Artaud em toda a sua passagem e presença de vida, ao afirmar que “lá onde os outros propõem suas obras, eu não pretendo fazer outra coisa senão mostrar meu espírito. A vida é de queimar as questões. Eu não concebo nenhuma obra separada da vida.” (ARTAUD, 2008, p. 206, grifo nosso).
II – BOMBARDEIO VISÍVEL: OLHOS NAS MÃOS E NA FACE
“Ontem percebi que a teatralidade vai além das manifestações realizadas em casa. Está em nossos rostos. O olhar. O mundo todo agora cabe nos nossos olhos. As máscaras nos obrigam a nos comunicar através deles.” (Fragmento do diário escrito em: 05/05/2020)
O olhar aqui, como já descrito e colocado em título, é a metáfora não só da imagem do que se pode ver, mas do sentir; perceber. É nesse olhar que meu corpo é colocado sem anestesia. Insiro aqui todos os meus sentidos perante o que me avista. Poros, pelos e vísceras, como descritos por Artaud. Além disso, o fato de ser artista e estar em casa num momento atípico me permitiu olhar os atos cotidianos como disparos para a criação, mesmo que esses acontecimentos rotineiros fossem aparentemente tão banais, como: limpar a casa, preparar a própria comida, colocar o fone de ouvido para escutar uma música, passar horas rindo de um meme e ver repetidas vezes um challenge nas redes sociais.
Todas essas ações cotidianas, se apresentavam para mim como possibilidades de se tornarem cenas. Desse modo, é por meio desses atos que a caixa cênica se amplia, a casa vazia vem instaurar outras relações, ou torna a família espectadora presencial dos processos de criação cênica. Com efeito, penso que essas percepções conscientes tornaram o ato da criação acessível para mim pelo simples fato de unir o processo criativo para o teatro ao conhecimento que estava vivenciando naquele momento.
Diante desse aspecto, para existir enquanto atriz dentro do que era possível naquele momento, tive o meu primeiro contato com a videoperformance no Coletivo Domínio Público, através das orientações de Samuel Bennaton. Este exercício através das telas consistia em transformar os nossos diários de bordo em vídeos e, desse modo, tivemos, enquanto artistas em coletivo, o nosso primeiro experimento na tentativa de fazer uma arte que é “olho no olho” e da presença.
A partir desse processo, os exercícios de observação do cotidiano ficaram conscientes e comecei a criar, através dos significados que flagrava do texto, tentando exprimir por meio das imagens e sonoridades as minhas sensações. Entrando no desenvolvimento desse estudo, surgiram algumas questões que precisei enfrentar, na medida em que passei a questionar-me sobre “como lidar com o fato de estar refém de um vírus que não posso ver?”. De modo semelhante a este questionamento, se estabelecia em mim um confronto íntimo de sentimentos que, naquele momento, não sabia como nomear, apenas sentia.
Nesse sentido, o vazio foi minha primeira referência para pensar o invisível dentro da minha criação. Assim, vasculhando meus diários de bordo para tentar dar forma, movimento e sonoridade as minhas histórias, achei um relato que escrevi no dia 05 de maio de 2020:
A partir da leitura desse meu diário, senti a necessidade de transformar meu texto em apenas um verso de um poema para a vídeoperformance. Para tanto, fiquei pensando em como nomear esse bombardeio que acontecia dentro de mim e de milhares de pessoas que estavam lidando com um inimigo que apesar de ter nome, ninguém via, tocava ou sequer sabia como encará-lo. Foi a partir dessa inquietação que escrevi o poema “Bombardeio do Invisível”:
Diante desse prisma, resolvi capturar meu quarto vazio, o fim da tarde com o céu nublado e meus olhos como metáfora do rosto que na pandemia passou a ficar parcialmente coberto pelas máscaras – deixando os sentidos da visão completamente expostos. A sonoridade da cena foi construída por meio da quietude, da voz mais sútil que poderia recitar um verso e da respiração quase imperceptível, mas grandiosa quando captada. Com efeito, a metáfora para a guerra foi o silêncio.
Nesse processo, notei que os meus sentidos capturaram com mais atenção a feitura de cada modo de criação. Minha percepção tornou-se minha maior tecnologia e essa, quando agregada a uma tecnologia digital que se fez como uma extensão de nossas vidas e uma necessidade intensa no período pandêmico, permitiu que eu ficasse atenta aos ressignificados que o teatro e seus múltiplos formatos me traziam (e ainda me trazem).
III – ONDAS SONORAS, BATIMENTOS CARDÍACOS E EXPLOSÕES: O AMOR É UMA BOMBA
O experimento “O amor é uma Bomba” foi uma videoperformance criada por mim, ainda em 2020, no segundo semestre, como um exercício na disciplina de Análise de Texto para Teatro, orientada por Silvia Góes, no Curso de Interpretação para Teatro (doravante CIT). A videoperformance foi desenvolvida a partir do texto “O Amor é um Franco Atirador”, de Lola Arias (2007). Para a autora, o amor é um grande jogo de roleta russa, mas o que ele era para mim naquele momento?
A videoperformance “O amor é uma Bomba” era uma continuidade do “Bombardeio do Invisível” e trazia a perspectiva da paixão como um vírus, do distanciamento provocado pela pandemia, da angústia de ter que sentir o amor à distância e por uma tela. Apesar dessas analogias que fiz para pensar o amor vivido no período da pandemia, pessoalmente, saber e sentir o amor mesmo que a distância, por uma tela, para além da angústia pela distância, esse sentimento foi um lugar de conforto. Saber da hora exata em que a ligação iria acontecer no final do dia, contar cada novidade – mesmo que esse “novo” fosse o mesmo de todos os dias em isolamento – foi um lugar de esperança, de locomotiva para sobreviver, para criar, para saber que um momento todo aquele medo provocado pelo vírus uma hora iria ter fim.
No que diz respeito a minha experiência com o teatro remoto e a dependência da tecnologia digital para estar presente nele – como a grande maioria –, digo que foi uma catástrofe. Fugiam do meu controle fatores como a qualidade péssima de internet e áudio, ruídos e inúmeras interferências. Porém, meu trabalho como artista era continuar; performar o erro, e transformá-lo em algo intencionalmente sensível para a cena.
Desse modo, voltei à presença de Artaud e pensei: já que os ruídos são a minha verdade neste momento, então por que querer mascará-los e fugir das dificuldades tecnológicas que me cercam? Transformei essa inquietação numa das cenas que constituíam “O amor é uma Bomba”, conforme ilustrada na imagem a seguir:
A sonoridade e a música, por muitas vezes, foram minha fuga mais certeira no período mais intenso da pandemia. Digo isto, pois diferentemente de algumas pessoas durante o isolamento, escutei mais álbuns do que assisti filmes. Isto porque, para mim, uma música podia ser tudo que eu queira dizer, mas só conseguia escutando.
Além disso, por mais que quisesse ver todos os filmes que estavam em inúmeras listas que eu havia criado, voltar a uma tela por mais de uma hora novamente me causava exaustão. Em meus momentos de reflexões particulares sobre ser atriz numa pandemia pensava: como criar para um outro alguém que estava tão exausto quanto eu? Havia uma saturação de registros.
Comecei a questionar como podemos sair de uma reunião de mais de uma hora no Zoom e voltar facilmente para a mesma tela para um descanso através de outra interação. Esse era o grande ponto para mim. Ressalto isso, pois sempre acreditei que, com uma criação cênica, posso fazer com que quem me assiste entenda o que se passa dentro de mim e que esse diálogo aconteça pela cena.
Em contrapartida, a música, por vezes, é um transporte de conforto e criatividade. Notei que para uma cena ser fruitiva para quem a contempla era necessário alguma música, alguma sonoridade, inclusive o silêncio no momento exato. Afirmo que o som pode servir como uma ampliação da imagem presente no vídeo, isto é, o vídeo torna a imagem e a sonoridade um instrumento de composição, sobretudo quando o corpo do ator é a fonte primordial da cena.
Através dessas percepções particulares, percebi que as bases teóricas sobre o teatro estavam tão claras no meu entendimento, que passei a enxergá-las em mim e no meu cotidiano, por meio das minhas próprias vivências. Essa compreensão, consequentemente, é um dos motivos da possibilidade relacional ser tão fluida para minhas criações artísticas.
No início da pandemia a internet se tornou uma imensa avalanche de vídeos, memes, dublagens, challenges, e se estende até hoje como um grande vírus ainda sem um esquema vacinal que possa pará-lo de vez. Contudo, meu objetivo não era a problematização disso para o teatro e para o público, se existia ou não teatralidade naquelas criações. Na verdade, o que queria discutir neste trabalho é como minha visão de espectadora sobre tudo que é criado na internet se modificou para, inclusive, pensar o teatro.
Conforme afirma Dubatti (2020), todas as linguagens podem e devem misturar-se umas com as outras, tendo em vista que o teatro e o vídeo são dois espaços reais perante quem os experienciam, formando um grande entrelaço do virtual com real, na medida em que se relacionam e capturam essências que estão no nosso cotidiano em sua finalidade. Nesse sentido, a videoperformance “O amor é uma bomba” é resultado de uma sequência de bases teóricas que eu estava estudando, na tentativa de relacioná-las com as postagens que eu via no Instagram e no TikTok.
Entretanto, minha meta com essa associação não era reproduzir o que estava sendo feito nessas redes sociais, mas capturar a essência da teatralidade naquele espaço virtual, tendo em vista o impacto que as mídias digitais causaram na criação e recepção das criações de diferentes categorias.
IV – DIÁRIO DO ANO DA PESTE – DUAS NOTAS: O PROCESSO
“O ator é como um verdadeiro atleta físico, mas com a ressalva surpreendente de que ao organismo do atleta corresponde um organismo afetivo” (ARTAUD, 2006, p. 151, grifo nosso)
O “Diário do Ano da Peste” é um filme-documentário (ainda em processo de finalização), dirigido e roteirizado por Anamaria Sobral, no quarto módulo do CIT, na disciplina Interpretação III. Durante o término do primeiro semestre de 2021, embarcamos, enquanto turma, numa proposta para fazer um filme que fugisse das inúmeras experimentações de teatro online que surgiram no decorrer do período pandêmico, e para investigar outros formatos para criação. Naquele módulo, estudávamos Artaud e Grotowski.
Apesar da proposta ser interessante, existia para mim um dúvida: “Como investigar o próprio corpo dentro de casa, através de uma tela e com uma prática de estudos totalmente intensa?”. Todas as interrupções, falhas digitais e os inúmeros lockdowns estiveram presentes em todos os encontros da turma. Usar meu corpo como uma tecnologia biológica absoluta, isto é, como a única ferramenta que bastava para o meu fazer criativo enquanto atriz, foi meu estímulo para produções, pensamentos e forma de sobrevivência para estar presente em todo o processo.
Além do filme, Anamaria nos propôs a ideia de personas performativas que é, na verdade, um duplo de nós mesmos, alguém que no cotidiano deixamos de lado, para compor nossa criação. Uma das nossas primeiras indicações da professora foi criarmos, individualmente, um portfólio artístico para investigarmos a origem das nossas personas performativas. Por esse motivo, voltei à memória do curto período em que fui bailarina durante a infância e a tudo que me rodeia, como a dança, os filmes e, principalmente, a música.
As minhas referências principais foram baseadas em produções artísticas, como os filmes “Flashdance” (Adrian Lyne, 1983), “O Labirinto do Fauno” (Guillermo del Toro, 2008), “A cor da Romã” (Sergei Parajanov, 1969); os álbuns musicais “Confessions on a dance floor” (2005), de Madonna, “Chromatica” (2020) de Lady Gaga, além de toda a obra fonográfica de Beyoncé – que sou declaradamente apaixonada – e das criações do grupo ABBA.
Ademais, considerei como referencial basilar para minha persona, os rios e pontes que cruzam a cidade de Recife, fazendo uma alusão ao movimento manguebeat e o legado de Chico Science; e, por fim, as reverberações que os encontros com a performer e professora Flávia Pinheiro, da disciplina Técnicas do Corpo para a Cena, me trouxeram através da minha experiência como sua aluna.
Ao passo que as experimentações para a construção da persona foram avançando, a ideia do contágio, da mutação, foram me permeando até se concretizarem. A base central para a construção desse meu ‘outrem’ foi o capítulo “Duas Notas”, do livro “O Teatro e seu Duplo”, em que Artaud (2006, p. 164) fala sobre seu conceito de encenação e dualidade, afirmando que “é preciso saudar como acontecimento uma tal transformação de atmosfera, em que um público ouriçado de repente mergulha às cegas e que o desarma”.
A partir dessa afirmação, comecei a construir um alguém que se permutava, que absorvia os ambientes e suas partituras dentro de uma mesma composição e, ainda que fosse mutável, o corpo continuava sendo o mesmo. Nesse contexto, o duplo de mim passou a ser chamado de Duas Notas, ao considerar o paradoxo do ser humano e a ideia do contágio que o modifica.
Para além das influências já mencionadas anteriormente, o acontecimento do dia 29 de Maio de 2021, tornou-se uma referência importante para meu processo criativo: o confronto da Polícia Militar de Pernambuco contra manifestantes durante o ato contrário ao presidente em exercício naquele ano. A ponte Duarte Coelho, no centro do Recife, tornou-se palco para um cenário de guerra que terminou com duas vítimas atingidas nos olhos por uma bala de borracha.
O imprevisível desse episódio chocou-se com os obstáculos invisíveis que meses antes eu havia escrito no poema “Bombardeio do Invisível” e não pude distanciá-los da minha criação. Esse dia marcou o encontro da minha persona performativa e cotidiana, acrescentando características do surrealismo, como a valorização do inconsciente, na minha partitura corporal, ao passo que meu subconsciente realizava movimentos com base também no fato noticiado, como o grito de socorro e as mãos nos olhos ensanguentadas.
Uma das minhas observações foi pensar como as análises de Artaud se encaixavam nos dias de hoje e estavam presentes no entendimento de quem nunca apreciou o teatro, nunca nem mesmo ouviu falar sobre Artaud ou até mesmo aqueles que o conhecem, mas deixam no lugar do estereótipo, como tendo apenas uma característica do autor. As marcas principais para pensar a teoria de Artaud é a visceralidade, o subconsciente, o estado natural do corpo através de todas as suas formas.
A música, por exemplo, consegue me contagiar e fazer com que o meu corpo passe por esses níveis, permitindo que ele fale por seus movimentos, deixando uma letra e batida guiar seu íntimo, como uma embriaguez de alguém que apenas deixa expressar-se. São inúmeras as pessoas que na nossa rotina trazem o estado de visceralidade como uma prova de estar vivo: na rua, no ônibus, nos hospitais e na poesia da cidade. Acredito que esta seja a prova de que Artaud está em nós.
Entretanto, durante o processo, questionei muitas vezes o que do teatro estava presente naquele experimento, mas refleti que, mesmo em casa, e criando de maneira virtual, havia formas de manter a teatralidade na minha performance. Dublagens e criações de vídeo para a internet ganharam outra proporção durante a pandemia e foi através dessas produções que observei a maneira que as gravações aconteciam. Na maioria desses trabalhos visuais não havia cortes no vídeo, apenas um áudio guiava toda a movimentação da câmera e do corpo.
Diante disso, me indaguei sobre a possibilidade de realizar uma partitura numa gravação sem cortes, mas logo compreendi que, nesse caso, um áudio poderia guiar toda a partitura com movimentos que no teatro, por exemplo, relaciono com a pantomima. Nesse sentido, o trabalho com a escrita e com um planejamento sobre a criação da cena foi uma das formas de entender, durante as minhas investigações, como meu pensamento se revelava inconscientemente para o duplo de mim.
Observar essas relações na internet para o que o teatro já havia dado nome foi minha base. Sendo ao vivo ou gravadas, minhas performances continham apenas cortes manuais, como mudar o ângulo da câmera e tampar/destampar a lente com as próprias mãos para sinalizar a mudança de plano da cena, e o meu corpo tinha que estar totalmente presente para realizar esses cortes simultâneos.
Assim, penso que no que se refere ao teatro virtual e as possibilidades artísticas do ator/atriz nesse espaço digital, existem diversas formas da presencialidade se instaurar para que o ator/atriz esteja por completo naquele processo. Para exemplificar isto, creio que o corpo do ator/atriz, seja no teatro físico ou no virtual, precisa estar consciente para que possa ser lido por quem o contempla.
Muito embora durante o processo eu não pensasse, conscientemente, numa associação direta com o “Bombardeio do Invisível”, o choque entre ele e o “Diário do Ano da Peste” aconteceu, justamente, como uma mutação ao ver Recife num cenário de guerra e com vítimas atingidas violentamente nos olhos. Desse modo, o real e o metafórico eram como correntes sanguíneas num mesmo corpo, e a metáfora para existir necessita do real e de poros dilatados para o sensível.
Por conseguinte, criar meu duplo, “Duas Notas”, para o “Diário do Ano da Peste”, me deu mais autonomia e confiança para colocar minhas ideias em prática, mesmo perante todas as circunstâncias em que eu e minha turma do CIT fomos submetidos naquele momento. Estar em estado de criação num duplo de nós mesmos fez do nosso corpo-documento esse tempo marcado pelo vírus. Criar foi a certeza de estar viva.
V – O MAIOR DOS SENTIDOS: A FOME.
“Antes de retornar à cultura, constato que o mundo tem fome e que não se preocupa com a cultura. E que é de um modo artificial que se pretende dirigir para a cultura pensamentos voltados apenas para a fome.” (ARTAUD, 2006, p. 1, grifo nosso)
Em 2019, ingressei no CIT e, já no primeiro semestre, tivemos a disciplina Consciência Corporal, ministrada por Samuel Bennaton. Para além do treinamento físico, fiquei com uma questão: Como exercitar a nutrição do meu corpo para estar em cena, para viver o teatro? Através dessa reflexão, comecei a me alimentar melhor, a querer fazer minha própria comida. Nunca tinha ouvido alguém dizer para mim algo sobre a relação do alimento e da criação do teatro.
Falo no sentido do criar, do manual, isto é, da comida que temperamos e que leva horas para seu preparo ou até dias. Enquanto artista, questiono sobre o que difere uma maneira artesanal de fazer um alimento de uma criação artística? Se o princípio é que toda criação deve ter honestidade, consequentemente ela deve ser livre de conservantes. Nenhum trabalho artístico se coloca no microondas e fica pronto em 5 minutos. O instrumento do ator é o seu corpo e nossa alimentação base é o feijão com arroz. Básico e nutritivo. Um completa a carência nutricional do outro.
Ainda no que tange à alimentação, no início da pandemia, por curiosidade, assisti a séries que falavam sobre a alimentação e seu processo como identidade de um povo. Na série documental Cooked (Alex Gibney, 2019), o jornalista Michael Pollan afirma que “a refeição é uma incrível intuição humana” e que “quando aprendemos a cozinhar é que nos tornamos verdadeiramente humanos”. Ao ouvir essa declaração, foi impossível para mim não associar ao teatro e às palavras de Artaud (2006, p. 1) quando diz que “antes de retornar à cultura, constato que o mundo tem fome e que não se preocupa com a cultura”.
Além disso, enquanto atriz em processo de formação naquele período, foi difícil não pensar sobre o sucateamento ao setor da cultura e como isso afetava diretamente no estômago dos artistas. Fazedores do teatro, que viviam essencialmente da aglomeração de corpos, tiveram seus trabalhos suspensos pela pandemia e isso revelou que o “mundo”, como afirma Artaud (2006, p. 1), não se preocupa nem com a fome, nem com os que necessitam da cultura para obterem o alimento. Por isso, seja no sentido cru da palavra ou em metáfora, o alimento e a cultura garantem a sobrevivência e a identidade.
Mediante a essas preocupações lembrei do modo de fazer o pão. Este alimento, considerado como sagrado, simples e nutritivo, antes do seu preparo é uma massa homogênea, úmida e, no início do processo, tem aparência pouco convidativa. Todavia, uma hora após a fermentação, essa massa cresce e, depois de assada, ganha outro formato.
De modo semelhante acontece o trabalho do ator no seu processo artístico: por vezes, o trabalho parece pouco consistente, é difícil de conseguir algo que atraia o outro, mas através do trabalho, do tempo, da constância do ator com seu corpo para a abertura do que possa vir, o seu trabalho ganha forma. Por isso, creio que o teatro existe para a comunhão, a criação e para continuarmos vivos. Entretanto, antes é necessário que o pão esteja na mesa. Que o corpo tenha condições dignas para criar e experienciar a teatralidade.
VI – O ATO NO PALCO: ECOS.
Apesar do avanço da vacinação, o fim do isolamento social e a volta das atividades no formato presencial, no início do último módulo no CIT, na disciplina de Criação e Desempenho de Papéis, orientada por Maria Clara Camarotti, eu e a turma lidamos ainda com a incerteza da volta às aulas no modelo presencial. As ruas continuavam vazias e a instituição que ofertava o nosso curso lidava com o resgate do modelo de funcionamento que tinha antes da pandemia da Covid-19.
Apesar disso, eu e os demais alunos/as da turma sentíamos a necessidade, enquanto atores/atrizes num processo formativo, de ocupar o Teatro Marco Camarotti num lugar de autoafirmação pelo poder que ele é capaz de instaurar. Entretanto, naquele período, o medo cercava o nosso processo de criação e a retomada da rotina no espaço físico do teatro que antes era tão corriqueira para nós.
Todas essas consequências do vírus trouxeram em mim, e nos demais alunos da turma, repercussões e pontos de partida para nosso desenvolvimento naquele semestre. Diante disso, Maria Clara Camarotti propôs para nós o seguinte questionamento numa espécie de provocação: “O que mais chocou vocês durante esse período da pandemia? Pode ser um áudio de uma notícia… qualquer coisa”.
Sem titubear, a fome foi a primeira coisa que veio à minha mente, pois foi o que mais me chocou durante o período pandêmico. Me chocou por pensar na possibilidade de sentir fome, pela impotência e a vergonha, por ouvir nas ruas, e também no ônibus, a décima pessoa pedindo pela única possibilidade de se alimentar naquele dia.
Através dessas lembranças, passei a acreditar ainda mais que a criação só se concretiza para mim quando dou a possibilidade de levar o meu entorno para ela, mas como falar de algo tão cru? Pra mim não havia poesia na fome. Dias depois do questionamento feito por Maria Clara Camarotti, encontrei num site, chamado Brasil de Fato – Pernambuco, uma matéria escrita por Cida Pedrosa em maio de 2021, em que logo no título a escritora afirma “A fome não é poética”.
Ao ler a notícia, um trecho me chama atenção, pois a autora diz que “basta uma caminhada pelas ruas de qualquer cidade média do país para testemunhar o espetáculo aviltante da fome, agravada pela peste e pela guerra. […] A situação do Brasil, hoje, é tão grave que soa como eco[5] de um tempo”.
No decorrer do processo, achei um áudio[6], publicado no site MST/Brasil de Fato, que não só falava sobre a fome, mas também trazia relatos de pessoas naquela situação de insegurança alimentar. Enquanto eu ouvia o áudio da matéria, uma das falas do Padre Júlio Lancellotti (informação verbal)[7] me tirou lágrimas dos olhos, quando ele diz o seguinte trecho:
Sinto que o povo tá muito cansado, não aguenta mais, porque chega num ponto que a gente pensa assim: “o que nos resta é esperar para morrer”. Então a fome, é fome da comida e a fome do sentido de vida, porque muitas vezes até o pouco que eu tenho pra comer eu como triste e angustiado, e isso não me sustenta. Eu preciso comer com esperança. (Padre Júlio Lancellotti)
Apesar do relato do Padre Júlio Lancellotti ser extremamente tocante, o que mais me chamou a atenção foi o fato das falas da entrevista serem protagonizadas por mulheres que eram as provedoras dos seus lares e dos seus filhos. Ainda no mesmo áudio da matéria, escutei a canção “Deus lhe Pague”, cantada por Chico Buarque, que passei a conhecer a partir daquele momento. Impactada com a letra da música, pesquisei mais sobre ela e encontrei uma versão gravada por Elis Regina[8], com uma interpretação icônica e visceral para o clamor que a letra pede.
Os relatos de mulheres sobre a fome no áudio da notícia do MST/Brasil de Fato e a interpretação de Elis Regina da música “Deus lhe pague”, foi o documento necessário para o grito do vazio e a possibilidade de dar voz ao que me causava angústia: a fome. Sendo assim, durante o processo de criação da minha cena para o exercício cênico “ECOS” inclui não somente um trecho do áudio da matéria em que as mulheres falam sobre a fome, mas também a canção interpretada por Elis.
Além dessas referências, também achei importante acrescentar na minha performance a entrevista[9] do cantor Gilberto Gil (informação verbal)[10] na feira de Paraty, em 2003, na época em que ocupava o cargo de Ministro da Cultura, falando sobre a necessidade da cultura como alimento: É básico. Feijão com arroz. Precisa estar na mesa do brasileiro.
Para dar forma e sentido ao que eu estava querendo dizer com a minha cena, organizei as referências no palco da seguinte forma: a performance é iniciada com a reprodução de um trecho do áudio da matéria do MST/Brasil de Fato com os relatos das mulheres em situação de insegurança alimentar, enquanto eu cubro minha cabeça com um saco de papel; ao fim do áudio, a música “Deus lhe pague”, na voz de Elis Regina, é reproduzida, o saco sai da minha cabeça e inicia-se atrás de mim a reprodução de um vídeo meu dublando a canção; o vídeo, reproduzido de forma metafórica, projeta a ideia de que minha boca estivesse engolindo o palco durante a dublagem, com fome de estar ali naquele momento, criando dois diálogos simultâneos no palco: corpo e projeção[11]; durante a reprodução do vídeo, também dublo parcialmente a canção no palco e, ao término da música, caio no chão e digo, num tom prece, a seguinte frase: “Pai, tem piedade da tua filha. Tem piedade das tuas filhas”. A performance se encerra com a reprodução da fala de Gilberto Gil retirada da entrevista concedida no evento da feira de Paraty em 2003.
Torna-se válido ressaltar, que a cena se cruza ainda com a minha intensa passagem para o processo do filme “Diário do Ano da Peste”, já mencionado anteriormente, no penúltimo módulo do CIT, tendo em vista as marcas que o fato do dia 29 de maio de 2021 me deixou, pelas vítimas atingidas violentamente nele e o grito “VACINA NO BRAÇO, COMIDA NO PRATO!” que foi ecoado entre as pontes da cidade do Recife.
Durante o processo de criação da minha cena para “ECOS”, cheguei a conclusão de que a fome também é uma bomba invisível, silenciosa e surge com uma mão estendida por um pedido de comida pelas ruas, como bem descrito pelo eterno Miró da Muribeca (1998) em seus versos no poema Marginal Recife:
Recife,
cidade das pontes
e das fontes
de miséria.
Poetas mendigando
passes
pra voltar
pra casa.
E sua poesia
passando despercebida,
aliás
nem passa.
A fome é crua. A fome é a primeira peste. Diante dessa problemática, penso: se o alimento garante a sobrevivência humana, sem a humanidade o teatro sobrevive? É urgente a necessidade de nos mantermos vivos. Para mim, a essência do teatro prevalece na vida cotidiana em absolutamente tudo que fazemos. É assim que consigo entender o teatro. O alimento garante a existência humana e a garantia dessa existência é o que torna o teatro vivo.
EPÍLOGO: PARA OS SOBREVIVENTES
Aos 24 anos, tornei matéria, por meio das palavras e das criações cênicas, todas as minhas reflexões, tendo a certeza do ato de coragem que envolve o seu desenvolvimento. Antes, talvez, eu diminuiria minhas afirmações e dúvidas para caber, por achar que eu não tinha o merecimento. As sequelas do trauma, que relato no início do texto, trouxeram – e trazem – muitas vozes negativas em minha cabeça, fazendo com que a insegurança me tomasse por completo.
Porém, como atriz, é necessário estar segura até com minha insegurança. Assim, para tornar minhas criações concretas, necessito, agora, usar o verbo, a palavra e a pronúncia para transformar minha dor. Acho imprescindível tentar dizer o que antes para mim era impronunciável. Por esse motivo, acredito que Artaud nunca foi contra a palavra, mas deixou claro outras formas de linguagens que estão inseridas na vida como as imagens, o som e a expressividade do corpo. É absurda a forma que o corpo se reconstrói.
Sinto como se em mais dois anos de pandemia tivesse passado uma década. Meu trabalho, talvez, seja o início dos meus pés na areia em busca da beira do mar. Quero que qualquer pessoa que leia esse registro tenha a certeza que o princípio da criação já está nela e que através das suas próprias vivências se inicia o seu estado de criação e singularidade.
Por fim, creio que os sonhos nos revelam e podem fazer com que o simples seja único através dos nossos conhecimentos. A ciência é exata, justo pelo conhecimento que absorvemos e que pode se modificar através de nós. Esse trabalho era tudo que eu sempre quis dizer até o momento que escrevo. Foi minha maneira de continuar viva e, mesmo após um dia completar meu ciclo final na vida, quando meu corpo não estiver mais aqui, em matéria, estará esse documento vivo.
Começo dedicando e repito: para todos os sobreviventes de guerras invisíveis e aqueles onde a memória os mantém vivos, mas, em especial, aos que registrei em meu diário: Anne Frank; As famílias que saem de suas terras natais atravessando o mar em busca paz; George Floyd; João Pedro, 14 anos, morto dentro da própria casa, numa comunidade do Rio de Janeiro à tiros; a Miguel e a força incalculável de sua mãe, Mirtes.
Referências Bibliográficas
ALEKSIÉVITCH, Svetlana. A guerra não tem rosto de mulher. 9. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
ARIAS, Lola. O amor é um franco atirador. 2007. Disponível AQUI. Acesso em: 04 out. 2022.
ARTAUD, Antonin. O Teatro e seu Duplo. Trad. Teixeira Coelho. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
ARTAUD, Antonin. Linguagem e Vida. 4. reimpr. Guinsburg, J.; Telesi, Silvia Fernandes; Mercado Neto, Antonio. São Paulo: Perspectiva, 2008.
DUBATTI, Jorge. Experiência Teatral, experiência tecnovivival: nem identidade, nem campeonato, nem melhoria evolutiva, nem destruição, nem laços simétricos. Rebento, São Paulo, n. 12, p. 8-32, jan. -jun. de 2020.
FRANK, Anne. O diário de Anne Frank. Rio de Janeiro: Editora Record, 1985.
JALLAGEAS, Francine. Antonin Artaud e o Surrealismo: distâncias e aproximações. 2008. Disponível AQUI. Acesso em: 04 out. 2022.
MIRÓ (Pseudo). SILVA, João Flávio Cordeiro. Ilusão de Ética. 2ª ed. Fortaleza: Livros & Letras, 1998.
PEDROSA, Cida. A fome não é poética. Brasil de Fato, Pernambuco, 20 maio 2022. Disponível AQUI. Acesso em: 04 out. 2022.
SPIEGELMAN, Art. Maus: a história de um Sobrevivente. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
TRINDADE, Cristina Tolentino. Antonin Artaud – Teatro: um ato total. Um Ato Total. 2005. Disponível AQUI. Acesso em: 04 out. 2022.
Notas de Rodapé
[1] Montagem a partir de capturas de tela das vídeoperfomances dos integrantes do Coletivo Domínio Público, publicadas no perfil do Instagram do grupo em 2020.
[2] Montagem a partir de fotografias pessoais da autora em 2021.
[3] Montagem a partir de fotografias pessoais da autora e imagens retiradas do “Google Imagens” para o moodboard de criação de figurino do filme “Diário do Ano da Peste” em 2021.
[4] Montagem a partir de fotografias e desenhos pessoais da autora para criação de maquiagem do filme “Diário do Ano da Peste” em 2021.
[5] Por coincidência, “ECOS”, forma plural da palavra citada pela autora, foi o nome do último experimento cênico daquela turma do CIT, com direção de Maria Clara Camarotti.
[7] Entrevista concedida por LANCELLOTTI, Júlio Renato. Entrevista I. [11 de ago. de 2021]. Entrevistadores: Daniel Giovanaz e Pedro Stropasolas, 2021. São Paulo, 2021. arquivo.mp3 (5:01).
[8] Versão da música “Deus lhe pague” interpretada por Elis Regina, presente no álbum “Elis “Transversal do Tempo””. Acesse AQUI.
[10] Entrevista concedida por GIL, Gilberto. Entrevista II. [26 de set. de 2008]. Paraty, 2003. arquivo.mp3 (5:52)
[11] A escolha por uma projeção na cena é de forma intencional, como uma marca da tecnologia digital que se foi uma das principais aliadas para a sociedade durante a pandemia, inclusive para o teatro.