Crítica – Alegria de Náufragos | Sabor e sentido
Imagem – Rafael Passos
Por Lorenna Rocha
Graduanda em Licenciatura em História (UFPE) e Atriz
Você já se perguntou sobre qual traço definiria sua existência? Um universo caótico e cômico foi criado pelo Grupo Ser Tão de Teatro (PB) no espetáculo Alegria de Náufragos para, talvez, deslocar certezas. A peça teatral foi encenada pelos atores Thardelly Lima, Rafael Guedes e pela atriz Cely Farias em terras pernambucanas, como parte da programação do Usina Teatral 2018, no Palco Alternativo do SESC Santa Rita. Começava o Experimento nº 39, fazendo referência à trigésima nona apresentação do grupo.
No primeiro movimento, o grupo discute ciência com palavras de um vocabulário tão particular que se torna difícil compreender os termos e as proposições. A rigidez do léxico na dramaturgia é de tal ordem que torna impossível identificar qual tema está em debate. Na representação de uma aula universitária de assunto complexo, há o distanciamento evidente entre quem emite o discurso e quem o recebe. Seria, então, a valorização de um saber que está restrito a poucos?
O apreço ao discurso científico é também chave para compreender a notoriedade do renomadíssimo Professor Nikolai Estiepanovitch de Tal. O personagem é desenhado como um grande homem, alguém de convicções sólidas e assertivas. Uma figura célebre que tem nas suas condecorações (conquistadas sem escândalos!) legitimidade. Tamanho prestígio é simbolizado na montagem por meio de instrumentos discursivos e estéticos simples: a popularidade e o valor do admirável Nikolai se desdobram no espaço cênico, sem necessariamente levantar bandeiras sobre a valorização e legitimação da fama através do conhecimento. São utilizados objetos como flâmulas, pequenos troféus, cabo de vassoura e medalhas que se acumulam e produzem para o público a imagem do imensurável Estiepanovitch.
A partir dos próximos movimentos da peça, Nikolai, personagem que tem sua representação dividida entre todos os atores em cena, começa a apresentar sinais do tempo. É possível ver um homem fragilizado. A cabeça do velho já não parece lembrar muito bem das perguntas que lhe fizeram em instantes, e esquece do que estava para ser dito bem na ponta da língua. As mãos tremem. Apesar de levarem ao palco a temática do envelhecimento, os artistas não escondem o vigor dos seus corpos em cena ao interpretar o antigo professor universitário.
Movimentações rápidas e precisas, danças e agilidade marcam métodos de representação que contrastam com a discussão proposta, mas não a invalidam. São tais nuances que dão contorno àquela figura ilustríssima e emblemática. Quando as fragilidades suplantam os prêmios, sobra alguma coisa?
Os grandes prazeres proporcionados pelo reconhecimento da figura de Nikolai se tornam pequenos diante da percepção de suas vulnerabilidades e do esvaecimento de atos antes supervalorizados. A velhice é uma etapa à qual o personagem se entrega a olhar para si, sem precisar se guiar (e ser aprovado) por códigos de uma conduta social. Será que é necessário se enrugar para repensar o que tomamos como prioridade?
Essa imersão do personagem convida aos espectadores/as a cascavilhar informações de si mesmos/as. Parece conduzir os corpos a uma pesquisa interna sobre aquilo que faz sentido e sabor nas próprias vidas. O grupo, com muita comicidade e entrega, proporciona uma experiência de afeto e divertimento, frente a um mundo que nos faz duvidar se é possível, ainda, fazer arte, frente a uma humanidade em desencanto.