Crítica – ALTÍ$$IMO | Um ato de resistência estética e política

Imagem – Luiz Pessoa
Por Bruno Siqueira
Doutor em Letras (UFPE) e Professor da Licenciatura em Teatro (UFPE)
No livro quinto d’Os Irmãos Karamázov (1879), romance mais emblemático de Dostoiévski, a personagem Ivan lê para seu irmão um “poema” que intitula de O Grande Inquisidor. Nele, Jesus Cristo, sabendo do sofrimento de seu povo e cansado de tanta injustiça, resolve voltar e descer numa Sevilha do século XVI, no auge da Inquisição espanhola. Na noite anterior, centenas de hereges haviam sido queimados vivos, para a glória de Deus. O povo o reconhece, quer tocar nele, pede-lhe milagres. Ao longe, o grande inquisidor ordena que prendam aquele homem. Numa cela pequena, o Jesus recebe a visita dessa santa figura. Frente ao homem que diziam ser o Cristo, o inquisidor lhe pergunta por que havia voltado à Terra. Ninguém mais precisava que o verdadeiro filho de Deus voltasse, como havia sido prometido. Ele só estava ali para atrapalhar. Foram dez séculos de trabalho da Santa Igreja Católica para fazer todos esquecerem a tal liberdade tantas vezes por ele – o Cristo –, pregada. O povo tinha horror da liberdade e a depositou aos pés dos homens que fazem a Santa Igreja Católica, que se diziam representantes do Deus e do Cristo na Terra, a fim de que controlassem sua vida e lhe dissessem o que era certo e errado. Porque veio atrapalhar esse trabalho “de amor” que a Santa Igreja Católica estava fazendo, Cristo morreria no dia seguinte, queimado na fogueira, como um herege.
Um século depois da publicação do romance, começamos a assistir, num Brasil do longínquo hemisfério sul, terceiro-mundista, ao avanço significativo das igrejas evangélicas pentecostais e neopentecostais, cujos representantes, acumuladores de capital, passaram a conquistar espaço no Parlamento. Diferentemente da igreja católica de hoje, esses segmentos da igreja evangélica mantêm com o mercado uma relação ostensiva. Muitos ministros e pastores, a propósito, são donos de propriedades, de emissoras de TV, de rádio. A fé de milhares de pessoas participa de uma engrenagem capitalista, que lhes vende a promessa da salvação eterna junto a Deus. A questão se agrava quando esses capitalistas da fé começam a assumir uma função junto ao legislativo e ao executivo, pressionando o Estado laico a assumir uma política em conformidade com a doutrina religiosa da qual são legítimos representantes. Como se vê, a semelhança com a realidade expressa na obra de Dostoiévski não é pouca. Vemos aqui também, agora na voz das igrejas evangélicas, grandes inquisidores, responsáveis pelas interpretações espúrias da Bíblia e pela manipulação de um povo sofrido e com horror da liberdade absoluta.
Não sejamos ingênuos. É certo que a laicidade do Estado brasileiro só existe no texto constitucional. Na prática, as religiões cristãs estão sempre presentes nos centros de poder e de decisão política. A começar pela inscrição “sob a proteção de Deus”, no preâmbulo da Carta Magna, a Lei maior do país. Para não falar do “Deus seja louvado” inscrito nas cédulas de Real e dos crucifixos, das divindades e de Bíblias em órgãos públicos, assembleias legislativas, câmaras municipais, fóruns, tribunais. O Supremo Tribunal Federal (STF), a mais alta instância do poder judiciário no Brasil, por exemplo, exibe em seu plenário um crucifixo um pouco acima do brasão da República.
Diante desse contexto que faz parte da nossa atual conjuntura política, caótica, conservadora e reacionária, com traços de um fascismo emergente, Pedro Vilela, da TREMA! Plataforma de Teatro, nos oferece o solo ALTÍ$$IMO, por ele dirigido e com texto do paulista Alexandre Dal Farra. O discurso cênico, ao mesmo tempo em que propõe um mergulho nos meandros do uso mercantilista e político da fé, pode ser lido como uma tomada de posição, de resistência à cristocracia que está se instaurando no país.
O texto de Dal Farra é muito bem urdido e possui uma força política impactante, justamente pela posição clara que assume diante da realidade que analisa, da capitalização da fé. A escrita é polifônica e performativa, haja vista que agencia diversas vozes: a do pastor, a do cantor, a do cidadão, a do ator. Nessa encruzilhada de vozes, vamos nos deparando, pouco a pouco, com a filosofia e a dinâmica dessas igrejas evangélicas mercantilizadas, a partir de uma análise, quase sociológica, de por que muitos homens e mulheres precisam se unir sob a bandeira da fé. Mas o texto nos convida também a um debate filosófico-existencial sobre as razões da fé de muitos homens e muitas mulheres. Por que costuma ser tão fácil manipular as pessoas pelo uso da fé? Por que as pessoas se deixam manipular? Essas questões dão ao texto de Dal Farra um caráter de tese. Nesse comércio da fé, explora-se o desespero e o vazio existencial dos fiéis, atribuindo ao dinheiro a promessa de um futuro melhor. Para além do valor de uso e de troca, o dinheiro é carregado aqui de valor simbólico, “do futuro, do que ainda não era. Do que ainda poderia ser diverso. Outro. Múltiplo”. Ele é a base material sobre a qual se assenta a fé. A fé se torna mais forte quando o fiel deposita no dinheiro a esperança de um futuro promissor.
Pedro Vilela, em sua trajetória artística, vem pesquisando, com afinco, a linguagem de um teatro contemporâneo, mais propenso ao performativo do que ao dramático (confira AQUI nosso podcast #06 – Teatro Contemporâneo, em que Vilela comenta sobre o assunto). Desde que saiu do grupo Magiluth, tem se dedicado à produção cultural por meio da TREMA! Plataforma de Teatro, em cujo trabalho se destacam seu festival, que já chegou, nesse ano, à sua quinta edição em Recife; a revista, que se propõe a ser uma revista de arte e política e que, atualmente, está na sua nona edição; e a produção de grupos os mais diversos em vários cantos do Brasil. Neste ano, o artista produziu seu próprio espetáculo solo, este ALTÍ$$IMO, provocativo em sua construção estética e em sua dimensão política.
O pequeno Teatro Arraial mostrou-se um espaço adequado para a proposta do espetáculo em pauta. Nós, espectadores, somos convidados para um culto. Fechada a porta para início da cena, somos surpreendidos com um culto às avessas. No palco, microfones, garrafas d’água, um punhado de sal e um telão, tudo disponível para a manipulação do ator-performer, que transita entre diversas personas, as quais, no final das contas, se resumem a uma única: o ser humano solitário em sua existência, buscando encontrar algum sentido para esta vida. O dinheiro, que move o mundo, é a síntese conceitual do discurso cênico. É o dinheiro que permeia as ações do performer. No centro do culto não se encontra a figura de Deus, mas a esperança dos homens por um milagre, cuja crença é reforçada pela moeda de troca, a mercadoria dinheiro.
Sobre o milagre, Pascal escrevia: “Os milagres são mais importantes do que julgais: serviram à fundação e servirão à continuidade da Igreja até o Anticristo, até o fim… Eu não seria um cristão se não houvesse milagres”. Voltando a Dostoiévski, em momento anterior ao relato do grande inquisidor, Ivan havia declarado “em tom solene que em toda a face da terra não existe absolutamente nada que obrigue os homens a amarem seus semelhantes, que essa lei da natureza, que reza que o homem ame a humanidade, não existe em absoluto e que, se até hoje existiu o amor na Terra, este não se deveu à lei natural mas tão-só ao fato de que os homens acreditavam na própria imortalidade. Ivan Fiódorovitch acrescentou, entre parênteses, que é nisso que consiste toda a lei natural, de sorte que, destruindo-se nos homens a fé em sua imortalidade, neles se exaure de imediato não só o amor como também toda e qualquer força para que continue a vida no mundo. E mais: então não haverá mais nada amoral, tudo será permitido, até a antropofagia.”
O homem é lançado na existência sem saber de onde veio, por que se encontra nela e para onde vai. A crença na imortalidade e no milagre vem a aliviar a angustia existencial. E no mundo capitalista perverso em que vivemos, a senha para alcançar essa imortalidade e o milagre é o dinheiro, “resíduo último de Deus. Seu filho bastardo. Seu rastro de milagre”. Com esses elementos, o ator-performer se expõe e nos oferece sua vulnerabilidade. Sua potência vai aflorando aos poucos: de um início mais frio, cerebral, vai se encaminhando num crescendo até promover, entre cena e plateia, o acontecimento, uma relação no tempo e no espaço que produz afetos e abre-se para o devir. Esse acontecimento, a meu ver, começa a se instaurar no momento em que o Real irrompe na cena. Fotografias de Pedro Vilela, de variados tempos históricos, são projetadas no telão. Nelas, a imagem do ator-performer vai sendo apagada, o que aponta para um tempo que é, simultaneamente, retilíneo e cíclico, aberto ao devir, configurando, assim, a dupla face do acontecimento, como pensado por Deleuze. A partir desse instante, performer, público, espaço e tempo se transformam num único corpo relacional e, por isso, orgânico.
Merece destaque, também, o trabalho competente de Thiago Liberdade na assistência de direção do espetáculo, em parceria com Vilela. Marcondes Lima foi consultor artístico do espetáculo. Dos melhores artistas da cena teatral recifense, Marcondes se destaca também pela generosidade em contribuir com os jovens artistas, num trabalho pedagógico que implica diálogo, estímulo e sugestões. Toda equipe de produção, na qual se inclui ainda Mariana Rusu, juntou esforços para o bem sucedido trabalho ALTÍ$$IMO e, por isso, merece os parabéns. Precisamos resistir ao movimento ultraconservador e opressivo desse nosso tempo sombrio. E ALTÍ$$IMO cumpre bem esse papel de se valer da arte como um dos melhores instrumentos de resistência política.