Crítica – Amortiçada | Silêncio Mordaz

Imagem – Divulgação
Por Matheus Campos
Graduando em Letras, ator e dramaturgo
“Esta consciência, que faz de todos nós covardes.”
William Shakespeare em Hamlet
Numa escrita que traça o curso por caminhos tortuosos e reflexivos, William Shakespeare, escritor do século XVI, cria Hamlet. Uma dramaturgia que ocorre no Reino da Dinamarca, e tem todo o seu enredo circundando o fratricídio do pai do protagonista – Hamlet – pelo seu tio; o desejo do Hamlet de descobrir toda a verdade por trás do assassinato de seu pai e obter vingança. Entretanto, para desenvolver toda história, William Shakespeare gera uma série de confrontos existenciais, sociais e políticos por parte dos personagens, em especial o protagonista, e a partir daí todas as máscaras da bondade velada são descortinadas.
Com essa obra, Shakespeare nos provoca a refletir sobre todos os nossos atos e “des-atos”. Todos os nossos silêncios conscientes, carregados de autopreservação, culpas mascaradas, pré-conceitos e preconceitos. Ele nos faz refletir sobre esta nossa consciência de omissão que torna a todos nós covardes.
Partindo de tal reflexão e sentimento, deparo-me com Amortiçada, de Cynthia Dias (PE), uma performance participante do evento da XII Semana de Artes Cênicas da UFPE, que ocorreu no dia 04 de novembro de 2019, na Área Externa do Centro de Artes e Comunicação. Uma apresentação catártica que penetra o âmago do espectador e provoca diferentes purgações sentimentais à medida que a obra é contemplada.
Precisamente às 18h10min, um amontoado de olhares curiosos em semicírculo se formou. Uma arena de mãos, braços, pernas, olhos, bocas e ouvidos, No centro, três corpos colados (dois masculinos emparedando um feminino) e o silêncio. Nitidamente se repeliam, um arrastava o outro e aquele vínculo, aquele “colado” era reflexo da brutalidade selvagem e da acidez egoísta de desejos animalescos entre corpos algozes e o corpo vitimado.
O silêncio é rompido por grunhidos, os corpos em cena se descortinam de todas as dúvidas e a imagem é clara: a selvageria do patriarcado sobre o ser feminino. Emaranhados de mãos e pés convergem, brigam entre si, reivindicam seus espaços. E no público, pelo que percebo, a sensação é de choque: olhos arregalados, algumas mãos trêmulas, lábios torcidos e mordidos, alguns andando para o fundo da plateia.
Dois não-homens, mas sim machos-animais, repletos de impulsos animalescos invadindo o espaço e direitos sobre corpo de uma mulher que lutava com músculos e voz pelo natural direito do “não!”. Há silêncio dentro de cada grito, cada choro abafado pelo som da luta, da violação e das agressões. “Gostosa!”, “Ela gosta”, “Se não gostasse não dava brecha”: falas que ecoavam dos corpos dos performers-homens para plateia
Pessoas da plateia se levantam, embrulhos na barriga se formam e um afastamento, fruto da catarse e do medo, surge. Em meu espaço, protegido pelo afastamento, que também ajudei a levantar, sinto dor de cabeça e enxergo, além da performance, o meu não-lugar de fala — como homem, branco, cis e privilegiado economicamente — e as chagas patriarcais enraizadas à minha volta e em mim.
Quantos corpos são vitimados? Quantas vidas são marcadas? Quantos casos de abuso são negligenciados? E tudo isso por uma cultura arcaica, machista, destrutiva, tóxica.
A performance continua, o corpo da mulher prossegue sendo maculado e agora, simbolicamente, marcado por algo que me parece lama preta. Uma representação da podridão selvagem e tóxica dos agressores que marca, envenena e reverbera pela vítima.
“Você não me ouve?”, “Você não me vê”, “Por que não me responde?”, “Você me ouve, você me vê, mas você não me responde. Por quê?”. As frases ressoam, reverberam e estremecem o público e a plateia reflete o que há na sociedade. Nós vemos, nós ouvimos, mas não respondemos. Tornamo-nos culpados porque temos consciência da ausência, consciência da omissão e, assim, cúmplices dos agressores.
A performance termina, para a maioria, com um grupo bravo de mulheres rompendo o afastamento e tomando uma posição de coragem vanguardista numa sociedade retrógrada, ao enfrentar os agressores e os covardes espectadores. Uma faixa é erguida “Quantas mais terão de morrer?” e nós, observadores covardes, representação clara da sociedade, aplaudimos. Enquanto mulheres lutam, agressores saem de cena e mais uma mulher é amortiçada. Silenciada. Apagada.
Entretanto, para mim, o ato performático só encontra o fim um dia depois, com uma trégua dos pensamentos e das inquietudes que faziam meu estômago revirar. Quantas vozes femininas silenciadas pelo silêncio da sociedade? Quantas mulheres amortiçadas pela minha covardia de somente espectador? Clarice Lispector disse: “Haveria um grande silêncio em mim, mesmo que eu falasse…” e realmente houve um silêncio mordaz da vítima que mesmo falando, gritando e chorando, não recebeu resposta imediata. E quando o silêncio foi respondido, já era tarde, Inês/Maria/Ana/Cynthia/Joana/Vítima-mulher é morta. Mordazmente silenciada.