Crítica – Desencaixe | Corpo político, Corpo estético
Imagem – Divulgação
Por Dário Santos
Mestre em História (UFPE)
A entrada do Teatro Milton Bacarelli, às 18h50, estava relativamente cheia. Esperava com um amigo, o querido Victor, o momento de liberação para poder acessar as dependências internas do Teatro. O poder-entrar e o não-poder-entrar aparecem o tempo inteiro na espera, é o jogo das interdições. Na conversa pré-espetáculo que vai se firmando, brincamos com as expectativas. Por que não entrar logo? No cinema, a pessoa espera sentada, dentro. Mas não é cinema, é teatro. Me autocensuro por fazer comparações entre as linguagens. É necessária a espera? Sei que sim, mas o simples jogo das interdições, que antecede o espetáculo, me deixa a pensar: “Perfomance diz o cartaz. Qual o estatuto do conceito de performance? Ah, esse é o tal do contemporâneo”.
Ao tomar o assento, o clima sonoro-imagético logo nos convida a uma referência do filme Blade Runner (1985.). Mas não só dele: Gotham parece também estar presente. Uma mensagem visual que dialoga com a estética Noir/Futurista é colocada em ação, pelo iluminador Alírio Assunção, que está se destacando em diversas produções na cena teatral pernambucana. Guarde esse nome, ele faz da iluminação um espetáculo à parte, dentro da performance Desencaixe, que tem a direção de Bárbara Espíndola. A ambientação me convida ao Noir; o ruído sonoro produzido na sala dialoga intensamente com a pretensão futurista do clássico de Ridley Scott, mas Desencaixe é mais, bem mais.
O corpo que entra, faceiramente, ao baixar das luzes, é o de Yuri Lumin. Ele serpenteia, mas também acusa, desliza, mas também grita, brinca, mas também briga. Uma caixa colocada no meio do palco, Yuri dentro dela. Dentro ou fora? Parece que há uma intenção de sugerir esse questionamento. Ele parece ir descobrindo o espaço, aos poucos, e vai demonstrando isso através do seu corpo e em diálogo com o ambiente sonoro criado pela sua sonoplastia. Existe uma performance que vai nos meandros da espacialidade. O interior e o exterior dançam nas trilhas dos movimentos desconfiados. Parece querer nos antecipar o que se segue ao espetáculo, mas ele vai falar. De várias formas.
Os efeitos sonoros e a iluminação começam a tecer junto com o corpo do performer um efeito de linguagem que se transmutam a todo momento. Mas, o que Desencaixe proporciona não acontece apenas pela leveza e pela sincronia com que sujeito, som e luz se relacionam, mas também por se mostrarem dispostos a bagunçar o jogo dos referentes. As convenções vão se mostrando de forma labiríntica, sem uma estrutura fixa, com deslize. O som parece ter imagem, a imagem parece ter som e o corpo de Lumin, que continua a explorar o palco através de um sem-número de movimentos, vai construindo narrativa nesse jogo de associações sensoriais.
Quando Yuri sai da caixa, o espetáculo entra em outra dinâmica. A catarse e o estranhamento, categorias tão caras ao fazer teatral, vão se provocar o tempo inteiro, sem necessariamente irromperem. O jogo estético que se segue, começa agora a não apenas estabelecer sinestesias, mas também a tecer uma narrativa sobre a violência policial. De repente, ouve-se o samplear de um clássico do rap, Vida Loka Parte II, dos Racionais MCs. Uma mira a laser noturna aparece e sinaliza o alvo no corpo do performer. O efeito narrativo dessa mira tece alguns fios, conta-nos uma história. O sádico dessa mira não é o seu aparecer, mas o movimento quase que dançante que ela propicia. Há uma lentidão na mira vermelha que passeia. Ela vai na cabeça, passa pelo peito, desce pelo tórax e depois retoma a cabeça. Está feito um jogo, que é lento, mas é um jogo.
Tal jogo parece nos lembrar a fantasia perversa do dominar. O domínio aqui é do campo do violentar, mas não apenas da violência física, mas também da simbólica. Sai deslizando pelo corpo negro, como que se deliciando por cada instante em que o marca com o emblema da violência e do assassinato. Mas qual seria essa marca? Seria a da violência dos inúmeros corpos, principalmente negros, que viram estatísticas, dia após dia, no país da “democracia racial”? Ou será a do genocídio nas comunidades periféricas? Que, inclusive, todos os dias alguns se apressam em negar. Tal negação parece ser colocada em xeque quando há a sugestão do tiro, momento em que a luz vermelha é jogada em cima de quem assiste. Acusação? Sim. Todos se calam, talvez confessando a culpa.
O desconforto de ser associado aos repressores é jogado na plateia. Os silêncios vão se confundindo, o efeito da luz faz com que eles se juntem em um clima de estranhamento. Os vários silêncios calados, olhados, individualizados… O que se segue ao estabelecimento do alvo, poderia ser considerado como um dos muitos momentos de ápice do espetáculo, mas não é. Não existe nessa obra a busca da singularidade do momento, mas sim os momentos. Os múltiplos fragmentos que se juntam para construir uma narrativa. As convenções são transpostas e desconstruídas.
A paz é branca aparece triunfante numa pichação junto a algumas outras palavras de ordens montadas em torno da caixa. O montar do cenário, por Yuri, mostra-nos outro elemento do contemporâneo: o fazer ao vivo, a construção. Entrando na caixa, o que vemos a seguir é um jogo. Que mistura o psicodélico com o ilusório. As luzes adotam um ritmo ora alucinante, ora lento. Ao mesmo tempo, que o ritmo confunde por sua métrica incerta, os sentidos são colocados em experimentação.
A experiência sensorial é levada ao ápice com o performar do corpo e das luzes, que o tempo todo brincam com a ilusão e o corpo do artista. Outro elemento importante, são as referências que as escolhas audiovisuais do espetáculo suscitam. A voz que afirma, de forma sintetizada e repetitiva, em dado momento do espetáculo: “Tantas Contradições”, parece buscar influência no famoso poema Perguntas de um Operário que Lê1, de Bertolt Brecht.
O instante final reserva ainda uma surpresa. Com frases de ordem e questionamentos referentes às mortes de Marielle Franco e Evaldo de Santos Rosa, o momento de encerramento da performance reserva-nos muitos questionamentos. A obra chama questões políticas para si, sem abdicar do jogo da arte. Ao mesmo tempo, vemos irromper na cena: abandono da obra, engajamento político, uso da linguagem urbana do grafite e da pichação. Todos esses elementos são radicalizados em torno de um jogo carnavalizado dos símbolos.
Yuri picha, após emergir da caixa e vai saindo de cena lentamente, como se o que acabasse de fazer fosse rotineiro. Abandona a obra e sai do palco em silêncio, deixando uma mensagem impactante sobre a violência policial e a vivência de um jovem negro. Tudo isso, entrelaçado com o argumento do subjetivo e do performático. Se a arte contemporânea fricciona as fronteiras entre o real e o fictício, também o faz no espaço da política e da estética. Tudo se torna político, inclusive a rotina. A referência aqui, parece nos dizer uma coisa que, desde a década de 1970 é marcante: o pessoal é político.
É isso que faz de Desencaixe, um espaço de deslocamento estético e uma narrativa através do corpo sobre a violência policial. O cotidiano e o corpo são apresentados como possíveis de violência, mas se insubordina contra esse status quo através do jogo entre linguagens, sentidos e performer. Também busca construir, através da estética, a denúncia política das opressões e desigualdades, filiando-se, assim, aos piches de Maio de 68, que entre outras coisas diziam: “Não nos prendamos ao espetáculo da contestação, mas passemos à contestação do espetáculo”.
Vamos, esteticamente, contestar?
Este texto é fruto da parceria entre o 4 Parede e a Semana de Cênicas (UFPE), na 1ª edição da ação formativa “Cobertura Crítica”, projeto idealizado e ministrado por Lorenna Rocha e Rodrigo Dourado.
Notas de Rodapé
1 Em cada década um grande homem…
Quem pagava as despesas?
Tantas histórias,
Quantas perguntas!
BRECHT, Bertolt. Alemanha, 1935.