Crítica – Estudo nº 1: Morte e Vida | Imagem como matéria, desimplicação como escolha
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Imagem – Vítor Pessoa | #ADnoTextoAlternativo #4ParedeParaTodes
Por Lorenna Rocha
Historiadora (UFPE), pesquisadora e crítica cultural
Há uma frase dita em Estudo Nº 1: Morte e Vida que gostaria de trazer como ponto de partida para a investigação da peça do Magiluth. Em algum momento, um dos atores diz: “a palavra Severino não como uma imagem, mas como uma ideia”. Qual paisagem, desenho ou contorno visualizamos quando a palavra “severino” é enunciada? Que figuração ou representação surge aos nossos sentidos? A frase parece confrontar o repertório imagético que atrela o termo a um cenário bastante conhecido: o do Nordeste, da dor, da seca, da fome e da morte. Imaginário esse moldado pela literatura, a mídia, o cinema e também por nós. O que seria, então, torná-la ideia?
Investigações simultâneas
Três operações acontecem de forma simultânea enquanto o jogo proposto pelo grupo se desenrola: a investigação de Morte e Vida Severina, obra de João Cabral de Melo Neto; do repertório produzido pelo grupo nos últimos anos e da linguagem do teatro contemporâneo. Com estrutura cíclica, Estudo nº1: Morte e Vida investe num exercício de imaginação entre os atores, que compartilham proposições sobre a forma como o espetáculo deveria iniciar. Erivaldo Oliveira acredita que poderiam começar às margens do Capibaribe. Mário Sérgio Cabral acha que seria melhor construir uma polifonia, com podcasts e músicas em conjunto a uma série de imagens sobre migração, crimes ambientais e outras questões sociais. Giordano Castro, por sua vez, escolhe a palestra-performance como metodologia para começar a obra. A cada nova possibilidade de início, o abrir e fechar das cortinas do teatro torna o jogo mais evidente. Tal dinâmica confere tom ensaístico à obra mais recente do Magiluth.
A processualidade do espetáculo reforça a ideia de estudo evocada pelo seu título. Referências bibliográficas, imagens, textos e sons são materiais de trabalho e traduzem a sensação de excesso de informação causada por hiperlinks e imagens que mediam grande parte das nossas interações no contemporâneo. A deriva entre símbolos, representações e figurações das mais diversas formam o mosaico de temas que circundam a obra. Seu formato fragmentado e não-linear toca a linguagem do teatro contemporâneo, que se reforça com o uso de microfones, projeção, execução de trilha sonora no palco e com rupturas constantes dos códigos da encenação. Tais elementos são objeto de ironia do próprio grupo que, apesar de brincar com a “obviedade” de suas decisões, por se tratar de uma estrutura que tem sido bastante explorada em parte da cena teatral contemporânea, pouco rompe esteticamente com o que pareciam desejar ter em certa distância. Pelo contrário: o sarcasmo compõe o quadro estético.
Enquanto discutem as escolhas e motivações de suas propostas poéticas, as ações acontecem diante das espectadoras. Vozes-narradoras são utilizadas como recurso cênico. Ao ativar a terceira pessoa do plural, os atores vão construindo a transparência dos procedimentos que permeiam a encenação da peça. O jogo de rupturas e mediações vão se acumulando, produzindo um atrito entre a linguagem teatral e literária. De forma tangencial, tal ferramenta cênica também nos revela certa autoconsciência do Magiluth em relação aos debates que pretendem traçar com o espetáculo e ao seu repertório de quase duas décadas. Numa espécie de pot-pourri, os atores se movem desenhando partituras corporais e sonoras de outros espetáculos assinados por eles, como O ano em que sonhamos perigosamente e Dinamarca. Ao fazerem isso, o grupo convoca implicação no processo de pesquisa da obra de João Cabral de Melo Neto, colocando-se também como material de estudo.
A autoinvestigação, no entanto, parece limitar-se a um aparato imagético, numa proposta de repetição que, se por um lado, ativa a memória daquelas que acompanham de perto tal história, por outro, o grupo parece esbarrar no limite do gesto, de forma a não encarar de maneira mais radical o que seria produzir a análise e revisitação de si. Na timidez de se colocar em risco, o gesto de rememoração chama atenção aqui por se apresentar como uma evidência de um processo maior de desimplicação que ocorre durante o percurso de Estudo Nº1: Morte e Vida. Intuo que isso se conecta com a questão que abordarei nos próximos tópicos: a quase inexistente racialização do debate crítico proposto pelo espetáculo.
Palavra, imagem, imaginário
A palavra “ideia” é múltipla em seus usos e significados: ela pode sugerir que entendemos alguma coisa que nos foi dita ou que temos conhecimento breve sobre alguma questão, lugar ou pessoa; pode referenciar uma inspiração, uma opinião ou uma lembrança; num outro sentido, está atrelada a uma noção filosófica ou ideológica. Se a categoria “estudo” aparece como proposta do grupo para se aproximar de Morte e Vida Severina, talvez não seja demasiado apostarmos que, na peça, o uso do substantivo “ideia” esteja relacionado ao último entendimento aqui apontado. Tornar a palavra “severino” em ideia pode ser tomado quanto proposição para encontrarmos ferramentas que nos possibilitem ler o mundo de uma forma crítica, nas perspectivas desses corpos-severinos, sobretudo no que tange às questões ambientais, sociais e econômicas pulsantes no contexto contemporâneo, temas que são aproximados ao livro publicado no século XX.
O apreço pela palavra (e a atenção ao peso de suas significâncias) é uma aposta na encenação do Magiluth. De forma frontal e seca, assim como a geografia em que se passa a peça-poema de João Cabral de Melo Neto, e por vezes melodramática, o grupo elabora um mosaico de palavras que atribuem sentido ao que poderia ser compreendido como “ser severino no mundo”, neste mundo em colapso devido ao capitalismo global, aos crimes ambientais e aos fluxos migratórios. Morte, fome, excesso sonoro, overdose de ideias: a sobreposição de imagens, faixas sonoras e do texto encenado pelo grupo criam um fluxo intenso de informação que nos lança de frente à contemporaneidade e nos faz questioná-la. Mas a pergunta permanece: na tentativa de sair do banco das imagens, o que seria tornar-se ideia?
A tensão em relação à palavra-imagem “severino” aparece como questão disparadora. Enquanto substantivo e adjetivo, ela pode significar um estado de espírito ou pode ser o próprio destino para alguém. Dentro de nossos territórios imagéticos, no entanto, os signos podem nos apontar significações bem específicas: “homem nordestino”, “homem rural forte”, “homem sofredor”. Apesar de questionar nosso imaginário, num movimento parecido com a discussão proposta pelo Grupo Carmin, em A Invenção do Nordeste, a supressão da “nomeação” ou de características mais evidentes aos entendimentos do grupo acerca do termo “severino” provoca o retorno e a reprodução de um problema que o espetáculo busca se opor. Ora, a transição entre “imagem” e “ideia” pressupõe um reconhecimento de ordem material e representacional. É preciso reconhecer de quais imagens estamos falando. Partimos de um ponto comum de que essa imagem seria referente ao “homem nordestino”? Já que a peça tateia uma obra, Morte e Vida Severina, que traz em si esse corpo-território-paisagem?
Imagem, imaginário, identidade
Se a migração e o colapso produzido pelo capitalismo global aparecem como temas mais aparentes em Estudo Nº1: Morte e Vida, não podemos dizer que não há a vontade de se debater sobre representação e identidade. Uma das cenas performadas por Bruno Parmera emerge enquanto vestígio: a projeção localizada em frente aos nossos olhos nos mostra a página inicial do Google e o ator encena um garoto que deseja se autocompreender a partir do banco de imagens do site. Como num espelho, Parmera passa a olhar para si e tenta encontrar-se em meio a ilustrações e fotografias, adicionando substantivos e adjetivos na barra de busca:
homem + nordestino + pernambucano + magro + gay + artista
A cada nova palavra, acompanhamos como os algoritmos se comportam e qual cenário imagético eles nos oferecem. É possível ampliar as leituras do que seria um simples desejo de identificar-se: a cena cria uma fricção entre autodeterminação (nomeação de si) e sobredeterminação (aquilo enunciado pelo outro), onde a Outridade nos aparece como questão. A imagem do ator, que está em frente ao telão e em nosso campo de visão, contrasta significativamente com aquelas que se apresentam no Google. Num jogo simples entre pesquisa informal e autoinvestigação, a sequência produz uma quebra entre os estereótipos apresentados e aquilo que entendemos como imagem “real”.
Nessa discussão, poderíamos deixar a cor que tinge àquele que está no palco passar despercebido? Questiono isso porque um simples fato chama à atenção: entre as tags escolhidas pelo ator, é curioso a ausência da palavra “branco” como categoria, portanto, marcador social, para a discussão que o espetáculo propõe. Não vejamos isso como “a parte que falta”, mas como um vestígio de desimplicação. O rastro parece tornar frágil a tese em transformar a palavra “severino” em ideia.
A racialidade perpassa não apenas a discussão de identidade, imagem e representação, que surge como aposta do debate crítico do espetáculo, mas a própria forma de pensar o Nordeste, onde a questão da miscigenação, do imaginário e das estereotipias ressurgem com frequência. Se podemos avaliar que os dois apontamentos acima parecem frágeis, uma vez que esse não seria o debate principal do espetáculo, é preciso reconhecer que não poderíamos naturalizar discussões acerca do capitalismo global, da migração e de colapsos ambientais sem fazer ver as operações raciais implicadas nisso.
Verniz contemporâneo
A não racialização dos temas levantados oferece o risco de cair no movimento de universalização/homogeneização que o grupo parecia querer se afastar. Se é possível a conexão de Billie Jean a um trabalhador rural ou promover um sample entre a performance do caboclo de lança ao moonwalk de Michael Jackson, por outro lado, a ausência do gesto de autoconfrontação torna essas investidas mais imagens do que proposição ou ideia. O investimento de cunho estético fica sob o risco de ser um verniz contemporâneo (por sinal, algo bem recorrente nas dinâmicas do capitalismo), que não parece ultrapassar fronteiras que poderiam engendrar reflexões mais complexas e, sobretudo, implicadas. Na fricção entre o real e o ficcional (ou na fabulação de si), o que está exposto não apresenta o signo da brancura como objeto de análise. De maneira estendida ao espetáculo, tampouco reconhece a exploração e a expropriação como aquilo que se funda através de ferramentas elaboradas pelas hierarquias raciais.
Quando olhamos mais de perto para a sua estrutura, a abordagem de Morte e Vida Severina, sob a luz de temas contemporâneos, esses tidos por muitos como “urgentes” e “potentes”, fica no limite do figurativo. Se a racialidade não entra na carne e na respiração da questão, o que seria exibir um vídeo de pessoas africanas em trânsito num barco superlotado, se não o uso da imagem como ilustração, caindo na dificuldade de deslocar-se dela? Significa também compreender previamente sobre quem é o “severino” que estamos falando? Que pacto silencioso se desenha entre palco e plateia quando não se nomeia e não se evidencia o que está sendo compreendido como “severino”, sobretudo quando são corpos brancos que mediam tal discussão? “Severino” tem o direito de escapar de sua cor? Afinal, o que você imaginou sobre a palavra “severino” enquanto me lê?
Se a tese do espetáculo evoca a transição da “imagem” de “severinos” para uma “ideia”, a supressão do fator racial reacende o imaginário comum de quem e como seriam esses “severinos”. Não reivindica-se aqui a brancura como diagnóstico, mas como problema que se implica naquilo que está em debate. Afinal, automatismo e omissão também podem (re)produzir tendências universalizantes.