Crítica – Fragmentos | Ouçam. Vozes. Negras
Imagens – Lucas Brito
Por Quemuel Costa
Ator, pesquisador e crítico teatral (RN)
Uma tela preta, um canto preto. Um ator preto com roupas brancas em uma cozinha branca. Uma cozinha, um cenário, muitas possibilidades. Na performance Fragmentos, da Companhia Negra de Teatro, com Felipe Oládélè no projeto #EmCasaComSesc, do Sesc São Paulo, a única parte da casa que consigo identificar e ter acesso é a cozinha. E é nesse espaço onde se prepara o alimento e que já foi – infelizmente ainda é – espaço de abuso para tantos pretos que, de forma muito irônica, Felipe lê uma receita. Uma receita para redimensionar a existência. Uma receita para preto. Uma receita para ser antirracista? Adicione likes ancestrais.
Uma cozinha branca, mas precisamente ocupada pela pretura: a estátua de Ogum à direita, em cima da caixa de som; o boné amarelo com “Saravá” escrito em letras garrafais; as frutas (simbolizando uma oferenda, um pequeno altar?) no canto esquerdo da tela. Apesar de não ser tão próximo às religiões de matriz africana, é possível reconhecer os símbolos que remetem a essas cosmologias e que estão precisamente dispostos no espaço cênico, enquanto Oládélè ocupa o centro da tela.
Conversando com Judson Andrade sobre as minhas impressões e leituras a partir de “Fragmentos”, ele me contou sobre quando o pai de santo dele lhe disse que, no candomblé, a cozinha é a parte mais importante de um terreiro: pois é nela que a comida de santo é preparada e também onde se alimenta a todos. É na cozinha onde os saberes são repassados. E, talvez, todo esse preâmbulo seja pra dizer que não acho que a performance aconteça na cozinha por acaso ou apenas pelo contexto da pandemia. Talvez também porque achei muito bonito isso que Judson me contou.
As luzes se apagam e passamos a ver somente partes do rosto de Felipe. Um preto isso, um preto aquilo. Uma luz que não mostra um corpo preto em sua totalidade. Ilumina seus fragmentos. A repetição das palavras “um preto” vai desenhando na performance um sentido de individualidade. Pluralidade. Quais são as possibilidades de existências pretas? Quando falamos em preto, sobre quem estamos falando exatamente? Quem são esses pretos que constituem mais da metade da população deste país?
Ouçam. Vozes. Negras. Ouçam vozes negras. Ouçam negras. Vozes negras. Em seguida, a repetição aparece mais uma vez: agora apenas três palavras são combinadas e repetidas. Como uma maneira de se fazer ser ouvido. De alcançar eco. Garantir que o que se está dizendo fique na mente de quem assiste. Ouçam. Vozes. Negras. Ouçam vozes negras. Ouçam negras. Vozes negras.
Após trechos da dramaturgia de Chão de Pequenos, eu não estava esperando – e nem preparado para – as projeções das fotos das crianças negras assassinadas pela polícia, pelo Estado brasileiro. Kauã Peixoto, João Pedro, Kauê Kibeiro, Agatha Félix. Tantos. Elas me atingem em cheio. Me atravessam. As vozes repetidas parecem ganhar um outro contorno: a repetição surge, talvez, numa tentativa de preencher a ausência deixada pelas vozes negras que foram assassinadas. Honrar as vozes negras que não podem mais ser ouvidas, mas ainda ecoam. Reverberam. Vidas negras ausentes. Assassinadas. Sonhos interrompidos. Genocídio dos sonhos pretos. Não esquecer. Lembrar e honrar nossos mortos. Rememorar o passado para quem sabe assim conseguir viver o agora e construir um novo futuro.
Esse movimento também apareceu na adaptação de Buraquinhos do Jhonny Salaberg pro #EmCasaComSesc: as fotos de nossos mortos como forma de pessoalizar e relembrar a cor e o rosto das crianças que o Estado mata. De dar rostos aos meninos que percorrem a América Latina para fugir de um policial, como em “Buraquinhos”, e de mostrar quem são as vozes negras que não são mais ouvidas, mas evocadas, em “Fragmentos”.
Rememorar para quem sabe assim conseguir seguir e acreditar que um outro mundo é possível. Que as nossas existências pretas tem muito mais possibilidades além do racismo, da violência e da dor. Que estamos vivos. Vivos apesar de um brasil racista, apesar de um estado genocida. Vivos e presentes. Que as nossas existências não se resumam aos que foram mortos. Eu não quero mais ter que levantar hashtags dizendo que alguém está presente depois que ela for assassinada. Eu quero os meus aqui. Vivos, respirando, potentes. Povo negro vivo, povo negro forte.
E, é nesse gesto, que projetam-se fotografias de pessoas negras vivas, logo após a já desgastada (mas ainda importante) frase “vidas negras importam”. Elas confirmam que nossas vidas importam enquanto nosso corpo está aqui. Enquanto nosso corpo e nossos sonhos respiram. E é profundamente irritante ver pessoas gritando “vidas negras importam” somente quando um de nós é brutalmente assassinado. Você tem certeza que a sua preocupação é sobre vida?
Felipe retorna à cozinha, após ser atingido pela profusão de imagens projetadas. Uma imagem simples, porém potente e fácil de se deixar atravessar: o performer está lá, parado, olhando para mim. A pele negra chamando atenção dentro daquela cozinha branca. A força e a subversão de um corpo preto vivo. De um corpo preto cantando e dançando. Sendo muito além da dor. Entendendo que nossas potências estão em nossos corpos vivos. Que nossos corpos pretos também são espaços de celebração.
Mesmo sendo uma performance solo, Felipe não parece estar sozinho em nenhum momento. Do início ao fim, ele traz e ecoa outras vozes negras. Pede licença a quem veio antes e abriu os caminhos. Invoca vozes negras do passado, do presente, e por isso também, do futuro. Me lembra de como nossas vozes podem ser espaços para fazer ecoar outras vozes negras.
Felipe Odádélè faz a sua performance preta em Belo Horizonte e me atinge no Rio Grande do Norte. Mesmo que sejamos tão plurais e de locais tão diferentes, há questões imbricadas em ser uma existência negra neste país que atinge e une todos nós – e ao menos na arte, nesta performance, isso não me parece reducionista. (Mesmo que essa união se dê também por conta e através da dor). Um preto isso, um preto aquilo. E eu sei isso que me atravessa porque é uma obra de arte, porque tem questões técnicas e estéticas minuciosamente pensadas. Mas não é só desse lugar que falo.
É sobre como isso me atinge e reverbera. Ecoa. É sobre como essa performance negra chega neste outro corpo negro. É sobre um preto escrevendo sobre uma performance preta. Mas é, principalmente, sobre pretos vivos. É sobre o meu corpo respirando e a minha voz. Uma voz negra entre tantas outras vozes negras.
Ouçam. Vozes. Negras.