Crítica – JERK (Babaca) | Um teatro desagradavelmente lírico e espantoso

Imagem – Alain Monot
Por Bruno Siqueira
Professor da Licenciatura de Teatro (UFPE)
Cruel. Essa foi a primeira palavra que ficou ressoando em meu espírito ontem enquanto saía da sala de espetáculo do Teatro Sérgio Cardoso. Acabara de assistir a JERK (Babaca), pela 7ª. Mostra Internacional de Teatro de São Paulo. O espetáculo, de 2008, é uma produção francesa, dirigida pela diretora Gisèle Vienne, a partir do romance homônimo de Dennis Cooper, com a cruel atuação/interpretação do encenador, ator, marionetista, ventríloquo, dançarino e ator francês Jonathan Capdevielle.
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Crueldade. Um teatro da crueldade. Não apenas pelo enredo que nos conta (terrivelmente cruel), mas, sobretudo, pela forma de contá-lo. Sim, estou me referindo ao sentido de teatro que o ator, encenador e pensador francês, Antonin Artaud, defendeu tão apaixonadamente em sua vida. Um teatro que nos desperta nervos e coração; que, na contramão do mero entretenimento, não permite que os acontecimentos da cena sejam superados; que as imagens construídas e evocadas exerçam um tal magnetismo e ajam sobre nós como “uma terapia da alma cuja passagem não se deixará mais esquecer”. Para Artaud, tudo o que age sobre nossos corpos é uma crueldade.
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Poesia. Esse teatro da crueldade do qual JERK (Babaca) é herdeiro procura nas agitações, nas convulsões e nos espasmos dos corpos pulsantes; no amor, no crime ou na loucura um pouco de poesia, cuja potência permita ao público reconhecer que o teatro seja tão necessário nos dias de hoje, terríficos e catastróficos. Não um lirismo epidérmico, que nos conduz ao escapismo, mas um terrível e cruel lirismo, que nos convida a mergulhar no lado mais profundo e obscuro da vida. Pulsão de morte, pulsão de vida. Thanatos e Eros. Freud lido por Marcuse.
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JERK. O espetáculo me afetou por diversos dispositivos. Sendo um teatro minimalista (ou, se preferirem, pobre, no sentido grotowiskiano), toda atenção do público se dirigia ao corpo do ator. Sentado sobre uma cadeira simples de madeira, com uma bolsa grande de seu lado direito e um antigo micro system de seu lado esquerdo. Esse corpo já se encontrava em estado cênico (mais uma vez Grotowiski, herdeiro de Artaud); sua presença tinha qualidade, tinha potência.
O intérprete vivenciava David Brook, na prisão, diante de estudantes de psicologia. O corpo, apesar de estático, estava tomado por chamas, incendiado, empesteado. Os nervos faziam os músculos tremerem; as mãos, inquietas; pequenos e constantes tiques na face; o olhar flutuando de um lado a outro da plateia, vendo o público chegar e se sentar nas arquibancadas.
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Fanzines. Fechada a porta da sala de espetáculo, dois rapazes da equipe técnica começaram por distribuir um fanzine a cada espectador. Feito em folhas de papel 40 kg de cor creme, continha fotografias, desenhos e dois textos escritos em francês. Nele, vinha acrescida a tradução dos textos, impressa em papel A4. O ator nos informa que estamos recebendo um fanzine e que devemos ler a primeira história, enquanto ele se organiza com os fantoches e se prepara para a primeira parte da cena.
A segunda história seria lida na segunda parte do espetáculo. As histórias recriam o caso verídico do Candy Man, Dean Corll (1939-1973), um serial killer que, junto a seus dois cúmplices, os adolescentes David Brooks e Elmer Wayne Henley, sequestrou, violentou e assassinou cerca de 28 adolescentes na cidade de Houston, no Texas (EUA), no início dos anos 1970.
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Fantoches. Também chamados de títeres (termo emprestado do espanhol), é uma espécie de marionete, bonecos que, em vez de serem manipulados por fios, são animados por uma pessoa pela manipulação que resulta da introdução da mão numa espécie de luva, em que o dedo indicador vai segurar e mover a cabeça do boneco, enquanto o polegar e o anelar fazem mover os braços. No nordeste brasileiro, esses fantoches recebem o nome de mamulengos. Em JERK (Babaca), esses fantoches funcionam como dispositivos que disparam afetos ambivalentes, contraditórios, agônicos.
Bonecos feitos com esmero e primor, com faces extremamente delicadas sob as máscaras de ursinho panda e de cachorrinho, eles representam personagens responsáveis por ações de extrema violência e crueldade. A personagem David Brook, quem os manipula, um psicopata, o faz como um processo terapêutico. Valendo-se da fantasia, ele recria o real dos crimes que praticou, distancia-se dele, ao mesmo tempo em que se reconhece nesse real. Esse processo psicodramático pode ter resultados surpreendentes, de superação de traumas, de neuroses, de psicoses, de instintos assassinos. O ator, Jonathan Capdevielle, desempenha com maestria a manipulação dos bonecos.
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Sonoplastia. Último dispositivo, por ora. O som é, neste espetáculo, um dos dispositivos mais potentes, disparando afetos que nos atravessam e nos provocam as mais diversas e díspares reações. Sobretudo na segunda parte do espetáculo, a performance vocal do ator foi capaz de criar inúmeras imagens potentes, nas suas diversas modulações, nas frequências vibratórias do som, nas configurações melódicas e harmônicas tonais e atonais, nas suas dissonâncias e distorções.
Por meio de sua vocalização, Jonathan Capdevielle nos fazia ouvir os humores emanados dos estupros cometidos por Dean Corll e seus dois comparsas. Fazia-nos visualizar ejaculações, espermas, fezes, suor, lágrimas, sangue… muito sangue. Sua voz ecoava no espaço e, com o som, desenhava nele essas tantas e diversas imagens, nos provocando espanto, náusea, horror, ódio, comiseração, amor. Como dizia Nelson Rodrigues, referindo-se a si mesmo e ao seu trabalho, trata-se de um teatro desagradável, capaz de produzir o tifo e a malária na plateia.
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Por fim, quando escutamos a voz em off da professora de Psicologia lendo a análise de seu aluno dirigida a David Brook, vamos aos poucos ouvindo um som distorcido e estridente de guitarras e equipamentos tecnológicos, cujo volume vai tomando conta do espaço e silenciando a voz da professora. David Brook continua nos olhando, impávido e inerte, como se o som que ocupa o espaço adviesse de sua cabeça. Saímos do teatro sem mais palavras.