Crítica – Mi Madre & Histórias Bordadas em Mim | Escrevivências nas cenas negras
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Imagem – Divulgação
Por Lorenna Rocha
Licencianda em História (UFPE), pesquisadora e crítica cultural
Duas costuras, dois universos, duas constelações. Os solos autobiográficos, Mi Madre e Histórias Bordadas em Mim, se encontram na grade de programação do Festival Luz Negra. Mas não só: eles também possuem zonas de contato pela presença de duas mulheres pretas, Jhanaina Gomes e Agrinez Melo, assim como pelas memórias que ambas compartilham, cada uma em sua singularidade, no palco. Podemos identificar que algumas dessas vivências expressam grandes similitudes, sobretudo no tocante às questões de gênero e racialidade. No entanto, as formas de contarem ao público suas histórias marcam a distinção das poéticas que edificam ambos os espetáculos.
Em Mi Madre, o primeiro quadro que vemos é ocupado pela performer-bailarina. Ela está sentada numa cadeira de madeira, ao lado de um pequeno móvel, que nos remonta a um tempo localizado no passado. Com expressão serena, ela segura um bastidor de bordado, trajada com um vestido vermelho de detalhes pretos. Ele é longo em sua extensão, assim como suas mangas, as quais percorrem boa parte dos braços de Jhanaina. Essa visualidade montada no palco está impregnada de passado, o qual é constantemente friccionado pelo corpo jovem e magro daquela mulher. O excesso de tecido, unido ao cheiro daquilo que é antigo, cria algum tipo de descompasso. É como se aquela roupa parecesse pesar demais. Vestindo um salto preto, a decisão de colocar-se de pé e andar pelo o espaço canta a firmeza daquela mulher que parece não estar só. Ela é uma linhagem de mulheres-mães-avós inteira.
A performer-bailarina começa seu trânsito entre memórias pessoais, oferecendo um pouco de si e desejando um pouco do que seu corpo pode dar para cada uma das mulheres que antecederam-a. No momento em que evoca cada uma delas, três pinos de luz, localizados nas extremidades frontais do palco, aparecem sequencialmente em cena. Se acionar as luzes possibilita trazer simbolicamente essas mulheres ao palco, eles também fazem emergir as sombras e penumbras que compõem a vida dessas madres, sombras essas que, por vezes, elas mesmas produzem. Optando por uma investigação contraditória, Jhanaina embarca no passado e no presente, apostando na força inventiva e terapêutica desse processo.
As narrativas das cenas-depoimentos de Jhanaina percorrem, sobretudo, a relação das mulheres de sua linhagem genealógica com os homens e, também, os relacionamentos amorosos que ela mesma experienciou. A performer-bailarina parece constatar a repetição dolorosa que acontece dentro de sua família, deslocando-se para aquilo que também pode se manifestar em tantas outras famílias (negras). Para acessar suas memórias, ela investe na ativação do seu olhar da infância, o qual testemunhou violências físicas e psicológicas, as quais parecem estar sendo reprocessadas durante o espetáculo. No entanto, ao invés de investir na reiteração dos episódios de dor e trauma, ela busca readaptá-los ou reinvestigá-los usando seu próprio corpo, criando possibilidades de reposicioná-los.
Negando-se a apagar as marcas do passado, a performer-bailarina dá atenção a cada repetição ou a cada representação de uma mímica violenta e diária, elaborando novos gestos para contar suas histórias, de um jeito que possa performa-las, sem necessariamente abandonar totalmente o peso de suas feridas. Passar as mãos nos cabelos, encarar os puxões de uma violência vivida por uma das mulheres de sua vida, até se transformar num movimento outro que deixe de ser aquilo que se filia à memória traumática: essa é a composição da dramaturgia assinada por Jhanaína Gomes.
Colocar-se na posição dessas mães (a sua e suas avós) não se dá apenas no gestual. O peso da roupa já era uma pista: Jhanaina inicia seu solo carregando outras presenças (alegrias e dores, tudo junto). O figurino torna-se, então, elemento mobilizador de identificação dessas mulheres que coabitam a performer-bailarina. Em uma das cenas, ela tira os grampos de seu cabelo e deixa de ser sua avó: embarca em si mesma, assume a voz de narradora das histórias, criando certo distanciamento daquelas lembranças. Num outro momento, volta a ser uma de suas avós ao colocar um lenço de tecido em sua cabeça.
Após uma incursão entre canções românticas (e abusivas por normatizarem a violência psicológica e o amor romântico como justificativa para tal), as quais preenchiam a casa da família de Jhanaina e seu próprio imaginário, ela abandona o lenço. Depois de fazer as pazes com sua mãe e convidá-la para dançar no presente, o gesto de ruptura definitiva parece vir daí. Esse procedimento desencadeia seu desnudar em cena. Se antes seus gestos eram bruscos e repetitivos, agora ela passa a dançar consigo mesma, de maneira mais fluída, longe dos desenhos de castração que estavam atrelados às violências que ela e todas as outras mulheres de sua família compartilharam até aqui.
Em contraposição, Histórias Bordadas em Mim tem como ponto de partida uma infância com sabores mais palatáveis. Ainda que maneje algumas memórias igualmente sensíveis e, em certo sentido, dolorosas, Agrinez opta por tratá-las com certa sutileza e comicidade. Em diálogo também com a poética do teatro de objetos, ela produz um ambiente menos marcado pela dor. A atriz caminha por suas histórias como quem manuseia levemente uma série de tecidos. Ela mobiliza seus ancestrais de sangue, cascabulhando no seu próprio baú (simbólico e cênico) retalhos de suas vivências particulares, mas que também encontram pontos de contato com a história de outras mulheres pretas.
Inspirada na figura do griot, o uso da palavra é extremamente valorizado no monólogo, território onde ela fabula e reelabora suas memórias. É através dela que a atriz explora os ritmos e os modos de falar, criando imagens através da oralidade. Por focar bastante no uso da primeira primeira pessoa, por vezes, o solo parece dificultar que as narrativas deságuem para o público. Num tom um pouco persistente em si mesma e para dentro, as vezes se torna difícil encontrar coletividade entre essas memórias, o que não necessariamente inviabiliza a relação com o espetáculo, mas que, de alguma maneira, fratura e paralisa seu (aparente) gesto. Sinalizo que essa dificuldade de aproximação também possa ter se alargado pela escolha de como se registrou o próprio arquivo audiovisual da peça, o qual, por si só, pode impor uma série de distâncias.
O processo de fortalecimento de si, em Histórias Bordadas em Mim, é atravessado pelas questões implicadas a negrura de maneira um pouco mais transparente, em comparação a Mi Madre. Ao tecer o fio de sua cronologia, a atriz nos apresenta episódios de racismo e de sexismo sofridos na adolescência e no começo da vida adulta. No entanto, o esforço de acessar histórias que extrapolam tais questões adicionm uma série de outros sentimentos a serem evocados em seu monólogo. Encantado e estruturado pelos arquétipos dos orixás, em suas gestualidades e movimentos, o solo edifica-se através das pesquisas desenvolvidas por Agrinez, nomeadas Dramaturgia dos Orixás. As canções e sonoridades, que são executadas no palco em companhia de Talles Ribeiro, também distanciam a figuração da dor, através dos acordes soltos do violão e da vibração enérgica do atabaque e de outros instrumentos.
Da inocência da infância até a posição de confrontar a realidade da vida adulta, a atriz nos mobiliza a acompanhar o processo de sua transformação em vida. Dentro dessa encruzilhada, ela (re)encontra sua negridade e sua religiosidade. Em um dos momentos mais encantados da sua contação de história, a atriz divide um sonho que teve com alguns orixás, entre eles, Oxum. Aquilo que começou com mistério e pavor com sua avó, ao ter se deparado com um terreiro de forma desavisada e logo interditada por sua mãe, ganha outros contornos no palco: ao abraçar sua orixá, ela canta e dança (com e) para ela, ativando as alegrias e os mistérios envolvidos nesse (re)encontro. Seu corpo, ao fim da jornada, ganha firmeza e fluidez, tornando-se incontornavelmente radiante.
Assim como Mi Madre, ambos os solos autobiográficos parecem estar alinhados às demandas de autonomeação das mulheres pretas, o que se produz enquanto discurso político (portanto, coletivo), mas também na própria poética dos espetáculos, quando ambas, por exemplo, optam pelo gesto negritado de falar seus próprios nomes, se apresentarem, colocarem suas histórias no mundo. Porém, entrelançando-as com as provocações de Leda Maria Martins, sobre as Tiranias da Subjetividade, pergunto: como construir artisticamente esse eu de forma que as memórias e experiências compartilhadas em cena produzam coletividades e escapem do individualismo?
Entre sons, luzes e texturas tão distintas, a programação do Festival Luz Negra promoveu o encontro de duas mulheres que rompem com certas tramas que já se envolveram em vida, mas que não as abandonam, ao ponto de desejarem compartilha-las na esfera pública. Jhanaina opta pelo vazio, pelo silêncio, penumbra e sombras para encarar as figuras femininas e masculinas que lhe marcam no presente. Já Agrinez, encena com as luzes acesas, onde preenche as lacunas e os intervalos de suas memórias com muita musicalidade, sons e canções. Nessas duas (re)escrituras de si mesmas, essas escrivivências, como nos diz Conceição Evaristo, desperta diferentes maneiras de nos encontrarmos e desencontrarmos com essas narrativas, possibilitando processos de identificação com nós mesmas ou com alguma outra mulher preta que, provavelmente, pode estar muito próxima de nossas vidas.
Esse texto foi produzido durante a cobertura crítica do Festival Luz Negra – 4ª edição (Grupo O Poste), realizado na modalidade on-line com incentivo da Lei Aldir Blanc – Pernambuco.