Crítica – O Evangelho Segundo Vera Cruz | Cenas distópicas do presente

Imagem – Divulgação
Por Rodrigo Hermínio (PE)
Licenciado em Teatro (UFPE), Arte-Educador, Ator, Diretor e Fundador do Teatro do Amanhã
Adquirir ao ingresso de forma antecipada, chegar à sala virtual minutos antes da apresentação, encontrar pessoas conhecidas na Plataforma Zoom, fazer burburinho por meio do chat, produtores pedindo ao público mais uns minutinhos para dar tempo de outras pessoas estabelecerem a conexão: eis o “novo” normal. Confesso que, em quase 180 dias longe dos teatros, foi na leitura dramática de O Evangelho Segundo Vera Cruz, do Teatro de Fronteira (PE), que me senti tão próximo àquela realidade que tenho tanta admiração. Ver as pessoas ficarem online e olhar para suas fotos nas miniaturas do aplicativo de videoconferência deram uma sensação muito parecida daquele outro mundo, no qual encontrávamos nossos amigos e colegas na fila de entrada do edifício teatral. Na minha sessão, foram mais de 100 espectadores presentes/conectados. Já podemos falar em casa cheia/sala lotada nesse mundo do teatro virtual?
O ano era 2022, um futuro distópico. Os artistas foram banidos da sociedade. Muitos fugiram. Outros foram capturados, mas alguns conseguiram escapar e vivem escondidos em bunkers. Em cada janela do Zoom, que torna-se o espaço físico/virtual do bunker, os artistas compartilham suas experiências pré-confinamento. Após esse pequeno prólogo, inicia-se a narrativa da peça que mescla o gênero documental e o ficcional, fazendo referências aos episódios de censura contra o espetáculo O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, em Pernambuco. A peça foi proibida de se apresentar durante um dos mais importantes eventos culturais do estado: o Festival de Inverno de Garanhuns.
A obra, interpretada pela atriz Renata Carvalho, acabou sofrendo retaliação de grupos católicos e neopentecostais, associados também à política partidária. Ao performar Jesus Cristo numa corporeidade não-normativa, sendo ela uma mulher trans, a peça trouxe questões sobre LGBTfobia e, a partir da doutrina e signos cristãos, formulou pensamentos sobre temas como perdão, aceitação, opressão, intolerância e preconceito. Não foi a única vez que o espetáculo passou por episódios como esse: em diversas cidades brasileiras, Carvalho foi sujeita a ameaças, discursos de ódio, proibições judiciais e lixamento virtual de pessoas que, muitas vezes, nem se quer pesquisaram sobre o que tratava a obra.
Em O Evangelho Segundo Vera Cruz, tudo acontece na cidade fictícia chamada Vera Cruz, a qual faz alusão a Garanhuns, região localizada no agreste de Pernambuco, cenário onde ocorreu o episódio que serve de mote para a construção da dramaturgia assinada por Rodrigo Dourado. O nome também se aproxima do passado colonial brasileiro: as terras canarinhas eram conhecidas como Terra de Vera Cruz, até 1503. Nessa conexão entre cristianismo e colonialismo, é possível considerar a crítica ao presente, uma vez que estamos tomados pela ascensão de líderes religiosos nas instituições que governam o país, assim como a crescente influência das ideologias neopentecostais que impactam diretamente nos costumes dentro da esfera pública e privada.
No texto dramatúrgico, de fato, parece ser difícil distinguir o que é real e ficcional, principalmente quando sabemos dos acontecimentos ocorridos em Garanhuns. No entanto, as escolhas dramatúrgicas feitas pelo diretor, como a criação de personagens que guiam a história, fazendo a trama ganhar uma dramaticidade, faz com que essa história deixe de ser uma sucessão de fatos documentais ocorridos no interior de Pernambuco, além de trazer à público questões sobre identidades de gênero e transfobia no Brasil.
O evento que mobiliza a articulação de Joe (personagem-atriz) com os demais artistas, que é ponto de partida para o acontecimento teatral, é a tomada de conhecimento por parte dela sobre uma ordem judicial que proibiria sua peça de se apresentar na cidades das flores. Com a reinserção e retirada consecutiva do espetáculo, assim como aconteceu com Renata Carvalho, em 2018, o quadro de instabilidade passa a ser reencenado nesse cenário distópico. A apresentação da peça censurada em O Evangelho Segundo Vera Cruz acontece de forma escondida, em um local afastado na cidade. A trama se baseia nos eventos que ocorreram com Renata Carvalho naquele ano que, mesmo de forma privada, teve sua obra interrompida pela polícia local, que retirou os equipamentos de som e de luz da apresentação, provocando uma grande mobilização do público presente naquele momento para garantir a integridade física da atriz e a continuidade do espetáculo por escolha da própria Renata.
Uma das cenas mais fortes e impactantes da leitura dramática do Teatro de Fronteira, é a cena em que Joe Andrade começa a reproduzir algumas falas da atriz Renata Carvalho sobre a questão do transfake no teatro. Esse termo refere-se à prática de atores e atrizes cisgêneros interpretarem personagens transgêneros (pessoas trans e travestis). Essa ação é considerada por muitos movimentos LGBTQIA+ como um ato transfóbico. Questionando de forma assertiva ao público se pessoas trans, de fato ou não, tiram as oportunidades de trabalho das pessoas gêneros, a potência cênica de Joe junto ao discurso de Renata mobilizam euforicamente os espectadores, que foram convidados a participar da cena através do chat da Plataforma Zoom, respondendo às provocações de Joe.
No fim do espetáculo, o diretor incentivou que o público enviasse por e-mail finais alternativos para o espetáculo, afirmando que o contexto turbulento e denso no qual foi produzido o texto não possibilitou, naquele momento, a elaboração de um final com mais esperança e leveza. Mas, me questiono: que outra realidade poderíamos pensar para esse momento político-social em que nos encontramos? Estamos mesmo próximos de criar um final alternativo no qual as coisas sejam menos violentas e problemáticas ou estamos mais perto desse futuro distópico e inquisitório?
Esse texto foi produzido durante a Oficina de Crítica Teatral, ministrada por Lorenna Rocha e Rodrigo Dourado, no edital emergencial #CulturaEmRedeSescPE, do Sesc Pernambuco, em 2020.