Crítica – O Sujo Castigo dos Irmãos Karamazov | Só escrevo por amor
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Só escrevo por amor: donde o amor não entra, minha cabeça não passa.
Poética de amor para O Sujo Castigo dos Irmãos Karamazov
Quisera eu poder esculpir
em minha alma
essa vontade que ontem
era mansa
que hoje rosna
que a noite acorda
e não volta a dormir
Quisera eu esculpir, nada
visto que a vida é feita de gás
que queima e se consome
Quisera que o canto
dos pássaros cantassem
sementes
e as sementes chorassem
madeira
e a madeira erguessem
a casa, o desejo do corpo
O corpo que se atemoriza
mas que aprende a amar
seu temor
o adeus, o fim, o recomeço
Quisera eu, poder nada.
D’Ozzi Cãndido.
Recife, carnaval, 2020.
Recife, 27 de novembro de 2019.
Se eu não chorar ao escrever o texto, queimo-o depois. Eis que esse fora um texto escrito entre a gargalhada e a chuva. Passei um mês sem conseguir falar do espetáculo sem embargar a voz e molhar meus olhos. E choro nesse instante. Um choro de celebração e reflexão. Como andar, ou trabalhar, até gastar-se, até a vida cumprir com a missão de findar-se.
Da última vez que estive aqui, me despedi de costas e sob a conjuração de que só voltaria a aparecer sob aspectos de outros rituais. Aqui estou numa gargalhada só. Como um drácula levantando-se de seu caixão formoso para espiar a vida e sentir sede dela. É isso: O sujo castigo dos irmãos Karamazov, da Cia NAVA de Teatro, é uma sede.
Sede de gritar a vida, de beijar os seios da vida, de morder a batata da perna e arrancar-lhe um pequeno pedaço e pedir perdão por isso, de cuspir a vida, de lamber o cuspe, de morrer. Não sei se vocês sabem, mas incorporar o poeta, é risco como todo risco. Às vezes ele não quer ir mais embora, derruba prédios e incendeia trens. É por isso que vivo tardando a hora do acasalamento.
O poeta chegou desde o dia que assisti o espetáculo. Chegou ali mesmo, parido. Sob uma cortina de fumaça e sentou no meu colo, bebendo meu corpo. O Que me vale dizer que o ato de contemplar O Sujo Castigo… invocou a instância mais sublime de um ser, o ser poeta. Disse-me ele (o poeta): prepara o melhor quarto que tiver que vou ficar contigo esse mês de dezembro. Eu disse: está bem. Como tu quiseres.
Sem rituais medonhos, que fingem serem autênticos, o espetáculo é, de fato um espetáculo, cujo transeunte fica afobado para que ele não acabe logo. Quer-se beber mais um pouco, ficar-se miseravelmente bêbado e sujo. Celebrando o grito quase impossível de ser dado na vida. O espetáculo dos Karamazov´s recifenses é um balé de alta postura no mundo. Os atores dançam no palco ao dizer-se personagem. Ao imitar a vida com tanto barulho, que eis que a vida eclode. O sujo castigo… é uma vontade. E não há nada que eu mais ame no mundo do que uma boa vontade.
Esse é um espetáculo que eu só brotei e nasci para dizer belezas, para cantar-lhe um hino, para pedi-los que gritem e gritem esse experimento humano cuja ferramenta ajuda o humano a ser humano. Um desejo de se agarrar consigo para amar a si mesmo, é inspiração de poeta. Cortejo de defunto. Alto farol da arte salvando o mundo de atracar, mesmo que o mundo jamais obedeça. Da Invenção ser louvada. O poeta habita no meio de voz, saudemos o poeta com pétalas de jasmim e àgua bebida da fonte, no meio da mata.
É de minha responsabilidade política e existencial, escrever sobre este espetáculo. E o faço como quem planta jardim, nina o filho, pesca o peixe, colhe os nabos. Karamazov é uma briga que não sei decifrar, se eu tentasse decifrar (e se eu tentasse eu conseguiria) essa poética que vos escrevo agora, vós que tens olhos e ouvidos, mas sobretudo, vós que tens alma, não nasceria. Nasce pelo direito a suposição, ao experimento. Nasce por que o erro existe. Nada mais humilha a existência do que o não direito ao erro, a falha. E erro, pra mim, é a nota dez dos concursos. Acertar talvez seja andar ao contrário.
Vou escrevendo o texto até o texto aprontar a si mesmo. Eu me inventei para suportar a realidade. Minha casa é no lugar da imaginação. Constranjo-me por entender a realidade. Sinto-me doente. Mas imaginar é refazer a vida. Imaginar é amar a vida. Imaginar é recriar deus. Sou cavalo imortal, selvagem e doce, para a entidade da poesia morar. Morar com orgulho, eu saúdo a poesia e a poesia planta flores em meus pés.
O que quero dizer é sempre através do não’dito. Sou um blasfemador de palavras. Fico torcendo-as até virarem imagem. Não sei conversar com a boca, com a palavra. Eu prefiro o silêncio dos olhos que suportam conversar. Do toque que não supõe. E Karamazov me aguça a poesia. Torna-me o corpo acolhido num mundo onde os corpos não podem desnudar-se. Como, pois, poderemos exigir almas nuas?
Precisei passar o carnaval aqui em Recife, para fazer jus ao ritual sagrado do reconhecimento. Essa poética desvairada seria lançada na abertura do carnaval, por que este espetáculo tem o espírito do carnaval em seu cheiro. Do ponto de vista social, Karamazov é uma entidade. Um retrato bem retratado da mesma sujeira que polui o rio Capibaribe e tantos Capibaribes pelo mundo. Karamazov é triste. Como olhar o rosto no espelho do tempo. Mas alto lá, a tristeza a qual me reporto, é tristeza essencial para a vida.
Uma pessoa não triste, é insuportável. Uma pessoa leve pesa o mundo. Do olhar coletivo, Karamazov é uma denúncia potente. Do ponto de vista estético, é um laboratório, e do ponto de vista psicológico, o resultado de uma vivência social comum vivenciada por costumes ideais de amor e dor.
Lugar comum de inversão. Instância donde se esquece o tratado de sermos pessoa, erguendo-nos a um lugar donde um gênero impera. Donde esse mesmo gênero financia a barbárie. Desejas experimentar o nascedouro de uma personalidade? O Sujo Castigo… propõe um experimento próximo ao sublime.
Não posso deixar de afirmar que o espetáculo é uma discussão sobre o amor. O amor que não deu certo, evidente. Visto que o amor tem pré-requisitos para ser amor. O espetáculo é um recorte experimental sobre como constituímos culturas que desembocam em outras culturas. É um retrato sobre abusos e abusados. Uma canção cortante que canta a vida enquanto essencialmente resistente.
A gente precisa aprender a resistir a nós mesmo e aos outros. A gente precisa resistir por força e não por fuga ou medo. A gente precisa largar mão de esconder nossa cara na tentativa inocente de sermos perversamente românticos. Tudo isso cabe em Karamazov. Tudo isso cabe nas reflexões sobre os conceitos que miram mais os acadêmicos do que o real experimento da vida enquanto sentir único, intrasferível e findável.
Ao que fora me pedido, findo com a promessa. Vou andar de olhar a vida e espreitar novos espelhos a fim de restaurar a força do meu fôlego quando sou convocado novamente a vida. Um beijo nos olhos d’O Sujo Castigo dos Irmãos Karamazov, vida longa à sua existência.
Recife 21 de fevereiro de 2020. Poética de olhar caleidoscópico. Todos as vias brotam poesia. Di Ozzi Cândido. Poética do Eu Lírico. Sítio Cafuba/20.