Crítica – Ombela | Mulher menstruada, fluxo de sangue!
Imagens – Divulgação
Por Maria Bianca
Graduanda em Licenciatura em Teatro (UFPE)
O espetáculo Ombela cumpriu temporada no espaço O Poste Soluções Luminosas, todos os sábados e domingos às 20h, na primeira edição do Festival de Teatro Outubro ou Nada. O poema sensível do angolano Manoel Rui, Ombela, resultou em 2014 no espetáculo inédito realizado pelo grupo pernambucano O Poste, com direção e encenação de Samuel Santos, em cena as atrizes Agrinez Melo e Naná de Sodré.
O grupo surgiu em 2004 com intuito de prestar serviços de iluminação cênica. Em 2009 nasceu o espetáculo Cordel do Amor Sem Fim, de Cláudia Barral, resultante de vários prêmios de melhor atriz, melhor cenário, dentre outros. Com sede de palco o grupo pôde ampliar sua trajetória de produções artísticas, desenvolvendo trabalhos antropológicos direcionados ao teatro físico. Há cinco anos se aprofundam nas pesquisas voltadas aos textos de matrizes africanas, investigando o universo das incorporações de Orixás, aproximando a investigação aos processos metodológicos de Michel Chekhov, Vsevolod Meyerhold, Eugênio Barba e Jerzy Grotowski. Formado exclusivamente por atores e atrizes negras, o grupo reforça e fomenta em suas criações a representatividade afrodescendente na cena teatral recifense.
A palavra Ombela que é de origem Umbundo, idioma do autor, significa chuva em português. A água que está dentro, está fora. Esse rio que passa, essa forma líquida, aquosa de mostrar o sagrado feminino, a mulher enquanto ser divino e a chuva, centro do universo. Esse centro está presente no cenário do grandioso lugar pequeno, o Poste, em formato circular onde todos podem se ver. As atrizes estão no meio, às margens do rio por onde escorre a água que cai, abençoando e abrindo os caminhos… O ritual começou!
Ao adentrar nessas águas, nesse mar, ouço o som da chuva nos chocalhos presos nos pés de Agrinez e onde Naná tem em mãos um jarro sonoro. O rosto das atrizes estão cobertos por miçangas coloridas. De acordo com a Mitologia Africana os orixás ficam com o rosto oculto quando irão se apresentar no salão, uma vez que a incorporação é um “empréstimo” corporal, ou seja, o orixá não tem face.
A sutileza da obra nos leva ao tempo expandido de outro espaço, um banho de sonoplastia que mexe na memória, no resgate sensorial das ombelas. A composição musical é de Isaar França, cantora, instrumentista e compositora negra pernambucana. A profunda pesquisa sonora do grupo nos trouxe instrumentos delicados que remetem ao som da chuva, dando potencialidade a cena, através da kalimba, caxixi, xequerê, tambor, ocean, marimbau fixo no cenário, agogô de argila feito pelo Mestre Nado, jarros sonoros, pau de chuva, apito e chocalhos. As músicas tocadas e cantadas ao vivo pelas atrizes nos invadem. Esses dispositivos musicais ritmizam o espetáculo. Além desses instrumentos, a narrativa da peça ora é falada em umbundo, ora em português. Ombela, a chuva, fina, grossa, torrencial, fonte de energia e de vida, mãe e filha das trovoadas, a mesma em todos os lugares, a mulher amada de água, a chuva que arrebenta trovão, nos faz enxergar a analogia da chuva com as diferentes personalidades dessas deusas do ventre.
Trechos musicais do espetáculo: “Eu dou banho ao vento com minha mão de mulher…” “Eu sou ombela e quero encher os rios que os outros andam a secar!”.
As canções, o ritmo dos instrumentos de percussão, a dança, os gestos, todos os movimentos do corpo, os mitemas culturais conjugados em cena capturam o próprio pulsar rítmico da experiência negra ancestral, engendrando uma percepção do corpo e do espírito. Essa orquestra de palavras, sons, imagens, luzes e sombras, máscaras e totens, cores, ritmos e cheiros, cria uma linguagem teatral sinestésica, envolvendo o palco e a platéia numa atmosfera de receptividade e engajamento coletivos. (MARTINS, 1995. p. 101)
Os rituais, e a presença das atrizes em cena, tornam-se um segundo texto a ser analisado. Os elementos teatrais do espetáculo são ricos em simbologias e estão presentes na maquiagem em tons de dourado, nas pinturas brancas em partes do corpo, nos figurinos vivos em suas tonalidades produzidos pela atriz Agrinez Melo e também nas indumentárias utilizadas no corpo enriquecendo os aspectos culturais afrodescendentes.
Com base nos estudos antropológicos de Eugênio Barba, é notável a presença cênica das atrizes em forma de equilíbrio, dilatação, energia, oposição, corpo decidido, pré-expressividade bem como as partituras em cena. Esse corpo dilatado, “extra-cotidiano”, a energia lançada para plateia chega através do olhar. Não tem quarta parede ou coxias, as atrizes se resolvem na hora, seus movimentos são precisos e suaves como uma corrente de água que vai escorregando nas pedras, liberando o mínimo de esforço para o máximo de energia, uma força vital, ampliação de todos os pontos corporais como centro energético, traços que encontramos no candomblé. A libertação dessas duas gotas de águas se dão pela incorporação de duas entidades.
A encenação do grupo é uma ação política-estética-cultural dentro do cenário teatral eurocêntrico. O próprio espaço do Poste é o exemplo claro disso: plateia e atrizes no mesmo plano. Fomentador do universo feminino, o espetáculo nos traz a necessidade de voltar para o útero. Encharcada nessas águas, a obra levanta questionamentos sobre a cultura afro brasileira, a importância da natureza, a mulher negra como protagonista da sua própria história, a mãe, a avó, a criança, a mulher sem pudor, sem medo de mostrar seu corpo pertencente a este mundo e há tantos outros, de outras vidas. Recomendo a todas as mulheres, as ombelas, essa libertação da alma. Evoé ao grupo. Resistência negra presente!
Referência: MARTINS, Leda Maria. A cena em sombras. Ed. Perpectiva S.A. 1995.