Crítica – RAGNAROK | Quando até os deuses calam

Imagem – Divulgação
Por Dário Santos
Mestre em História (UFPE)
18:57. Lorenna e eu apressávamos nossos passos, na avenida Guararapes, em direção ao MUAFRO. O espetáculo, marcado para às 19:00 horas, chamava-se Ragnarok, no Festival Janeiro sem Censura. Tal nome faz com que exista em meu pensamento certa expectativa em torno de uma representação do evento escatológico da mitologia nórdica. A chegada é rápida, escolhemos nossos assentos. Um dos primeiros elementos da espacialidade é a não existência do palco italiano, elemento que já coloca questões sobre o espetáculo que ali vai ser representado. A sala ainda se encontra esvaziada. Revejo dois queridos amigos, trocamos algumas falas e brincadeiras, mas continuo a pensar no crepúsculo dos deuses. A fixação que o título da performance exerce em minha cabeça, faz-me lembrar do famoso livro de Nietzsche: Crepúsculo dos Ídolos. Será que o martelo vai bater mais uma vez? O fato de pensar no fazer artístico a partir de um título é, de certo modo, um reducionismo. Mas, naquele momento, acabo considerando como uma espécie de “reconhecimento de campo”. Não sabendo distinguir, nesse momento, se estou próximo do método dos antropólogos ou se é um automatismo da operação mental que se efetua quando nos aproximamos de algo ainda que não conhecemos.
Mas não só de Filosofia vive o jovem crítico, o filme da Marvel também se faz presente. Thor: Ragnarok (2017) aparece fugidiamente pelo meu pensamento. Neste momento, rememoro uma frase de Nelson Rodrigues: “O homem, nada mais é, do que a soma de suas fixações”. O anjo pornográfico, mais uma vez, tinha razão. Não é assim que fixam-se as referências? Esse conjunto de categorias abstratas que nos facilitam o pensar. Aristóteles que o diga: não é nada fácil a sua doutrina das categorias. Mas entre pensamentos e fixações, esses dois fenômenos tão idênticos e diferentes entre si, começo a observar o ambiente da performance.
Vejo um púlpito que é erguido por uma grande quantidade de livros. Tais livros, ao observar mais atentamente, são títulos da alta literatura. Ao deter ainda mais minha visão, no entorno do clima de performance que vai se formando, percebo a performer, Pollyana Monteiro, do d’Improvizzo Gang, em seus exercícios de pré-palco. É um fato que muito me chama a atenção, a entrada em cena. Ela remete sempre a um outro. Não o Outro Lacaniano, essa figura determinante do tempo subjetivo e das representações narcísicas, mas sim o outro do artístico. Esse ser da alteridade e do dionisíaco. O outro que se apresenta é o de um outro tempo, outro momento, mas ainda assim é um outro. Nesse sentido, o pré-palco é sempre um diálogo com uma certa alteridade, muito embora que esse outro representado possa estar dentro de nós. Ah, Freud explica, e muito. Mas não só ele…
Quando o ruído das pessoas subindo ao espaço da performance começa a se fazer, vamos lutando com o confronto das realidades: uma ordinária, que se coloca como objetiva; e a outra, do fazer artístico, do saber estético. É o elemento de anterioridade da Aura Benjaminiana ou da sensação do sublime, de Todorov. Aos poucos, com as pessoas devidamente assentadas, o clima está todo voltado para a performance, e é aí que o espetáculo, em seu acontecimento, começa.
Ouve-se uma música colossal, que irrompe a espacialidade pela sua potência sonora. A sensação de grandiosidade que se impõe pelo espaço faz-se perceber. Tudo nela é magnânimo, épico. Constrói-se um primeiro discurso que vem com a escolha da Ópera Götterdämmerung, de Richard Wagner, para abrir o espetáculo. Não à toa, claro. Poderia soar como nadar no confortável, a escolha de Wagner, em um espetáculo que tem com título um acontecimento da mitologia nórdica, o Ragnarok. Mas, ao mesmo tempo que, a construção desse primeiro movimento estético poderia soar como clichê, ele é contraposto com a entrada da performer.
Entra em cena, de forma altiva e imperiosa, como se seguindo a música, uma personagem com trejeitos pastorais, ao melhor estilo evangélico. Os seus modos são colocados, de forma que remetem aos pastores das igrejas evangélicas, e muitos dos elementos ali colocados sugerem tal leitura. O figurino da performer começa a nos mostrar símbolos do neopentecostalismo. A roupa, o púlpito, a atenção centralizada em torno de si. O tom sóbrio de suas roupas lembram o modelo puritano da sobriedade, que inspira esse segmento. Quem vê a performer, pode pensar em um Silas Malafaia ou um R.R. Soares. A aparição dela, junto a sua expressão corporal, vai se aproximando à performance dos cultos neopentecostais.

Pollyana Monteiro em “RAGNAROK” | Foto – Divulgação | #4ParedeParaTodos #PraTodoMundoVer – Mulher branca vestida de calça cinza, top preto e blazer preto. A imagem está focada, mostrando metade do seu corpo, que está com os braços para frente, se movimentando. Com os cabelos soltos, cobrindo parcialmente seu rosto, expressa feições de dor.
Existe uma música orquestral, um ritual e os seus maneirismo vão no encontro da figura pastoral. Ao mesmo tempo, quem leu o texto de Jorge Luis Borges, sinopse da performance, pensa que existe um tom de aproximação com a figura divina. Mas, em ambas possibilidades interpretativas, as figuras se colocam em uma aura de divindade. Existe um púlpito, o ar triunfal proposto pela música com contornos clássicos e épicos, a predileção pelo microfone. Nas ações da performer, notamos uma vontade de comunicar. Entretanto, a incapacidade dessa realização causa estranhamento quando vemos que seu ato de fala é interditado inesperadamente.
O esforço para falar, a movimentação dos lábios que se tenta pronunciar um boa noite, faz com que tenhamos a sensação de que a comunicação está suspensa, pelo simples fato das palavras não saírem de sua boca. O esforço para a comunicação é feroz, tenta-se de várias formas fazer com que as palavras saíam, mas elas parecem não chegar. É então que a referência a Borges ganha um contorno representativo. A imagem dos deuses que, após anos de desterro, voltam e tentam se comunicar é apresentada por Pollyana em seu corpo. O esforço para a comunicação, que os deuses não conseguem no texto, aparece nos movimentos apresentados pela performer. Comunica à medida que se vê impossibilitada de expressar pelas palavras, faz o corpo falar justamente por não ser possível a transmissão oral. Requisita então, nesse momento, o corpo como ato de fala, como linguagem.
É um dado importante do texto de Borges, que não aparece de formas tão evidentes no espetáculo, a clareza que se trata de um sonho. No mundo onírico, onde o fantástico tem suas amarras afrouxadas pelos desígnios do Id, a comunicação não acontece como no mundo dos olhos abertos: regidos pelas convenções linguísticas e sociais. Lá na literatura matamos os deuses com um revólver. No espetáculo, ele sofre, arrasta-se, urra, contorce-se, mas não consegue comunicar através das palavras.
A impossibilidade da saída das palavras estabelece uma sensação de estranhamento em quem assiste. Não sabemos em que momento as palavras aparecerão, mas o fato de não saírem, nos faz atentar para outros elementos da linguagem que não as palavras. Existe uma angústia que remete à nossa tradição oral. Estranhamos a ausência da oralidade, o que não é expresso em palavras e, por isso, o corpo e as linguagens fora dela vão se fazendo notar. É nesse momento que vemos a derrubada do púlpito e o estabelecimento de uma relação dúbia com os livros que o formava. Os livros são jogados, atacados. Mas logo em seguida são colocados nas costas, como que em sinal de reverência. A referência aos neopentecostais, que já aparecia nos trejeitos pastorais da entrada da performer, agora ganha contornos mais claros com o aparecimento desse elemento dúbio. Lembra-nos que, ao mesmo tempo que são obcecados em um certo tipo de hermenêutica, também são criadores de Índex e de fogueiras de livros. É o complexo de Savonarola.
Existe um discurso também no que diz respeito ao corpo. O medo do corpo, tão presente no regime puritano do controle do mesmo, que foi apropriado pelos evangélicos até hoje, é apontado nos trejeitos da performer. Mas ao mesmo tempo tempo que aponta, ela reivindica. Reivindica para o corpóreo o espaço da fala. A impossibilidade das palavras representarem faz com o que o corporal represente e tome para para si o espaço discursivo.
Ragnarok, desse modo, apresenta-nos um espetáculo desconfortável, mas ainda assim rico. Desconfortável pelo fato de esperarmos as palavras, embebecidos que somos pela comunicação oral. Rico porque insere o corpo na economia discursiva, dando-lhe poder de comunicação. Não fala de uma morte dos deuses, mas fala da impossibilidade da comunicação por quem diz o representar. O desconforto causado pela incapacidade de falar, ao mesmo tempo que desloca o espectador, faz atinar para outros elementos que não os atos de fala. Os maneirismos, os contorcionismos e todo um conjunto de linguagens que não são transmitidos através da palavra, aparecem de forma manifesta justamente pelo fato de que o diálogo oral é interrompido. Mas ao mesmo tempo que causa desconforto, leva a pensar. Pensar em quê? Em tantos cenários. A incapacidade de diálogo no Brasil 2019, a ascensão de grupos censuradores nos espaços das artes e da cultura, a impossibilidade de transmissão da experiência do mundo moderno. São tantas questões, como diria Brecht. Mas a mensagem do Ragnarok ainda está lá: há um crepúsculo, um desterro. E ao que tudo indica, um desterro da palavra. Afinal de contas, a palavra é o divino. Não lembram do texto bíblico? “No princípio, era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus”.
Este texto faz parte da cobertura crítica do Festival Janeiro sem Censura, ocorrido nos dias 10 a 12 de janeiro de 2020.