Crítica – Rita | Uma ópera em nossa Veneza brasileira

Imagem – Gárgula Produções/Divulgação
Por Bruno Siqueira
Doutor em Letras (UFPE) e Professor da Licenciatura em Teatro (UFPE)
A Academia de Ópera e Repertório da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a Sinfonieta UFPE e o Laboratório de Artes Cênicas (LAC), também da UFPE, estão num período de fértil produção. Para se ter uma ideia, do ano passado para cá, foram encenadas cinco óperas: O Contrato de casamento, de Gioacchino Rossini; Julia, a tecelã, de Wendell Kettle; Bastien e Bastienne, de W. A. Mozart; Rita, de Gaetano Donizetti; e Carmem, de Georges Bizet (trechos – a encenação completa será apresentada em agosto deste ano).
Isso se deve graças aos esforços hercúleos de Wendell Kettle, maestro e professor do curso de Música da UFPE, responsável pela direção musical e pela regência de todos esses trabalhos; de Rose Mary Martins, professora do curso de Teatro e coordenadora do LAC, da UFPE; e de toda uma equipe formada por músicos, cantores, estudantes e professores da UFPE. Em tempos em que a cultura artística neste país está sendo mais vilipendiada do que nunca, presenciar e poder apreciar o trabalho desses artistas e produtores locais é uma oportunidade extremamente gratificante.
Fui assistir em maio deste ano à ópera Rita, apresentada no teatro de Santa Isabel. Confesso que fiquei bastante emocionado ao ver um trabalho realmente coletivo. Vi ex-alunos no palco, desempenhando com paixão e afinação o canto lírico. Vi na orquestra do teatro também ex-alunos, em comunhão com professores do curso de Música (Wendell Kettle, na regência, e Artur Ortenblad, no oboé). Vi o trabalho de divulgação e de imagens de um grupo de estudantes de Publicidade da UFPE, engajados no projeto. Do ponto de vista da universidade, toda a produção implicou num trabalho interdisciplinar, envolvendo os cursos de Música, de Teatro e de Publicidade da UFPE. Foi um congraçamento pela via da estética, resultado de um trabalho árduo de profissionais e estudantes empenhados em criar arte, em fazer valorizar e reviver a arte da ópera no cenário cultural recifense.
A história da ópera moderna demonstrou uma paulatina erudição e aburguesamento do gênero, o que findou por afastar mais as camadas populares desse tipo de arte. Paralelamente, a preocupação em atrair o povo para as casas de ópera fez os compositores derivarem da ópera erudita (culta) formas mais populares, como a ópera bufa e a opereta. No caso do Brasil, a primeira casa de ópera foi fundada ainda no século XVIII, recebendo companhias europeias das mais variadas procedências. Também foi nesse século que começaram a surgir autores e compositores nativos, a exemplo de Luis Alvares Pinto, de Antônio José da Silva (o Judeu), dentre outros. No século XIX, avultam os nomes de Carlos Gomes e Alberto Nepumuceno, mas o veio popular das operetas e comédias musicais de Abdon Milanês, Assis Pacheco e Chiquinha Gonzaga, por exemplo, foi conquistando novos públicos. No século XX, ao lado da figura mais proeminente do modernismo, Villa-Lobos, tivemos as produções operísticas de Lorenzo Fernandez, Francisco Mignone, Camargo Guarnieri, José Siqueira, Lindembergue Cardoso.
Em Recife, nas últimas décadas, a encenação de óperas tem sido realizada, sobretudo, pelo curso de Música da UFPE. Nesse contexto, inserem-se as produções da Academia de Ópera e Repertório da Universidade Federal de Pernambuco e da Sinfonieta UFPE. Saliente-se que frequentemente os professores de Teatro da mesma universidade são convidados para colaborarem na concepção cênica dos espetáculos.
Rita é uma ópera cômica do italiano Gaetano Donizetti, com libreto de Gustave Vaëz, composta por oito números musicais ligados por diálogos falados e cantados. A história se passa na pousada de Rita, uma mulher que está no seu segundo casamento, contraído após sua suposta viuvez. Enquanto no primeiro casamento ela apanhava do marido, no segundo era ela quem batia no esposo. A vida do casal é abalada com a chegada de Gasparo, o primeiro marido que todos acreditavam ter morrido num naufrágio. Pensando ter perdido sua esposa num incêndio que consumira toda a cidade, ele volta ao local para obter a certidão de óbito da cônjuge, a fim de voltar ao Canadá e casar-se novamente. Quando os dois se encontram em cena, a trama passa a tomar um rumo repleto de quiproquós e de situações cômicas.
Como dito, a concepção geral, direção musical e regência são do prof. Wendell Kettle. A direção cênica ficou sob os cuidados da profa. Rose Mary Martins. A cenografia e o figurino foram concebidos pelo LAC e pelo Grupo da Quinta. A partir do conceito assentado no diálogo entre arte e ciência, os elementos visuais do espetáculo se inspiram na obra do artista plástico abstracionista Pieter Cornelis Mondrian. Confesso que não consegui perceber o sentido desse conceito para a encenação de uma ópera composta em 1841, porém o resultado foi de uma cena colorida, com momentos de poesia e de beleza. Que fique registrado que o trabalho desses artistas é bastante artesanal, haja vista os parcos recursos que a produção detinha, mas fica evidente o extremo cuidado e o carinho com que foi realizado.
No elenco, Gleyce Melo (Rita), Lucas Melo (Beppe) e Anderson Rodrigues (Gasparo) apresentam um bom desempenho vocal e cênico, mostrando-se inteiramente à vontade no palco. É um grande desafio para cantores de obras dramático-musicais alcançarem uma atuação cênica natural e convincente; e esses três artistas conseguem fazê-lo bem. Vale destaque a participação da atriz Paixão Vi, que faz o papel da criada. A personagem é secundária e não tem fala, mas a atriz consegue extrair dela um efeito cômico surpreendente, arrancando da plateia altas gargalhadas.
A meu ver, o objetivo do trabalho foi alcançado: apostar na formação de público e numa maior popularização da ópera, proporcionando fruição artística e apreciação musical. O Teatro de Santa Isabel estava ocupado por um público numeroso e aberto à experiência estética. Deixo apenas uma provocação para esses artistas, pensando em trabalhos futuros. Muito brechtiano que sou, penso que o conteúdo e a forma da ópera podem atualizar-se, sem abdicar do caráter de iguaria que o gênero propicia. Como disse Brecht em nota sobre a ópera Ascenção e queda da cidade de Mahagonny, o afluxo de novos extratos de clientela portadores de novos apetites parece requerer uma forma nova do gênero ópera. Que forma será essa? Brecht encontrou a sua, no momento histórico em que viveu. Caberia a nós empreendermos uma pesquisa para tentarmos entender que “novos apetites” são esses, a fim de encontrarmos caminhos possíveis para essa atualização aludida.