Crítica – Se eu fosse Iracema | Urgências, violações e (auto)representações: quem (ainda) está a falar?

Imagem – Imatra
Por Lorenna Rocha
Graduanda na Licenciatura em História (UFPE) e crítica teatral
“A visão que você tem de terra, é muito diferente da visão que a gente tem. Não dá para você olhar para nós, povos indígenas, e pensar que a gente tem o mesmo entendimento de território como o seu. Que é de exploração, destruição, pensando em lucro, pensando em dinheiro. Não é esse o entendimento nosso. Para nós, o território é sagrado. Precisamos dele para nós existir. E vocês olham para a terra indígena e chamam de terra improdutiva. Nós chamamos isso de vida. (…) Nós defendemos a vida, nós defendemos a nossa identidade. Nós vamos derramar até a última gota de sangue para defender nossos territórios, para garantir a existência de nossos povos. (…) A gente quer ter o território para a gente continuar com o nosso modo de vida. (…) Num é porque você tá na cidade, num apartamento, numa mansão, que a gente quer isso para a gente também não.”
Sonia Guajajara (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), 2019
O espetáculo Se eu fosse Iracema, do 1Comum Coletivo (RJ), se apresentou em Recife, no dia 2 de setembro, dentro da programação do Palco Giratório 2019. No cenário, o tronco de uma árvore, que fora cortada em sua base. Havia também algumas estruturas da iluminação cênica aparentes nas extremidades do palco. Após toda a plateia se acomodar em seus assentos, a escuridão tomou conta do Teatro Marco Camarotti. Minutos depois, as luzes localizadas nas laterais do espaço cênico se revelaram: lentamente, como uma pintura a ser feita no rosto da atriz Adassa Martins, o recorte horizontal preciso, formado pela luz, revelava apenas seus olhos, que comunicavam um tom de investigação. O desenho formado na face dela nos remeteu a uma presença (ou representação?) indígena em cena.
Com o olhar inquieto e urgente, uma história começa a ser contada pela personagem por meio de uma língua desconhecida[1]. A incompreensão dos fonemas, palavras e frases nos oferece curiosidade. Que idioma é esse? O incógnito nos aguça, formulando mais perguntas: porque não conhecemos isso? A medida em que a atriz se expressa, o ruído, por falta de conhecimento da língua em questão, se estabelece entre palco e plateia. Ainda na escuridão, o trecho de algum episódio ocorrido no Congresso Nacional Brasileiro e o som da motosserra irrompem o espaço. As luzes de cor âmbar se tornavam mais presentes na caixa cênica, desvelando o corpo da atriz que vestia uma saia longa marrom de borracha. Com os cabelos presos, exibia um colar que remete a alguma ferramenta de metal, usava botas pretas e se encontrava com os seios desnudos. Um corpo branco se evidenciava.
A construção das narrativas do espetáculo se dá de forma alternada, em diversos núcleos da dramaturgia, onde Adassa interpreta uma anciã indígena; uma jovem que narra o assassinato de seu pai, uma liderança indígena; um espectro descompassado que declama a Constituição Brasileira; uma coach pró-agronegócio, que ironicamente se chama Kátia; uma narradora com um tônus que se mescla entre tensão e resistência que, sentada em cima do que resta da árvore, enuncia a crítica ao “ideal do homem branco”.
A desconformidade na dramaturgia provoca encontros entre discursos que, na divergência, dão tom de ironia à peça, expondo as tensões político-ideológicas entre as personagens. O texto ganha complexidade, não apenas no corpo da atriz, mas com a construção da luz do espetáculo. A cada cena, as luzes anunciam a partitura que se iniciará aos olhos da plateia. Isso não denota obviedade na composição do monólogo: através desses elementos visuais, os personagens ganham fragmentos de seu estado de presença.
Uma luz vermelha, que nos lembra sangue, toma conta de Adassa: a performance ébria declama artigos da Constituição Brasileira. O uso de um corpo descompassado, meio fora de si, de fala desarticulada, produz a imagem da Constituição como algo em situação de negligência. Apesar do documento oficial, desde 1988, apresentar leis que visam assegurar a demarcação de terras indígenas, assim como o direito à autodeterminação, à reprodução, à autonominação, ao exercício de seus costumes, suas espiritualidades e suas culturas, a cena denuncia o quão caricata pode vir a ser a frase “todos iguais perante a lei”. Todos quem?

Adassa Martins em Se eu fosse Iracema | Foto – Imatra | #4ParedeParaTodos #PraTodoMundoVer – Imagem com fundo preto. Uma mulher branca no centro da foto, com seu rosto parcialmente a mostra pela iluminação que está acima dela. Entre suas pernas, uma luz vermelha ilumina o corpo da atriz até a cintura.
Violações demarcam os olhares externos à presença indígena, que segue resistindo dentro dessa pátria inventada que é o Brasil. Iracema? País nomeado pela presença de outrem. Desde a invasão portuguesa, o projeto de colonização se estruturou desprezando os corpos aqui presentes, inferiorizando experiências que eram distintas ao que entendiam como “normal”. É porque narciso acha feio o que não é espelho… Hoje, são 305 povos indígenas no território brasileiro, com mais de 250 línguas diferentes (e diversos modos de viver, existir), mas, no final das contas, como a atriz nos lembra em cena: o homem branco vale mais do que qualquer homem.
Desde maio de 2019, a mídia e as pesquisas científicas apontam a violação sistemática aos códigos ambientais brasileiros, que acarretam na exploração desenfreada da Amazônia Legal. Se antes os índices de desmatamento se mantinham menos alarmantes – e o céu nem sempre deixava visível a poluição do ar -, a ausência da efetivação das leis federais, assim como dos órgãos de preservação ambiental, fazem com que esses números cresçam exponencialmente. Além de desconsiderar uma luta histórica pela preservação da floresta amazônica, que envolve tratados internacionais, movimentos sociais e organizações não-governamentais, mais uma vez as comunidades indígenas ficam expostas a invasões e violências devido à supervalorização da exploração da terra para atividades como a mineração e a agropecuária. O modelo de consumo desenfreado se sobressai em detrimento da natureza. A lógica do lucro, e do homem branco, vale mais do que uma aldeia inteira, uma etnia inteira, uma história toda.
No espetáculo, a personagem da “coach pró-capitalista”, que afirma com convicção que é preciso que todos (quem?) fiquem ricos e que a exploração não existe, tenciona os modos de consumo da sociedade ocidental, com sua figura caricatural. Quando eu falo todos, é TODOS MESMO, tá?: a frase dita por ela nos leva a um discurso homogeneizante que, quando considera apenas um modo de estar no mundo, implica em não dar conta de outras cosmovisões e experiências plurais. O monólogo, além de questionar o modus operandi – afinal, tanto lucro para que, se no final, não teremos ar em comum para respirar? –, a peça constrói uma crítica à colonialidade que, sob o discurso da universalidade, vem há séculos desmontando outras possibilidades de vida e de coexistências.
O que o projeto colonial não parecia contar: com a presença de corpos não-hegemônicos reivindicando seus espaços e o direito de ser.

Imagem do Acampamento Terra Livre 2019 | Foto – Instituto Vladimir Herzog | #4ParedeParaTodos #PraTodoMundoVer – O registro foi realizado em uma via de trânsito, de dia. Em primeiro plano, uma mulher indígena, vestida com um top e uma saia em tons amadeirados e portando um adereço de cabeça feito de penas brancas e azuis. A mulher está ajoelhada, com os braços abertos e olhando para frente, e seu rosto está pintado com tintas preta e vermelha. Atrás dela, está uma fileira de policiais formando uma barreira.
Mas então, novas questões surgem: como uma peça teatral pode falar sobre colonialidade, crítica à universalidade, quando as marcas da racialidade da atriz (pele branca, traços afilados) nos remetem aos privilégios da branquitude, que simbolizam as relações de poder que se manifestam de forma assimétrica e opressora sob corpos não brancos?[2] O que fazer quando o movimento de apontar as violências sobre outros corpos dificulta a nossa autocrítica – entendendo que, inconscientemente, também podemos produzir violências sobre estes? O que implica perpetuar um regime de fala que continua a permitir aos mesmos corpos hegemônicos a produzirem discursos? A quem está disponível o lugar de autoria, da voz ativa, do discurso direto?
Quando pensamos em lugar de fala e representatividade, parece que qualquer discussão nos leva a diagnosticar quem está apto ou não a falar sobre os(as) sujeitos(as), subjetividades, saberes, culturas e vivências de outros grupos sociais. Sendo assim, é preciso dizer que esse texto está menos orientado por um desejo de legitimar ou deslegitimar o discurso impresso em Se eu fosse Iracema, mas para apontar como seus modos de fazer – nesse caso, a pesquisa – e as implicações de um corpo branco em cena, do meu ponto de vista, acabam por deixar nas entrelinhas marcas de uma universalidade que o próprio texto parecia questionar.
Durante o debate com o público que aconteceu após a apresentação, com a atriz e o diretor, Fernando Nicolau, o grupo informou que a Carta dos Indígenas Guarani-Kaiowá[3], escrita em 2012, foi o ponto de partida para a construção do espetáculo. Quando perguntados sobre como fora realizada a pesquisa e o processo do monólogo, Fernando afirmou que o grupo se debruçou em algumas obras e que dialogaram com pessoas que tinham relação direta ou indiretamente com as populações indígenas, principalmente as situadas no Rio de Janeiro. A declaração visivelmente incomodou parte do público, levando a uma pessoa da plateia apontar sobre a importância da vivência direta com os povos originários, não como forma de capturar modos e imagens para se transpor no palco, mas, me parece, como possibilidade de produzir memórias, afetividades – e discursos – a partir do que experienciassem.
A discussão no Marco Camarotti me fez recordar de uma mesa de debate intitulada Escolhas e Fazer Artístico: Subjetividades (assista AQUI), onde o escritor Kaká Werá Jecupé comenta sobre a produção artística de pessoas não-indígenas a partir das questões indígenas, o que implica, muitas vezes, na construção de memórias, representações e discursos por terceiros que não vivenciaram o cotidiano desses grupos:
“Sempre tinha um intercessor, alguém que falava por nossos parentes, por nós. Pessoas de boa intenção. Que eram nossos aliados. Mas de qualquer maneira, não é a mesma coisa. Não é a mesma coisa quando você mesmo expressa o que você quer falar. (…) Do século XVI pra cá, sempre tem alguém falando por nós. Mesmo não estando em nossa terra.”
(…)
“Nós não queríamos pertencer a esse mundo, embora fazendo parte dele. Essa era a grande questão. Nosso questionamento ainda é esse. Uma visão de mundo que se fundamenta na segregação, na separatividade, numa relação com o outro baseado na ganância, na manipulação. Queríamos divulgar os nossos valores: o princípio do pertencimento, o princípio da interdependência, o princípio não é apenas o ente humano que é uma entidade vida, como os animais, os vegetais, o sistema de vida chamado Mãe-Terra. Compartilhar essas visões de mundo, pois sentíamos que existia uma geração da sociedade não-indígena que também questionavam suas próprias estruturas de vida destrutiva. Também queríamos de alguma maneira, romper com o preconceito que caminha há mais 500 anos. Que é em relação a todas nossas culturas ancestrais. Que nossas culturas não desenvolveram um saber, uma tecnologia social, não se desenvolveram enquanto pessoa, enquanto comunidades, enquanto civilizações.”
Desde 1980, as populações indígenas buscam – através da literatura, da música e do cinema – transmitir seus conhecimentos e construir imagens sobre as identidades indígenas. As linguagens, como afirma Kaká Werá, são utilizadas como caminhos para a autorrepresentação desses grupos. Até quando precisaremos de “intercessores” para tomar conhecimento de quem essas pessoas são, como elas se sentem, quais são seus valores, quando elas mesmas ainda buscam espaço para falar sobre todas essas questões abertamente, seja por meio da expressividade, da criatividade ou em lugares de atuação político-partidária?

Imagem de Kaká Werá | Foto – Autor Desconhecido | #4ParedeParaTodos #PraTodoMundoVer – Imagem colorida. O foco está no rosto do homem indígena que está sorrindo. Ele possui cabelos grisalhos e está usando uma camisa branca e um colar preto com riscos brancos.
A manutenção do regime de autorização de fala, por corpos hegemônicos, continua a fazer a crer que estes estão aptos a qualquer tipo de discussão, desde que queiram discutir sobre. Dessa forma, a declaração da não convivência com os povos originários, para a construção de Se eu fosse Iracema reitera esse quadro, ainda que não comprometa as discussões (urgentes) sobre a demarcação de terras e o processo de superexploração advinda do capitalismo global. A utilização, por exemplo, das cosmovisões indígenas em cena aponta para novas formas de se ver o mundo. Mas, o que implica a transmissão desses saberes pela branquitude? Porque não, talvez, utilizar vozes diretas de pessoas pertencentes às sociedades indígenas, como Ailton Krenak, Sônia Guajajara, Eliane Potiguara, Mário Juruna, dentro do espetáculo, como forma de romper com a tradição da própria universalidade que se propõem a criticar dentro do monólogo? Ou, como esse corpo branco pode ser ativado em cena para expor suas próprias limitações no que está em discussão?
A contraponto, assim como o escritor Davi Kopenawa, algumas pessoas acreditam que obras realizadas por não-indígenas, que se propõem a discutir questões dos povos originários, visibilizam pautas desses grupos perante a sociedade, adentrando em espaços que tais corpos (ainda) não ocupam. Entretanto, é preciso ter em mente que se “não há espaço”, é porque grupos minoritários politicamente não detém das mesmas oportunidades – leia-se recursos financeiros, visibilidade, prestígio, editais – para apresentarem suas próprias narrativas. Diante disso, o que individual e coletivamente podemos fazer para abrir mão dos discursos hegemônicos, visando desenvolver estratégias para que outras vozes tomem o lugar da cena?
Referências
MOMBAÇA, Jota. Notas estratégicas do uso político do conceito lugar de fala. 2017.
Povos indígenas no Brasil. Autoria indígena.
YOUTUBE. Agência pública. “Hoje o índio não tá só no mato”, diz Sônia Guajajara. 2018.
YOUTUBE. Itaú Cultural. Mekukradjá. Escolhas e Fazer Artístico: Subjetividades. 2017.
YOUTUBE. TV 247. Sônia Guajajara desmonta preconceito indígena de senadora do PSL. 2019.
Notas de Rodapé
[1] Durante o debate pós-espetáculo, a atriz Adassa Martins afirmou que a língua indígena utilizada nessa cena era o Guarani.
[2] Ver mais em Notas estratégicas sobre o uso político de lugar de fala, de Jota Mombaça.
[3] O texto em questão foi escrito após uma ordem de despejo do povoado Pyelito Kue, por ordem da Justiça Federal, onde se registrou a insatisfação das populações com a atitude do órgão, pedindo ao Governo “para não decretar a ordem de despejo/expulsão, mas para decretar nossa morte coletiva e para enterrar nós todos aqui (…), para decretar a nossa dizimação/extinção total, além de enviar vários tratores para cavar um grande buraco para jogar e enterrar os nossos corpos”. (acesse AQUI)