Crítica – Sic Transit Gloria Mundi | Construção performativa de um monumento utópico

Imagem – Youtube
Por Roberta Ramos
Profª Drª da Licenciatura em Dança (UFPE) e do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais (UFPE/UFPB)
Em maio (de 17 a 26), teve lugar na cidade de Utrecht (Holanda), o Festival Spring, que engloba dança, teatro, performance, com uma vasta programação, que acontece em vários teatros pela cidade, e também em diversos outros espaços alternativos e públicos.
Os dez dias de festival desse ano ofereceram um panorama bastante rico de artistas jovens e experientes, a maior parte oriunda de contextos nada hegemônicos. Muitos de seus trabalhos portavam modos intrigantes de trazer a público questões relacionadas, por exemplo, ao que esperamos do futuro, qual nosso papel frente a um mundo colapsado em muitos aspectos, como podemos nos imaginar vivendo modos de existência tais como os impostos a refugiados ou, ainda, a sujeitos que não se situam em padrões de normatividade.
É justo dizer, então, que a maior parte dos trabalhos trouxe um caráter de engajamento político em diferentes níveis, e o conjunto da programação nos imergiu em dez dias inspiradores, mas, ao mesmo tempo, enormemente provocativos, para pensarmos nossas ações, relações e nossa capacidade de desconstruir o que está dado e que não é promissor.
Em meio a esse conjunto em geral bastante instigante, não menos que um acontecimento memorável tirou-me o fôlego a cada vez em que me coloquei diante dele. Refiro-me a Sic Transit Gloria Mundi, que, durante os dez dias do Spring, esteve aberto para visitação das 14h às 22h, na Neude, praça histórica importante da cidade de Utrecht.
Antes de referir-me aos nexos e meios artísticos criados por Sic Transit Gloria Mundi, preciso contar sobre a minha decepção, ao mesmo tempo gozo estético, ao dar-me conta, antes da segunda das cinco visitas que faria, de que eu deixei-me enganar pelo jogo do próprio acontecimento, e que, portanto, como era o pretendido, eu não estava entendendo em que, de fato, ele consistia.
A sinopse de Sic Transit Gloria Mundi, no caderno de programação do festival, anunciava que, em face ao colapso da hegemonia e do poder imperialista do Ocidente e, “[E]m colaboração com o Comissão do Monumento Nacional da Hegemonia Ocidental e a cidade de Utrecht”, um memorial estava para ser erigido na Praça Neude, em 2018, e que o Spring marcaria o início de sua construção. Além do referido texto, cartazes pela cidade, outdoors e placas luminosas em paradas de ônibus aumentam a expectativa em relação à construção do monumento.
Ao chegar para a visita inicial, no primeiro dia do festival, uma estrutura de tapume cercava toda a praça, e, dentro dessa estrutura, visualizavam-se, já de fora, aparatos de um construção, tais como guindastes, tubos, etc. Sobre várias partes do tapume, posters publicitários contendo o nome e foto do futuro monumento, que consistia em um homem de tamanho espantoso caído de bruços no chão (morto, cansado, afogado, derrotado?) e, diante dele, a sua placa de identificação (ou uma lápide?): “Sic Transit Gloria Mundi”.
Acoplada à estrutura de tapume que cercava tal construção, podíamos entrar em uma sala de visita em um contêiner, a partir da qual era possível visualizar o que parecia ser o início da obra, através de três janelas para a construção em curso. Era possível avistarmos, das janelas, os trabalhadores em ação, muita areia, mais equipamentos e, enfim, um índice do monumento que começava a ser erigido: uma mão enorme, sendo deslocada de canto a outro.
O que se via fora da sala era complementado pelo que era possível visualizar dentro: em uma das paredes, um video mapping, em que poderíamos vislumbrar, em três dimensões, o projeto do monumento e suas dimensões gigantescas em relação a pessoas e coisas; no centro da sala, uma redoma de vidro portando uma maquete do mesmo monumento; e em duas outras outras paredes, uma justaposição de fotos de acontecimentos verídicos e que chamavam atenção para os variados sinais de colapso no mundo: ataque na Torre Eiffel, cenas de especulações da bolsa de valores, polícia de choque em frente a banco na Grécia, filas de desemprego na Espanha e em Xangai, brinde entre Putin e Mark Rutte (primeiro ministro da Holanda), ao lado de foto de bandeira LGBTQ sendo queimada por um grupo de pessoas. E, por fim, contribuindo para construir o frame a partir do qual víamos a projeção desse futuro monumento de assunção da derrocada do Ocidente, escutávamos o Nocturne in Fá Menor Op. 55, no. 1, de Chopin (escute AQUI).
No primeiro dia, não percebi que a sala de visita também tinha um segundo andar, com mais elementos a serem descobertos e outras perspectivas do mesmo cenário em construção. No entanto, tudo que descrevi já era o suficiente para deixar a mim e à minha irmã, que me acompanhava, estupefatas, ainda que no curto tempo que pudemos permanecer nessa primeira visita. Descomunal seria o monumento, e assombrosa era a assunção que nele estava implícita: o homem ocidental erigindo um tributo ao reconhecimento de sua responsabilidade pelo mundo em colapso.
Para mim, como brasileira, considerando o momento que estamos passando (sobretudo desde 2016), a possibilidade de um monumento com este caráter fez total sentido e representou um sopro de possível sabedoria humana projetando-se para o futuro. A pergunta que até então me intrigava era: como era possível, em uma cidade num país de Primeiro Mundo, extraordinário gesto, que colocaria em xeque justamente a hegemonia do Ocidente? É válido realçar que os textos que estão fixados na parede de entrada do contêiner, para apresentar a obra, estão em árabe, chinês, russo, inglês e holandês, nessa ordem.
Decidida saí, já no primeiro dia, a escrever, mas ainda sem saber as infinitas camadas que ainda estariam por vir do que acabara de testemunhar. No dia seguinte, pus-me a buscar mais informações. E, ao passo que descobria que a Comissão do Monumento Nacional da Hegemonia Ocidental provavelmente teria sido uma invenção do texto da sinopse, e encontrava uma resenha crítica, não demorei a descobrir, então, que, junto com a Comissão, a construção do monumento era igualmente inventiva, bem como o detalhe final da sinopse, que situava o Spring como o marco dessa construção. Acessei, ainda, notícias relativas ao fato de que os empresários do local estavam criticando duramente o acontecimento, pois a estrutura atrapalhava seus negócios. Certamente, não fora aleatória a escolha da Neude, uma praça turística, cheia de outros monumentos, edifícios históricos, um dos maiores e mais poderosos bancos no país, e diversos bares descontraídos com terraços para sentar ao sol.
Portanto, veio à tona, para mim, o fato de que o que erigia esse gesto extraordinário consistia, na realidade, de uma performance-instalação (o rótulo importa bem pouco, sobretudo, nesse caso), assinada pelo Studio Dries Verhoeven, do artista holandês de teatro, Dries Verhoeven, de extraordinária e provocativa produção (confira AQUI).

Dries Verhoeven, autor da performance | Foto – Youtube | #4ParedeParaTodos #PraCegoVer – Imagem colorida de artista holândês Dries Verhoeven, homem com olhos azuis e boné cáqui.
A decepção deu-se, inicialmente, por dar-me conta de que o colossal monumento contra-hegemônico não seria construído jamais. Por todos os motivos, eu queria enormemente acreditar que sua existência era real, ainda que o dispêndio para sua construção pudesse representar mais uma contradição. Por outro lado, quando esse acontecimento erigiu-se como uma performance para mim, pude enxergar, ainda mais deslumbrada, sua potência, engenhosidade e genialidade.
A partir da segunda visita em diante (e a cada uma percebendo novos detalhes), meu olhar foi norteado por uma leitura desse acontecimento-performance-instalação como um monumento utópico, isto é, um lugar que não existe, imaginativo nesse caso de uma assunção: a de que a glória ou hegemonia humana ocidental malogrou. Sic Transit Gloria Mundi é a frase em latim que, até 1963, era utilizada na cerimônia de transmissão papal, e significa: “toda glória do mundo é transitória”.
A partir disso, as janelas para a falsa construção constituíam agora um outro frame: durante os dez dias, os performers (todos negros, possivelmente para gerar mais uma das camadas críticas do trabalho em questão, relacionada à exploração) protagonizavam ações estéreis, circulares e repetitivas, que não levavam à construção de absolutamente nada, ao mesmo tempo em que também contemplavam o nada sendo feito, além de dar-nos a ver a matéria utópica de tal assunção.
Do utópico monumento, a única parte que visualizávamos, desde o primeiro dia e em todos os demais, era a mão, que era deslocada para vários lugares, ciclicamente (o que só se daria a ver ao longo do tempo estendido da performance), na posição invertida (para cima) à que se encontrava na maquete e no videomapping do memorial (para baixo). Essa inversão parece sugerir uma espécie de aceno de apelo a que os homens reconheçam seus limites, repensem seu lugar no mundo, e o próprio mundo, bem como os valores a que erguem monumentos.
Enquanto esse futuro monumento nunca vem, e com ele o extraordinário gesto de assunção de uma sucessão infinita de erros (como a justaposição de fotos mencionadas acima dão a ver), o que se vê são ações inócuas, que estão em curso de construírem nada, a não ser deslocarem e exibirem um enorme aceno de apelo.
Entre outras camadas que só se revelaram aos meus olhos a partir da segunda visita, estão as possibilitadas pela visita ao segundo piso da sala do visitante. Lá, ao contrário da atmosfera melancólica reforçada por um dos noturnos de Chopin, a aparentemente alegre e preguiçosa canção Hollilli (escute aqui) convida-nos a adentrarmos, imediatamente, em um outro tipo de ambiente.
Nesta parte superior da sala de visita, deparamos-nos com várias estantes oferecendo a 10 Euros (cada) miniaturas em série do monumento a “ser construído”, a título de souvenir, e somos recepcionados por um extra simpático “Hello” do ator chinês, que performa o vendedor de tais simulacros, esforçando-se para fazer seu trabalho direito, justificando-se por não falar inglês tão bem.
Aqui, mais uma vez, a polissemia da composição instala-se. Por um lado, a atmosfera cool nos leva a crer que se trata de um sarcástico arranjo para criticar a ideia do souvenir turístico de monumentos ou museus, que achata e simplifica a realidade que ele evoca. Do segundo andar, a existência de janelas igualmente para a mesma “construção” possibilita, assim, vermos, a partir de outra moldura, o acontecimento e suas ações inócuas, de um monumento que nunca será erigido.
Olhamos a partir desse novo frame, que, ironicamente, nos permite esquecer e apagar os colapsos que justificam tal construção, enquanto podemos dispor da nossa própria miniatura do Sic Transit Gloria Mundi, assim como visitantes muito comumente compram e levam consigo os bizarros chaveiros e outros objetos que imitam a orelha de Van Gogh na loja do Museu homônimo de Amsterdam; ou, ainda, pedacinhos do Muro de Berlim.
Tudo muda, entretanto, se pensarmos a realidade de sua cantora, Miriam Makeba (1932-2008), como uma mulher negra sul-africana e que teve uma vida de ativismo, pelos direitos humanos e contra o Apartheid. Seria, então, tal escolha, mais uma vez parte da matéria utópica do monumento: a glória de valores contra-hegemônicos sobre o poder sufocante do Ocidente?
Por fim, após todas as visitas e descobertas, sinto-me agraciada, esteticamente, pela minha própria ignorância prévia acerca do artista e da performance em jogo; pois, com o que descobri no processo de minhas visitas, erigiu-se, para mim, a potência e a genialidade de uma performance-instalação-monumento-acontecimento. Na Neude, como em tantas outras praças do meu país ou de qualquer lugar do mundo, passo a enxergar esse mesmo ‘lugar que não existe’, esse monumento utópico, de reconhecimento (igualmente utópico) do cansaço devido ao poder incessante e intransitivo do mundo, e do fato de que toda glória do mundo é transitória.
Revisão da versão em inglês – Poliana Dantas
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