Crítica – Sine Qua Non | A carne mais barata e doce do mercado

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Imagem – Marina Branco
Por Guilbert Kallyan da Silva Araújo[1]
Estudante do Programa de Pós-Graduação em Filosofia (PPGFil/UFPE) e Psicólogo Clínico (CRP 02/27050)
No fim de semana do dia primeiro de abril, a cultura negra pernambucana pôde celebrar em música alguns dos maiores expoentes artísticos da história brasileira, com shows de Baiana System, Djonga e o que talvez seja o grupo musical mais importante para a organização do ódio do povo preto em melodia, letra e movimento, os Racionais MC’s, um movimento que surge quase como um contraponto à celebração, para nos relembrar do que não só somos feitos, como também do que fizeram de nós ao longo dos séculos. Se o Rap evoca um lugar de celebração em torno das nossas vitórias em conjunto com profundas críticas ao nosso tecido social, com pessoas pulando e gritando cada verso como se fosse um expurgo coletivo, a experiência teatral, em contrapartida, evoca uma afetação que é substancialmente individual quanto às apreensões do sofrimento, convocando nosso corpo para que, ao invés de explodirmos na catarse da música, implodíssemos na vastidão do silêncio que se apresenta como resposta única frente ao absurdo – que na maioria das vezes nada mais é do que a própria realidade.
A peça Sine qua non ou Tem uma usina dentro de mim, escrita pelo ator, dramaturgo e produtor cultural Jorge de Paula, acompanha sete personagens que desdobram suas existências interpeladas pelo açúcar, na exata medida em que esse se apresenta como bálsamo para o sofrimento gerado pelos horrores de vidas interditadas pelas mais diversas ordens de violência. No elenco, além do próprio Jorge, estão Andrea Veruska, Arilson Lopes, Daniel Alcântara, Elis Costa, Iara Campos e Wagner Montenegro, em uma constelação de atuações que não somente envolve como cativa a plateia, esta que, por sua vez, acaba funcionando como um oitavo personagem do enredo.
O texto da peça, como o autor relata em entrevista ao Diário de Pernambuco[2], foi escrito em 2014, durante sua experiência com o grupo Magrÿkory, do Sesc Santa Rita, no Recife, mas que com o passar do tempo acabou por incorporar mudanças a partir de novas experiências e conexões teóricas, como o texto de Luiz Rufino, Pedagogia das Encruzilhadas[3] (2019), os escritos de Paul Preciado sobre a relação entre indústria pornográfica e farmacêutica, entre outros, resultando no que o próprio artista chama de “carrego adulcicarado fármaco pornográfico”. Tais referências podem ser sentidas em roteiro, mas o que talvez seja o mais potente modificador do texto inicial é o escrito do professor Alexandro de Jesus (UFPE) intitulado “Notas sobre a atualidade da ferida colonial”[4] (2022), um verdadeiro expurgo teórico, político e literário, que, dentre a série de questões as quais se dispõe a debater, verte especial olhar para a crítica à consolidação da sociedade capitalista contemporânea como fruto violento do assalto dos corpos negros.
Refletir sobre este espetáculo requer um traçado não menos intenso do que sua execução e potência, sendo necessária uma observação particular do corpo coletivo pelos prismas técnico, afetivo e, por fim, teórico.
Do ponto de vista técnico, o espetáculo faz jus ao significado da palavra; as atuações são não apenas fenomenais como verdadeiramente cativantes, com boa divisão do tempo de palco para cada uma das tramas serem desenvolvidas de forma concomitante, sem quaisquer atravessamentos ou acelerações que atropelem o desenvolvimento da trama. Por mais que, de início, eu tenha recusado a oferta do doce para embarque, conseguia sentir a cada minuto de atuação um dulcificado sabor de entrelaçamento de diálogos que, em sua maioria, iniciavam no açúcar como ponto fundante e terminavam em alegorias sobre como o doce se inseria na vida dos personagens. Mas, por mais que o melado lubrificasse as atuações – em dado momento, literalmente desta forma – um sabor agridoce sempre vinha à boca, especialmente pela inquietação evocada ao notar um saco preto que se movimentava a cada pausa sonora de transição.
A dinâmica entre os personagens, outro ponto forte da atuação, sempre deixava claro aquilo que é comumente eclipsado no cotidiano: o conflito humano das relações conturbadas que tanto evitamos colocar em ato de fala. Entre os espasmos gerados pelo açúcar embebido de conflito, o único momento de lucidez de todos os personagens é justamente na suspensão de si que traz consigo a transição da cena. O chamado sonoro reoxigena os que participam de dentro, enquanto nos coloca numa situação contínua de o que será que virá pela frente.
A peça é um esplendor de usos e referências ao açúcar como metáfora da regulação da nossa existência em torno da medicação, relembrando a reflexão de Preciado sobre a relação entre fármacos e pornografia no ciclo contínuo de excitação e frustração. Cada pequeno componente sempre é pensado para trazer à tona o exagero do consumo de doces da mesma maneira como nos consumimos na sociedade capitalista para ter atendidos os nossos desejos –que tampouco são exatamente nossos, mantendo de tal forma que em determinado momento a figura de Jesus emerge no palco só pra usar um porrete como instrumento, em batidas que evocam o chamado de batalha.
A ferida colonial
O que a peça nos coloca é: de que modo o doce nos desumaniza a ponto de restar apenas uma casca gráfica interditada pelos produtos do colonialismo para que possamos continuar lidando com a realidade da maneira como ela nos chega? A cana de açúcar sendo usada como porrete foi um convite à volta do que se trata a peça, um lembre à violência como estruturante da realidade. Da cana vem o combustível que nos movimenta, que nos vicia, que nos mata e que, ali, também faz coro em batidas ritmadas como uma sinfonia de guerra. A metáfora se abre em sanha e se encerra em sangue: da cana tudo veio e pro sangue tudo vai.
Do ponto de vista afetivo, o discorrer das atuações vai gerando todo tipo de sensação possível, desde uma curiosidade sobre como as tramas vão se entrelaçar em algum momento, passando pelo receio que acompanha o vale do desconhecido em que cada subjetividade mergulha ao se deparar com o desenvolvimento das relações. Consegue, ainda, ter fôlego para nos enraivecer a ponto de desejarmos invadir o espetáculo para puxar um pedaço de cana e enfiar goela abaixo em personagens que se usam do farmacoçúcar como justificativa para suas ações. No fim, a cena nos deixa completamente desnorteados com as reviravoltas e a conclusão, que não só convida a plateia para participar da vingança num expurgo açucarado, como deixa em aberto a ferida – colonial – que será reaberta novamente em cada pedaço dessa terra vermelha: de tanto ser encharcada de sangue, se vestiu de branco e só conseguiu pintar verde e amarelo para não lidar com seus próprios traumas.
O Brasil tem suas raízes muito envolvidas com as grandes usinas e engenhos de produção de açúcar. Em séculos passados, transformavam carne preta em açúcar branco, de modo que suas consequências são tão claras quanto obscuras para a sociedade. Nesse sentido, a peça faz um convite para refletirmos, através dos personagens, em como nossa sociedade subtrai a herança colonial da equação social que nos formata, visando sempre se (a)mostrar da maneira mais “normal” e “sóbria” possível, mas que, no limite, se esconde por detrás de máscaras, imagens, atuações, sacos plásticos e de uma verdadeira overdose diária de farmacoçúcares para que, assim, e somente assim, possam dispor de seus corpos sem o peso exato de suas ações.
Num dos momentos mais icônicos do espetáculo, o açúcar assume mais uma vez a função de bálsamo, só que, dessa vez, de uma maneira não menos potente, mas tão visceral e enérgica, a ponto do texto tomar forma em carne. Quando o padre, ao retirar o cilício, se vê defronte com o sangue que embebia sua perna, depois de vários encontros buscando farmacoçúcares para curarem a dor em sua perna – que ele mesmo estava causando, numa clara referência à materialização da culpa cristã na própria carne –, ele busca curar a ferida através da que talvez fosse a única forma possível que ele conhecesse: com mais açúcar. No encontro do sangue com o doce, buscando reparar os erros adocicando suas consequências, haveria a liberação, como nos aponta Jesus em seu texto: “o gozo numa disposição auto-sacrificial que dispensa qualquer mediação, pois o sacrifício e a sequela encontravam no vício o consolo”.
É tragicômico que seja justamente um Pai que nega a paternidade e se referencia na palavra paterna em latim, que do alto de sua brancura utiliza do produto que é substrato do moinho colonial – o qual se aproveita de carne preta para funcionar – para tentar curar suas feridas. O encontro da carne branca embebida de sangue com o açúcar é um lembrete de como o Brasil nasceu, num genocídio que mata pretos para curar brancos, que estão ocupados demais com suas culpas edípicas para perceberem e realizarem o sofrimento que engendram com suas ações.
Se na noite anterior eu havia entrado em êxtase ao cantar o hino do povo preto e favelado, ao entoar os versos de Negro Drama a plenos pulmões, com Sine qua non a usina que me habita entrou em um estado de suspensão de tal forma que era possível sentir minhas mitocôndrias desejando o açúcar apresentado na exata medida em que eu estava construindo repulsa por este. A cada gole de coca, um pedaço de carne se adocicava e nós, enquanto plateia, éramos capturados. Num dos momentos mais impactantes da encenação, o melaço lubrifica a violência, na figura de um rapaz que colapsa e derrete seu corpo em lágrimas, quase como se toda energia de angústia e aflição que tocava o peito de cada pessoa presente tivesse sido redirecionada para um único corpo, a ponto de a overdose dos açúcares causarem a única reação possível para alguém que sucumbe em quebra, o engolfamento pela brutalidade violenta do machismo que estrutura nossa realidade. Da euforia para o desespero, mas sempre passíveis de afetação.
Inflexões açucaradas
Ainda assim, um incomodo foi me tomando desde o primeiro segundo que vislumbrei os atores e atrizes que faziam a encenação, não por conta de suas vestimentas, tampouco de seu potencial – e posteriormente a comprovação – de sua qualidade de atuação, mas sim, do perfil racial. Um manancial de brancos falando de carne e açúcar enquanto o que mais se fodia era o preto na peça. Me incomodou que justamente o corpo negro foi o violentado em estupro, não que as outras pessoas não fossem passíveis de tal ou sequer merecessem, mas a sensação passada é de que as costas que aguentam o chicote encobrem o mesmo corpo que suporta a overdose de açúcar, ao mesmo passo que é dono do mesmo cu que pode ser besuntado de melaço e ser invadido, rasgado e dilacerado de sua agência de si mesmo, restando apenas o ônus do ânus que não garante quaisquer bônus.
Por conta de minhas inquietações raciais, fiquei com o sabor agridoce na boca, salivando em anseio para que do saco preto viesse um corpo tão empretecido quanto, para que, assim, a metáfora do corpo massificado a ponto de se tornar mercadoria pudesse ser não somente presente como fechar o que talvez fosse um ciclo perfeito do processo de interdição colonial feito metáfora; mas não, o que saiu de dentro do saco foi, sobretudo, uma decepção de referência racial. Por mais que a metáfora de ser justamente Jesus o cachorro caramelo, que encoberto de preto só se fazia presente na hora do chamado para violência, funcionasse para o sentido que estava sendo proposto na trama, senti falta de algo que se conectasse com a ferida colonial com a qual a peça por tanto dialogou.
Uma outra questão que se apresentou como ponto problema diz respeito à facilidade com que o conflito de classe foi resolvido na trama da esposa, como se ela pudesse ser reduzida ao caráter psicofarmacologizante da sua consolidação enquanto um sujeito, de modo que sua dinâmica comportamental pôde ser delimitada pela medicação e que, a partir da superação desta, as contradições de gênero e classe fossem dissolvidas do campo como açúcar em água quente. Em uma transição resolutiva que visava dar luz à personagem como uma contraparte do marido, cuja psicose era deste e não dela, optou-se pela resolução onde o fármaco funcionaria como um apaziguador de classes. A solução do conflito de classe foi resolvida ao apelar para uma equiparação das personagens em seu lugar de gênero, com a diferença sendo apontada a partir do lugar farmacológico, uma vez que toda a construção em torno do lugar distinto das personagens – uma branca burguesa e uma negra empregada – foi resolvido sem tensionar, mais a frente, o conflito de classe iminente, como se a narrativa das personagens se diluísse na água. Não houve consequência das ações farmacoçucologizadas, inviabilizando o justo direito da revolta consoante ao ódio de classe por parte da empregada.
Aqui, o enredo acaba por expor exatamente o que é o ponto forte de seu fenomenal roteiro, de como o farmacoçúcar tem o potencial de apaziguamento e encerramento. A conclusão acaba por pecar onde não devia pecar e acerta onde jamais imaginávamos que iria atirar, ao matar com açúcar – e com nossa ajuda – em reedição de estupro, aquele que por tanto tempo atuou como a figura ponderada.
A peça consegue explorar bem a noção de uma usina instalada no seio de cada corpo, fazendo valer a maneira como os fármacos e a glicose atuam nos ciclos de gozo a ponto de sua fusão em ato cênico dar passagem para um componente ímpar, o farmacoçúcar que regula nossos corpos, mentes, afetos e apreensões em atos. As subjetividades filhas dessa terra são tão herdeiras e consequências do colonialismo quanto sua disposição territorial, numa dança macabra de hierarquização e diferenciação racial; tanto dos sujeitos quanto dos territórios, acentuando, dessa forma, o lugar de referência da brancura na posição de humano universal, um que pode Ser tudo que seu corpo conseguir gozar com, na exata medida em que o Negro não pode ser nada além do que seu Corpo é possibilitado ser, visto que os agenciamentos do racismo não só estruturam como corroem e destroem cada um de nós.
No fim das contas, o Negro passa da condição de insumo para ser uma casca esbagaçada, relembrando a metáfora de Jesus, não o cachorro porradeiro, mas o teórico, de modo que há a inauguração de um novo tipo de sujeito. O Homo bagaço[5], um sujeito reduzido a sua função produtiva no modelo capitalista, onde o tempo não se ganha, tampouco se aproveita, ainda menos se realiza; apenas se trabalha. O capitalismo instaurou o trabalho como força motriz num processo retroalimentativo entre corpos (negro) e sistema psicossocial, engordando na exata medida em que consome a carne adocicada, de modo que o tempo de vida deixa de ser o do viver e passa a ser o só trabalhar. A existência, nesse aspecto, retorna ao caráter existencial que tensiona a divisão racial engendrada pelo colonialismo, onde o Ser-branco dispõe do gozo da existência, na exata em medida em que o ser-Negro é antecipado pela imagem de escravo de seu destino epidermizado
É curioso e perverso perceber como são exatamente os sujeitos que durante séculos foram utilizados nos engenhos como mão de obra para a produção de açúcar sejam hoje os mais acometidos por diabetes, quase como se o sangue preto que escorreu da ponta de cada chicote tivesse penetrado o solo a ponto de a cana seguir vindo com nosso sangue. Nos mataram de tantas formas, e ainda seguem nos destruindo, a ponto de que a carne preta seja não só a mais barata do mercado, como também a mais doce.
Notas de Rodapé
[1]Autor: Estudante do Programa de Pós-Graduação em Filosofia (PPGFil) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), onde se formou como Psicólogo Clínico (CRP 02/2705), atuando com clínica de orientação psicanalítica voltada para pessoas negras. Realiza pesquisas acerca dos lugares faltantes da Psicanálise no tocante às subjetividades negras, dando especial atenção a centralidade da obra de Frantz Fanon em conjunto com o Rap como pontos de inflexão teórico-clínicos.
[2] https://www.diariodepernambuco.com.br/noticia/viver/2023/03/peca-sine-qua-non-estreia-em-curta-temporada-no-teatro-marco-camarot.html. Acesso em 10/04/2023
[3] Rufino, L. (2019). Pedagogia das encruzilhadas. Mórula editorial.
[4] JESUS, Alexandro Silva de (2022). Notas sobre a atualidade da ferida colonial. Recife: Titivillus editora;
[5] Releitura da forma com a qual Alexandre Jesus conceitua o sujeito fruto do colonialismo que interdita e corrompe o corpo ao reduzir sua carne à casca gráfica percebida como “homem bagaço”, aqui sendo colocada no gênero homo, para abarcar individualmente o coletivo humano