Crítica – Tenha Cuidado | Entre excessos e vazios
Imagem – Sissel Steyae
Por Lorenna Rocha
Licencianda em História (UFPE) e crítica cultural
Enquanto o público se acomodava na sala do Itaú Cultural para a performance Tenha Cuidado, de Mallika Taneja, já era possível visualizar o cenário da apresentação. Peças de roupas de cores vibrantes estavam milimetricamente dispostas de acordo com a gradação de sua paleta, organizadas em instalações que nos lembram araras de lojas de roupa. Os objetos cênicos estavam acomodados junto a uma luz âmbar que, com o anunciar do início da atividade, fora interrompida: a escuridão tomou conta do espaço e, logo em seguida, Mallika encontrava-se no palco, desnuda. Um duplo movimento de contraste é produzido nesses breves instantes: o primeiro pela iluminação; o segundo pelo excesso de tecidos confrontado pelo corpo totalmente exposto de Taneja.
De pé em frente a platéia, o silêncio verbal é explorado pela performer por longos minutos nos primeiros momentos da ação performativa. Seu olhar, como um farol, atravessa quem está presente e comunica uma série de estados emocionais, que passam gradativamente da raiva para o prazer. Encarando a todas e todos no intervalo de vazio sonoro, é nesse procedimento que também se transparece um corpo que se prepara para a cena. Ao prender seus cabelos compassadamente, ela também convida, em certa medida, o público a prestar atenção em cada um de seus gestos, subordinando-o ao tempo desse corpo feminino.
Se por um lado essas primeiras ações alargam até mesmo a nossa percepção do tempo, por outro, o ritmo dessa primeira etapa parece se esvaziar, como se estivesse sido estendido para além do tempo da própria cena. Isso, no entanto, não prejudica a segunda etapa de Tenha Cuidado, onde se encontram os discursos narrativos sobre as questões de gênero que são centrais para a obra.
Taneja começa a interagir com as peças. O primeiro véu é exposto ao público. Com um sorriso irônico, ela começa a entrelaçar o tecido em uma de suas mãos, como se sufocasse essa parte de seu próprio corpo. Uma alegoria daquilo que estava por vir. Com a mesma dose de ironia, a performer comenta sobre situações de seu cotidiano, como o fato de não poder frequentar alguns lugares após determinados horários ou a obrigação de sempre estar acompanhada de uma figura masculina para poder transitar em determinados lugares, o que marca também traços da sociedade indiana, seu país de origem. Ao mesmo tempo, ela se veste compulsivamente, com inúmeros véus, shorts, calças, vestidos, meias, que deformam seu corpo e o escondem.
Até hoje, no imaginário machista e patriarcal, a relação entre a roupa que uma mulher veste e sua “predisposição” para ser violada parece ser uma métrica possível para se estabelecer aquela velha frase do “ela quem pediu”, como no recente caso brasileiro em que um motorista de Uber teria assediado uma menina por ela estar com um “short da Anitta”. Tais discursos promovem o processo de culpabilização e responsabilização da vítima e visam proteger os violadores e a estrutura do patriarcado. O que Mallika faz em cena é denunciar essa falácia, com humor extremamente ácido, pondo em xeque uma cultura misógina que, no final das contas, nunca estará em apoio à vítima.
Enquanto deforma seu próprio corpo com o excesso de peças de tecido e faz piadas com o fato dela “amar roupas”, que pode ser lido como um comentário do “universo feminino”, atrelado a um comportamento consumista que seria “a cara das mulheres”, ela usa da extravagância para fazer uma crítica à violência de gênero e construir, através de seus procedimentos estéticos, uma denúncia à estrutura patriarcal em que não importa o quanto a mulher preserve seu corpo, suas subjetividades, suas histórias, o quanto se auto-interdite a serviço de uma falsa sensação de segurança: eles não acreditarão em nós.
Talvez, o que falte à performance é um deslocamento sobre as noções desse discurso feminista como universal, no que tange às experiências de mulheres com outras marcas sociais, tendo em vista que esse é um corpo cisgênero em cena. Pois, repensar a formulação dessa experiência a partir de um recorte interseccional nos ajudaria a pensar nas diferenças sem separabilidade, como diz a intelectual Denise Ferreira da Silva, que foi citada pela Eleonora Fabião na mesa do Seminário Perspectiva Anticoloniais, “Das Ações”, promovendo o emaranhamento das questões de gênero (e classe, raça, sexualidade) como forma de combate (e/ou superação) à violência.