Crítica – Todas as Histórias São Possíveis | Entre perdas e lembranças

Imagem – Reprodução Youtube
Por Halberys Morais de Holanda
Ator, Produtor Cultural e Licenciando em História (UPE)
Às 19:32, o telefone toca. Era dia 29 de agosto, mas eu já aguardava essa ligação há semanas. Todas as terças-feiras, era preciso enfrentar o site do Sesc Av. Paulista para conseguir retirar o ingresso de Todas as Histórias Possíveis. Após inúmeras tentativas, devido ao grande número de pessoas que, assim como eu, aguardavam sua vez na fila virtual, pude, no fim de agosto, desfrutar desse experimento-cênico sensorial do grupo pernambucano Magiluth.
– Alô, aqui é o Giordano Castro, do Grupo Magiluth.
Havia começado minha experiência!
Pausa.
Antes de dar prosseguimento ao texto, talvez seja importante dizer que, nas linhas que se seguem, posso acabar por dividir também a minha história, também bastante atravessada por Todas as Histórias Possíveis. Talvez, nessa crítica, vocês poderão até se confundir sobre aquilo que é meu e o que é da experiência. Todavia, mover aquilo que até então estava fechado em mim parece ser uma convocação do próprio experimento. Vamos lá…
Assim como em Tudo que coube numa VHS, os integrantes do grupo se dividem nesse experimento-cênico realizando ligações e diversas interações multimídia com os espectadores/participantes. Recebemos ligações e mensagens no Whatsapp com textos, áudios e links de vídeos a serem acessados no YouTube. Dessa forma, nesse 1×1, cada experiência acaba sendo única, ainda que se haja um percurso dramatúrgico previamente estabelecido a ser cumprido.
Em março deste ano, recursos cênicos similares estavam sendo utilizados na França pela Cia. La Colline: o grupo vendia ingressos para uma ação que consistia em receber uma ligação de um dos participantes da companhia, que compartilham trechos de dramaturgias, rendendo assim bons encontros. A conexão através do telefone móvel, se estendendo a outras plataformas digitais, elaborada pelo Magiluth, parece ter conseguido grande atenção do público aqui no Brasil, abrindo espaço para o fazer artístico teatral se remodelar, diante de um presente e um futuro tão incerto para o campo.
No começo da pandemia, o pesquisador Rodrigo Dourado, no artigo Teatros da Pandemia – O Giro Viral, já conseguia apontar alguns desses movimentos de readaptação:
Professores de dança dão aulas online; coros cantam também pela web; grupos de teatro disponibilizam espetáculos filmados na íntegra em plataformas como Youtube, Vimeo; conferências de mestres do teatro são compartilhadas entre admiradores e aprendizes; em solo ou coletivamente, artistas performam para câmeras de celular e/ou computadores, ao vivo; debates sobre teatro acontecem no formato live pelo Instagram; dramaturgos compõem textos colaborativamente pela rede; chamadas para dramaturgias sobre a quarentena são lançadas nas redes sociais; textos teatrais são lidos em horário marcado, via net, a fim de reproduzir a experiência de expectação comunal. (DOURADO, 2020, p.10)
Num momento em que todos e todas tentam se adaptar a esses novos formatos de vida, o teatro parece ser um bom antídoto para lidar com dolorosas e incontáveis perdas. Nele, também estamos vendo algumas doses de movimento que podem nos inspirar à vida, não permitindo que nos entreguemos totalmente ao desolamento ou a um estado de inércia. E, nesse sentido, abro espaço para contar também minha história.
Meu pai faleceu em 27 de abril, um dia após seu aniversário de 73 anos. Ele não acreditava no poder que esse vírus possuía. Naquele mês, vi-o morrer em meus braços, em frente a UPA. Me deparei discutindo com a médica do SAMU, pois não havia vaga para recebê-lo. Até hoje, não sei se ele faleceu devido à COVID-19 ou por problemas cardíacos. Mas a lembrança dele indo a óbito, segurando a minha mão, como quando me ensinou a andar de bicicleta, ainda lateja aqui dentro. Essa também é uma história possível e a acessei durante o experimento, de alguma forma.
Focado em cada informação passada pelo performer do experimento-cênico sensorial, me abri àquela experiência de forma despretensiosa, como as ondas do mar que quebram à costa, formando espumas ao ir e voltar, nos caminhos que a mãe das águas, Iemanjá, rege. Aqui, estamos falando de vidas. Daquelas que estão aqui ou aquelas que já se foram. Esse deixar viver e deixar morrer, essa necropolítica, essa importância da vida num contexto como esse.
Atravessado, escrevo:
Corpos matáveis que pesam
E os que vivem?
Venha cá, cê já parou pra pensar como as valas de esgoto se assemelham às covas de cemitério?
Se não, é bom começar a fazer essa análise.
Corpos matáveis que pesam
No bolso do governo, da polícia, dos encarceramentos, da saúde, do que mais?
Tudo né porra!
O ato do morrer é fácil e as mãos estão sujas de sangue.
Pega água, sabão, álcool, ácido pra vê se tira, mas antes vê a marca, quem sabe ela pode te salvar.
Deus, jesus, espírito santo, clama o nome deles, agora clama alto, grita se for preciso. Só não te garanto que vão te responder
Corpos que pesam kg, centenas, toneladas de vida, mas que esvaem dia após dia.
A carne mais barata do mercado é a carne negra, já dizia Elza Soares.
Então, me diz, na balança o que pesa pra você?
(Halberys Morais, Projeto Entre Telas, Grupo São Gens)
A data é 25 de abril. Uma data-memória em que a personagem de Todas as histórias… sofreu algo. Poderia ser um acidente, uma bomba nuclear, uma pandemia. Lembrei do meu pai. A partir das vivências da personagem, ora ativada no jogo pelo próprio performer, ora mencionada pela narração em terceira pessoa, consigo elencar vários problemas que constituem o nosso presente: hospitais sucateados, desvios de verbas da educação, extinção de editais, programas com bolsas para pesquisas cortados, lava jato, corrupção, fake news, os 89 mil de Queiroz à Michele Bolsonaro.
No meio disso tudo, há a história de um casal que desejava viver juntos, mas que terá seus sonhos interrompidos. Os convidados não chegarão, o sim foi interrompido, a chave ficou na porta à espera do tão amado…
Na minha cabeça, estou embalado pelos sinos das lembranças, que ora adormecem numa tentativa de esquecimento total desse presente, ora os fortes badalos remontam certo passado. Mais uma mensagem chega no meu celular. O tempo se acelera. Somos levados às ruas, asfaltos, prédios… Estamos na Av. Paulista, em São Paulo. Num momento em que parte de nós não podemos sair de casa, é nesse movimento que podemos viajar entre as telas, nos permitindo sair desse aprisionamento.
À direita, vejo o Museu de Arte de São Paulo (MASP). Seguimos mais a frente e consigo ver alguns seres, árvores, vejo uma lagoa. Será o Parque Ibirapuera? Andando mais um pouco e estamos na Gervásio Pires… Uma rua do Recife? Percebo o prédio do hospital IMIP, no bairro dos Coelhos. Atravessamos a ponte, seguimos mais alguns metros. Ruas e mais ruas. Carros, transeuntes.
Entrelaçado em perdas e lembranças, numa curva à extrema direita, surge um fino risco político no experimento, que subverte a “ordem e progresso” da paisagem urbana. Utilizando-se de uma mensagem política que parece não enxergar essas ausências e vazios, a frase Obrigado Presidente Bolsonaro por salvar nossas vidas pós pandemia, do outdoor ganha outros contornos após o trajeto preparado pelo Grupo Magiluth.
Agora é o choro de um bebê que intervém o experimento: era o filho recém-nascido da minha vizinha. Ele parecia estar com fome. O choro naquele momento começa a ganhar outros contornos, pois volto ao início da história. Lembro do amor interrompido, da despedida não esperada. Meu celular toca. Os tempos se atravessam e Giordano diz que parece que nós já conversamos sobre aquele assunto.
As histórias se assemelham, só mudam os sujeitos, os anos e as situações. A ligação cai novamente, voltamos ao Whatsapp. Um texto é compartilhado e a canção Volta, de O Terno, parece dar ainda mais densidade àquilo que estou lendo. O luto é reforçado, a vontade de querer voltar ao passado e fazer diferente também. A vontade de reencenar aquele olho-no-olho que deixamos para trás…
O experimento vai se encerrando… As mensagens, aos poucos, vão uma a uma sendo apagadas e dá um tom quase confessional ao que tinha acabado de acontecer. Naquele momento, percebi como o experimento fez abrir feridas que estavam aparentemente fechadas em mim. Me lembro do início da atividade, do meu pai. Me sinto só. O fio que conectava esse breve encontro, se desconectou. Mais uma micro-perda. Pareço ver fechaduras abertas daquilo que ainda virá. Sinto vidros estilhaçados. Tudo gira. Mas as chaves continuam lá. Abertas ou fechadas, todas as histórias continuam sendo possíveis.
Todas as histórias só se tornam possíveis quando nos permitimos, nos abrimos, nos jogamos em abismos ou no desconhecido. Lembro do caminho que percorri até o fim do experimento. É nesse ato de lançar-se, como eu me permiti, e como o grupo tem feito, que as coisas passam a acontecer. Se é teatro ou não, faço coro a outras pessoas: não interessa. Importante é esse momento de tatear, ir, voltar, e, no fim, produzir os encontros.
Referências
DOURADO, Rodrigo Marques de Carvalho. Teatros da Pandemia: Giro Viral. 2020. Acesse AQUI