Crítica – Traga-me a cabeça de Lima Barreto! | Por um jardim preto

Imagem – Andrea Adeloyá
Por Lorenna Rocha
Graduanda em Licenciatura em História (UFPE) e Atriz
Terceiro toque. Apagam-se as luzes. Na projeção da tela, corpos brancos, fortes, ávidos. Eugenia. É preciso controlar os corpos para que, como num jardim, as ervas daninhas, ou seja, as raças inferiores sejam apagadas para o desenvolvimento de uma nação de homens cordiais – e racistas – como o Brasil. Já que estou aqui, a quantas mortes me submetem, todos os dias, ao humilhar a mim e aos meus por conta de nossa cor?
Nos dias 17 e 18 de fevereiro deste ano, Hilton Cobra apresentou, em Recife, seu monólogo Traga-me a cabeça de Lima Barreto! (Cia dos Comuns – RJ) em duas apresentações.[1] O espetáculo se debruça sobre a vida e obra do escritor Lima Barreto (1881-1922), a partir da imaginária sessão de autópsia de sua cabeça, motivada pela seguinte pergunta: como um cérebro de raça inferior poderia ter produzido tantas obras literárias, se o privilégio da arte e da boa escrita é das raças superiores? (Confira entrevista com o ator AQUI)
Eugenia: o projeto de desenvolvimento do Brasil
O Brasil foi um dos primeiros países latino-americanos a ter um movimento eugenista organizado. O termo eugenia foi criado pelo inglês Francis Galton (1822-1911), no final do século XIX. O estudioso acreditava que os seres humanos poderiam ser controlados – e selecionados – como animais e plantas. Influenciado pela Teoria de Seleção Natural de Charles Darwin, Galton buscava demonstrar que, além das feições físicas, traços comportamentais, intelectuais e artísticos seriam transmitidos por herança genética. Com isso, elaborou um programa de reprodução seletiva onde os degenerados – ciganos, daltônicos, epilépticos, etc – deveriam ser excluídos, até desaparecerem.
Nas primeira décadas do século XX, o Brasil passou por diversas mudanças sociais, culturais e políticas. O país de mestiços, sustentado durante séculos pela escravidão de indígenas e negros africanos para a manutenção da ordem política, ideológica, social e econômica de colonização europeia, importou, poucos anos após a Abolição da Escravatura (1888), o movimento eugenista como forma de tornar o Brasil mais branco e, supostamente, mais desenvolvido. Entendia-se que era devido à essa massa de pessoas “inferiores” – leia-se negros, degenerados, cegos, surdos – que se custava a não industrialização e não prosperidade do país.
Durante esse período, a eugenia também estava ligada à ideia de patriotismo, higiene e saúde. O país, que foi o último a abolir a escravidão, abandonou os ex-escravos sem elaboração de políticas que integrassem esse contingente populacional à república. Isso contribuiu para que negros e mulatos – que eram vistos como preguiçosos, doentes e vagabundos – se encontrassem em situações deploráveis nas cidades e auxiliou para que campanhas sanitaristas e eugenistas tomassem força. Além disso, a promoção sistemática da política de imigração europeia estabelecida entre os anos 1900 e 1940 foi reflexo da tentativa da redução – leia-se “limpeza” da população pobre e negra – e do embranquecimento das terras canarinhas de homens cordiais que buscavam nos ideais dos “países desenvolvidos” o reflexo de seu próprio espelho. Homens cordiais. E racistas.[2]
Nós, homens brasileiros e cordiais. Sim! Cordiais. E racistas!
O texto de Luiz Marfuz foi inspirado livremente na obra de Lima Barreto e traz à tona o retrato da eugenia no país durante o período histórico em questão, apresentando uma cuidadosa pesquisa documental. A projeção de trechos de livros da época, como Annaes de Eugenia (1919), de Fernando de Azevedo, Os africanos no Brasil (1906), de Nina Rodrigues, além de cartas e posicionamentos de agentes do Estado e de intelectuais como Monteiro Lobato (1882-1948), traz nuances de como esse movimento contribuiu para a promoção do racismo estrutural no Brasil.
O cenário é simples: dois caixas de som representando personagens que aparecem no decorrer dos 55 minutos de peça; uma cadeira; alguns livros; uma cabaça do lado esquerdo do palco; um telão de fundo. A ambientação da cena se dá com um trabalho de luz simples e sutil. Lima é retirado de sua rotina pós-morte por alguém que o incomoda em sua casa e é levado para uma sala inquisitorial. A morbidez fria dos homens que representam o projeto de branquitude se espalha através de suas vozes e se reforça à medida em que as sete teses fundamentais da eugenia são exibidas no projetor que está à vista dos espectadores.
Lima Barreto é um homem ácido. Faz piada com aqueles que o submeteram, mais uma vez, a morrer ao colocarem sua intelectualidade em xeque. É na cachaça que desinfeta o seu corpo até o confronto a Machado de Assis: suas palavras-navalha, como diria Belchior, trata o presente com comicidade, mas tensiona e atravessa as questões raciais que estão pulsantes no espetáculo. Seja contando sobre sua experiência na escola de referência ocupada majoritariamente por brancos ou mesmo com o desdém que trata o preto embranquecido do Machado: tudo é tratado com ironia e com um português um pouco distante, cheio de rigor estilístico, que nos faz adentrar ainda mais na sociedade brasileira do fim do século XIX e começo do século XX.
O ódio à cor preta não é novidade. E o personagem de Lima Barreto nos faz lembrar muito bem disso. Ao contar sobre suas frustrações do passado ou como poderia sido tratado diferente se fosse branco, o cruzamento entre aquilo que lhe ocorrera e com o presente do espectador que o vê se torna ainda mais forte quando ele invoca Marielle Franco, vereadora da cidade do Rio de Janeiro assassinada no Brasil em 2018, e a juventude negra que sofre genocídio em vários estados do país dentro e fora das periferias. E essa relação entre passado e presente continua em outro momento quando ele diz: quem entregaria o coração a um doutor pobre e preto?
Oscilando entre um tom de loucura e sanidade, a atuação de Cobra materializa o grito de “basta” dado por Lima Barreto décadas atrás e faz de sua arte engajada, por necessidade, o retrato de um jovem escritor que confrontou padrões estéticos a fim de construir uma narrativa que contemplasse e fizesse pensar a experiência do negro no Brasil. Dessa forma, seria possível, enfim, encarar de frente a ferida aberta da escravidão que ainda precisa ser compreendida, em parte, como estruturante das desigualdades sociais do país.
Uma cabeça encantada por uma pátria encantada
Ao abrir a cabaça que estava em uma das extremidades do palco, o personagem revela sua cabeça formada por búzios, em evidente referência à cultura africana e afro-brasileira. Ao revelar-se à autópsia, para além dos parâmetros do outro que o distingue e o diz se é ou não normal – e possível – um homem preto escrever como uma pessoa branca, delineia-se também a relação de Lima com sua família e com a loucura que o aparece como um fantasma e faz parte de sua biografia. Se desenha também a percepção de que a cor de sua pele o fazia ser distinguido dos demais. A linha entre o ódio da cor e o ressentimento de reconhecê-la e assumi-la apresenta as ambivalências do jovem escritor que nos convida para uma conversa sem melindres.
No meio da exposição de tantos desencontros, dores, reconhecimentos e também da auto-afirmação como um negritor, como é dito em uma das canções do espetáculo, o referencial de Lima passa a ser outro: é a cabeça do inquisidor que está errada e é ela que não é normal. É nesse momento, então, que Lima se encontra nas águas do Atlântico, junto aos negros diaspóricos que morreram e resistiram ao bico da cegonha matadora, o navio negreiro. E, a partir de sua consciência, o escritor reforça o seu compromisso com a cultura e a história do povo africano e afro-brasileiro e reafirma sua própria negritude.
Seus personagens são trazidos para perto de si como um ato de conexão mas também de pertencimento, quando abraça seus livros em cena. O tecido africano vermelho e amarelo se torna pano de uma relação ancestral. No telão, a projeção do mar e das águas do reencontro com África reforça a ligação com a nação roubada, porém nunca esquecida: está na memória, na história, no passado, no presente e em todos aqueles que também escrevem – experienciam – e fazem a História do Negro no Brasil.
Ao se afirmar, ao evocar a pátria encantada, com os seus de cor, onde subverte os padrões hegemônicos que tanto coloca o corpo negro em inferioridade, Lima nos lembra que as ervas daninhas ainda estão aqui, mesmo sendo não gratas. E lança um manifesto não escrito, mas no plano simbólico, ao produzir imagens outras que convidam à exaltação da cultura negra e ao reconhecimento de um passado que nos é tão caro, mas que também fala muito sobre nós.
Manifesto ou Por um Jardim Preto
A defesa de uma literatura militante pelo personagem, mas vista como suja pelo projeto eugenista e pela sociedade da época, pode nos levar a pensar: como nas escolas e em várias estantes de livros ainda é difícil encontrar algum título do escritor ou por que a obra de Lima ainda não é tão valorizada? É preciso encontrar outras narrativas. Perfurando a invisibilidade e a negação, diferente do que se ainda quer fazer com a história, a cultura e a experiência do negro no Brasil, Traga-me faz explodir um grito de séculos de histórias arrancadas, esbranquiçadas e esquecidas.
Não é a toa que ler Lima Barreto hoje é de uma atualidade gritante: talvez por não termos discutidos temas vistos por ele lá atrás ou por estarmos recorrendo aos mesmo erros do passado. Nesse sentido, o espetáculo, então, torna-se um convite para acessar essa vasta obra que ainda é negligenciada. Talvez seja nessas páginas que possamos encontrar a real vontade de Lima escrever o Germinal Negro, representando e registrando os anos de luta da população negra no Brasil que ainda é morta pelo Estado, por tiranias simbólicas ou pelo segurança de uma grande rede de supermercados. Felizmente, não há mais ervas daninhas. Há um jardim preto a florescer. Com Marielle, Mariguella, Conceição Evaristo, Carolina de Jesus, Solano Trindade, Abdias Nascimento, entre tantos outros que farão a voz de Lima Barreto ecoar e virão como vozes insurgentes no caminho de emancipação do povo negro.
Nota de Rodapé
[1] A primeira apresentação aconteceu no Teatro Barreto Júnior e a segunda no Teatro Milton Bacarelli na Universidade Federal de Pernambuco. A atividade contou com parceria da PROACAD (UFPE), PROExt (UFPE) e também da Cátedra Gilberto Freyre.
[2] Ver mais em STEPAN, NL. Eugenia no Brasil, 1917-1940. In: HOCHMAN, G., and ARMUS, D., orgs. Cuidar, controlar, curar: ensaios históricos sobre saúde e doença na América Latina e Caribe [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2004. História e Saúde collection, pp. 330-391. ISBN 978-85-7541-311- 1. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>.