Crítica – TREMA! Festival | Dramaturgias expandidas e olhares descolonizantes da nossa própria crítica

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Imagem – Nereu Jr
Por Sônia Sobral
Gestora cultural e curadora nas áreas de dança e teatro
Não tem modelo, tem inspiração. Nêgo Bispo
No seminário Perspectivas anticoloniais que abriu a programação da MIT-Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, em 2020, ouvimos do líder indígena, filósofo e escritor Ailton Krenak:
“Nós costumamos debater a colonização numa perspectiva pós-colonial. A colonização é aqui e agora. Pensar que estamos discutindo as práticas coloniais como alguma coisa pretérita, que já foi e agora só estamos limpando, é uma brincadeira. A colonialidade está tão impregnada em nós quanto a poluição do ar. Seguiremos esse debate imersos na prática colonial.”
Nosso vício de pensamento. Olhamos de dentro do ringue colonizado-colonizador. Mesmo escolhendo um lado, estaremos dentro dessa dicotomia. A partir disso, o que podemos fazer? Como escapar de ou ao menos arranhar essa lógica medularmente constituída? Certamente não é reiterando o modo como pensamos e agimos.
A única chance, diz Krenak, é “compreender o que está nos acontecendo e agir a partir daí”.
Pós, des e de-colonial são movimentos intelectuais, epistemológicos e políticos, que em diferentes momentos tiveram e ainda têm grande reverberação no Sul do mundo. Com perspectivas distintas, dedicam-se a contestar a história única e idéias naturalizadas e a compreender os efeitos dos domínios coloniais, trazendo as vozes e experiências vividas de comunidades silenciadas.
Nos dois primeiros anos da pandemia de Covid-19, a produção de ciência que não está na academia começou a nos chegar amiúde nas discussões sobre o que estávamos e estamos vivendo.
Essas formas de refletir sobre o momento que nos cabe viver vêm de pensadores e de lideranças como Ailton Krenak, Nêgo Bispo, Cacique Babau, Davi Kopenawa, Luis A. Simas, Tiganá Santana, Emanuele Coccia, Donna Haraway, Sandra Benites e de intelectuais “fora do eixo”, como o camaronês Achille Mbembe, entre muitos outros. A chave mestra das reconhecidas e das novas referências parece ser a mesma, a crise de uma lógica de vida, do antropoceno e do capitalismo.
O biólogo italiano Emanuele Coccia propõe mirar o modo de vida das plantas como um modelo de organização e de ética. A vida vegetal destrói hierarquias tipológicas e a vida cartesiana.”As plantas coincidem com as formas que inventam, formas são derivadas do ser e não do modo de fazer. A forma que você cria contém e é contida pelo ser. Estamos falando de metamorfose e criação. As plantas se confundem com o mundo enquanto semente”. (Citação do livro A vida das plantas. Uma metafísica da mistura, de 2019).
O povo tucano acredita que fomos povos das águas, que fomos anfíbios. O que interessa não é ter sido peixe ou outro vivente, mas a ideia de metamorfose que há nessas visões de mundo, a ideia de uma recriação constante do corpo. Um corpo que pode vir a ser outro corpo, e isso colide com a ideia de um corpo permanente e territorializado. E nos lembra o corpo em trânsito de Antonin Artaud, um corpo sem órgãos que se desfaz e se recompõe constantemente – concepção de corpo que carrega o pensamento nietzschiano.
Nêgo Bispo, liderança quilombola do vale do Rio Berlengas, no Piauí, se auto-denomina afro-pindorâmico. “A minha voz não é uma voz brasileira, a minha voz é do quilombo que fisicamente está no Brasil”. Nêgo Bispo é conhecedor e crítico do sistema euro-cristão-colonialista, ativista político, autor de diversos artigos e dos livros: Quilombos — modos e significado (2007) e Colonização, Quilombos. Modos e Significados (2019).
Bispo desenvolveu o conceito de confluência no lugar de convergência porque esta seria simetria entre iguais. A confluência, por outro lado, é uma relação de convivência, de “ajuntar sem se misturar”. “Eu posso estar no mesmo território que os colonialistas, sem estar misturado com eles”. “As águas não se encontram por coincidência, mas porque andam na mesma direção, elas confluem. Um rio não deixa de ser um rio porque conflui com outro; pelo contrário, ele fica mais forte. Da nascente até onde confluiu ele tem um nome, a partir de onde ele confluiu ele tem um nome compartilhado, ele só deixa de ser rio e se mistura quando chega no mar.”
Ele propõe enfraquecermos algumas ideias como a de desenvolvimento – palavra e conceito coloniais – e fortalecer a idéia de envolvimento. “Nós pensamos do segmentado para o integrado, nós pensamos de forma envolvimentista, eles pensam do integrado para o segmentado. Eles querem consertar o Brasil e depois o brasileiro, e nós o contrário, nós queremos consertar a vida do quilombola para depois consertar o quilombo, porque o quilombo somos nós.”
Ouvir seu modo simples e direto de pensar dá uma volta no nosso pensamento funcional. “Eu não tenho medo da Bíblia porque ela é quadrada e o tambor é redondo”. Criticando a lógica euro-cristã observa que Deus é o pai, Jesus é o filho, Jesus morre e vem o Espírito Santo. Esse Deus não tem neto. Na civilização euro-cristã-monoteísta, completa Bispo, é começo, meio e fim, acaba a circularidade da vida”. Bispo lê o mundo a partir da dinâmica: “Princípio – Meio – Princípio”.
Isso pode explicar porque não vivemos ou convivemos com a noção de ancestralidade – não somente como reverência aos antepassados desencarnados, mas como continuidade infinita. Coccia traz a idéia de ancestralidade de outra forma, lembra-nos que nossa vida já é a vida de outra pessoa, a começar pela nossa mãe. “A nossa vida é muito mais antiga do que a idade que temos, nosso corpo é tão antigo quanto a vida, somos jovens e contemos a vida de milhões de anos”, diz o biólogo. É possível relacionar a confluência de Bispo à unidade entre corpos diferentes de que fala Coccia e ao alerta de Krenak, “O futuro é ancestral”.
Luiz Antonio Simas, professor de história, escritor, compositor e babalaô, e o pedagogo Luiz Rufino, jovem professor da UERJ, autor de Pedagogia das encruzilhadas, escrevem juntos Encantamento. Sobre política da vida (2020), falam da prática do encantamento como ato de desobediência, de invenção e de reconexão. O livro foi uma das referências literárias da Lia Rodrigues Companhia Danças para a criação de Encantado, espetáculo apresentado no Trema! Festival que, por sua vez, se alimenta da mesma referência “… o contrário da vida não é a morte, o contrário da vida é o desencanto”, lemos essa e outras passagens nas apresentações dos programas Lado 1 e Lado 2 do festival.
Cito mais: “Uma perspectiva contrária à diversidade produz desencanto, perda de vitalidade, que reifica as raízes mais profundas do colonialismo. O encantamento seria o princípio da integração entre o visível e o invisível, materialidade e espiritualidade, a conexão e relação entre diferentes espaços-tempos”.
Tudo isso que trago em citações comunga, cada uma a seu modo, com a ideia de que as formas de violência coloniais e imperialistas, executadas há séculos; impede a vivência de ciclos e conexões entre vida, morte e natureza. Esse mundo construído na linearidade e na ideia de desenvolvimento se perde na circularidade da existência. As problemáticas antropoceno, colonialismo e capitalismo estão, portanto, ligadas.
Pensar na circularidade é pensar no tempo. O músico e filósofo Tiganá Santana lembra um aforisma yorubá que diz: “Exu matou o pássaro ontem com a pedra que arremessou hoje. Isso implica que a partir da presença ou do instante presente tem uma certa vivência ou experimentação do que se passou. O que passou, ao mesmo tempo que está dado, não está.”
A temporalidade e espacialidade que Exu traz é do tempo como lugar e do espaço como a forma que o tempo se dá, nos ensina Tiganá . Numa outra fala do mesmo projeto Vagamundos. Modos de apreensão do mundo, o tradutor de cosmologias nos conta que na língua guarani os sons e as palavras ocupam um lugar central: pessoa significa “palavra em pé” e “o canto é o estar aqui da palavra”.
Sandra Benites, da Terra Indígena Porto Lindo, em Japorã (MS), se apresenta como mãe e ativista Guarani. Atua ainda como antropóloga, curadora de arte e educadora. Primeira curadora indígena de um museu, abriu a exposição Histórias da Dança no MASP, em 2020, nos falando dos significados das danças guaranis.
Sandra conta que o período de menstruação da mulher é o momento do silêncio para sentir o corpo. Os meninos, por sua vez, têm sangue quente. O controle emocional do sangue quente é o domínio do próprio corpo. Por isso os meninos aprendem a dança do guerreiro, que é lutar contra si mesmo. Os homens têm que estar em movimento e em estado de alerta, e isso constrói um corpo de guerreiro; o que eles têm que aprender então é o corpo paciente, o corpo que escuta.
“O movimento é mais do homem e o canto é mais das mulheres. As mulheres são donas da voz do grito. As mães cantam para os filhos e isso ensina também os homens a escutar”.
A palavra guarani para escutar é a mesma palavra para sentir. Rendu é escutar o outro no próprio corpo.
“Quando a gente dança entre nós, mulher dança com mulher e homem dança com homem. Mas quando a gente se junta em momentos tensos, quando a aldeia corre risco, dançamos a dança tensa dos homens, que tem potencial de coragem. Quando a gente é chamada pelos ancestrais para se preparar para a luta, a gente se prepara dançando para encarar inclusive a morte. Tem medo, tem perigo, mas tem coragem e tem alegria”, diz Sandra.
Esse conjunto de olhares descolonizantes converge para a multiplicidade de mundos como valor. Os fundamentalismos fazem o que podem para suprimir outros mundos.
Nada do que expusemos é necessariamente novo, mas segue distante de uma prática de vida. Nós ocidentais olhamos o mundo à nossa frente e não imersos nele, não num intercâmbio mútuo, “a pessoa no rio e o rio na pessoa”. A natureza deve ser gerenciada pelo homem para o homem. O xamã yanomami Davi Kopenawa chama de “povo da mercadoria quem só enxerga na floresta insumos a serem extraídos a qualquer custo” e completa “… os brancos só conhecem o que está dentro deles mesmos”.
Não devemos, contudo, essencializar a natureza. A vida é também devoração. Há perigo, medo, tensão, morte. Para o pensamento indígena, a predação é a forma como a vida se transforma.
Voltemos a pergunta inicial: O que podemos fazer? O que nos uniu na roda de conversa Dramaturgias expandidas e olhares descolonizantes da crítica são dois gestos nessa direção. Os conceitos do Trema! Festival, com curadoria de Pedro Vilela, e do projeto Dramaturgias de palcos e plateias, idealizado por Roberta Ramos, com parceria do 4Parede, são eles mesmos formas de deslocamentos. O primeiro apresenta e o segundo provoca encontros que percebam as expansões das dramaturgias e aprendam com elas formas justas de olhá-las.
Escolhemos quatro formas diversas de dramaturgias expandidas apresentadas no Trema! Festival. Nesse ponto falamos de linguagem e falamos de temporalidades descontínuas, curvas e simultâneas ao invés de contínuas, retas e consecutivas.
A arte inscreve-se na dimensão simbólica, se contrapondo à dimensão cotidiana e pragmática da vida. É preciso sair dos nossos quadros habituais de representação para que algum desvio de pensamento aconteça.
Seria muito difícil encarar a vida de trabalhadores assalariados numa das periferias mais pobres do México, não fosse o espetáculo Tijuana da companhia Lagartijas Tiradas al Sol. Foi no campo da linguagem poética que pudemos fazê-lo. Na construção desse espaço real-ficção-poética chegamos em Tijuana.
O “bando de artistas mexicanos” como se auto-denomina o Largatixas tiradas al sol criou uma contra-narrativa e desestabilizou nossa percepção do real e do ficcional, em constante embate na cena. O público foi levado ao limbo assim como as vidas dos operários de uma fábrica. Dias depois da apresentação, Tijuana ainda era o assunto nas mesas de bares, nas saídas dos teatros. Largatixas nos deslocou através da linguagem, não da informação.
É o caso também de Altamira 2042, de Gabriela Carneiro da Cunha, que cria uma dramaturgia sem nenhuma palavra sua ou palavra encomendada sobre o tema. Rios que vivem uma experiência de catástrofe não são um tema, são uma questão. A partir de testemunhos do Rio Xingu sobre a barragem de Belo Monte, a atriz e diretora traz a voz do rio, da mata, de ribeirinhos, indígenas e profissionais que trabalham a favor do rio e dos povos da floresta e instaura na linguagem simbólica, uma polifonia de seres, línguas e imagens que nos levam para a beira do rio e “amazoniza” o mundo por 90 minutos.
De outro modo, em Involuntários da Pátria, a artista Fernanda Silva lê integralmente o texto de uma aula pública escrito pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro. Fernanda é uma involuntária da pátria nos termos definidos pelo autor. Essa operação abre outros significados não alcançáveis numa leitura silenciosa. A palavra ganha vida num corpo em movimento. Nessa performance, a primeira que concebi e dirijo, a atriz-onça espreita, acentua, grita, esfrega o texto na terra e faz reverberar no nosso corpo o que está forjado no seu.
Na abertura de processo de Essa Menina, Roberta Ramos e Rodrigo Dourado descortinam uma vida ou o que se pode reter dela. “O que passou, ao mesmo tempo que está dado não está.” As memórias que retemos são por vezes invenções, contudo nos constitui. Foi preciso um caminho de volta para resgatar uma garota de nove anos que ouvia Lupicínio Rodrigues e que escreveu e apresentou com sua tia um melodrama, Essa menina. Nove anos e um melodrama. Como uma contadora de estórias, ela conta a sua própria numa bela e desconhecida sala de uma antiga faculdade de medicina, nada mais justo. Nessa confluência de tempos-espaços, no futuro aberto, uma mulher dança.
Muito se fala que a arte é um lugar potente de se constituir novas perguntas e novas respostas. Assim, proponho algumas perguntas descolonizantes para nós.
Este tempo pede o que da arte e de cada um de nós?
Qual a nossa contranarrativa?
Como não reiterar nosso ponto de vista na forma como assistimos a espetáculos ou escrevemos uma crítica?
Como ser público menos desejoso de reafirmação e mais suscetível à transformação?
Caminhar sem mapa, acreditando na alteridade, no tempo e na alegria.
Referências
Conversa Selvagem. Ciclo de estudos sobre a vida. Com Ailton Krenak e Emanuel Coccia. Canal Selvagem no YouTube.
Seres-Rios Festival Fluvial. Com Ailton Krenak e Marisol de la Cadena. Canal You Tube. 2021
Série Vagamundos – Um Laboratório Cênico. Com Tiganá Santana, Nêgo Bispo, Leda Maria Martins, Cacique Babau, Luiz Antonio Simas, Sandra Benites, entre outros. Idealizado pela diretora teatral Maria Thaís. Canal CPT-Sesc no You Tube. 2020
Demais citações partem dos meus cadernos de anotações de aulas, como a palestra de Sandra Benites, no Museu de Arte de São Paulo.