Crítica – Tropeço enquanto falo | Incômodo desejo: crítica ao consumo da arte e corpos negros
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Imagens – Inara Resende
Por Mariana Queen Nwabasili
Jornalista e pesquisadora, Doutoranda e Mestra em Meios e Processos Audiovisuais (ECA/USP)
A contagem regressiva feita pelo cronômetro de um celular colocado no chão é imperativo e primeiro comando para demarcar um espaço-tempo específico e delimitado na Galeria Vermelho, em São Paulo, durante a 17ª edição da Mostra de Performance VERBO, realizada entre julho e agosto de 2023. A obra “Tropeço enquanto Falo”, de Lucas Bebiano, artista oriundo de Ibiúna, no interior de São Paulo, tem horário para começar e, sobretudo, tempo calculado para acabar. Não é realidade nem vida propriamente, é trabalho artístico em jogo assumido com essas outras instâncias.
O performer necessita de um marcador simultaneamente material e abstrato – o tempo tecnologicamente cronometrado – para iniciar seu ofício, e nós, como público, aceitamos, por extensão e vontade, tal imperativo para entrar em uma atmosfera diferente de antes do peso temporal ter sido colocado no chão da sala. Um detalhe é fundamental: o peso ali foi instaurado por um corpo-performer negro (de pele clara) prestes a explodir – o cronômetro conta –, sem nunca, de fato, fazê-lo.Vestindo apenas tênis brancos, uma touca do tipo balaclava preta e uma tanga, também preta, minúscula, como aquelas usadas por gogoboys que deixam a bunda quase totalmente à mostra, o performer fita os presentes enquanto, gradativamente, começa a tremer.
Num primeiro momento, o uso da touca especificamente por aquele corpo leva a leituras comuns, remetendo à clandestinidade e ou à contraversão. Porém, outros aprofundamentos são propostos e possíveis de ler, como a percepção mais atenta da escolha por cobrir o rosto, símbolo de individualidades e singularidades humanas, e deixar à mostra o corpo negro (um figurino historicamente criado e, ali, conscientemente assumido). A escolha pela imagem de um corpo negro “sem rosto” pode ser percebida, então, como forma de explicitar generalizações físicas associadas a ele, ao seu histórico valor de uso, inclusive sexualmente falando.
Uma vez que estamos todos comandados, colocados em situação previsível de apreciação artística, o que esperar de um corpo negro masculino, de tônus muscular evidente, seminu posto no centro de uma caixa branca? Como em uma associação livre, flashes rápidos de imagens do curta-metragem “Alma no olho” (Zózimo Bulbul, 1974) vêm à lembrança: a caixa branca constrói, por contraste, o corpo negro, o enquadra, o pressiona, o oprime.
Na Galeria Vermelho, paira no ar o incômodo. É evidente que todos esperam algo desse corpo – e consequentemente de outros iguais ao seu –, nesse contexto controlado/programado e também fora dele. E é esse híbrido de expectativas artísticas, sociais e sexuais que o trabalho aciona, mobiliza.
A expectativa sobre o corpo do performer gera pressão e excitação nele. A expectativa e desejo alimentam a movimentação do artista. Os graduais tremores irradiados por Bebiano propõem como resposta aos olhares externos a explicitação dos efeitos de tal expectativa, remetendo a estados físicos como nervosismo, raiva (acumulada?), tensão, excitação, tesão, convulsão e transe. Fazem lembrar, rapidamente, por exemplo, o “jika” do candomblé: certa forma de gesto corporal realizada pelos orixás quando incorporados. Uma movimentação definida da seguinte forma em breve e singelo texto[1] do mestre de capoeira Jean Pangolin, que associa o “jika” à ginga da capoeira:
“No Candomblé os termos ‘jika’ ou ‘gicá’ são associados a movimentos circulares executados com os ombros, em uma dança sensual, sinuosa e com muito molejo, perspectiva que nos aproxima de parte do sentido atribuído à palavra ‘ginga’ no Brasil, em referência à capacidade de mobilidade de um indivíduo, seu ‘meneio’, sua habilidade em desvencilhar-se de situações difíceis com a corporeidade […] Assim, em capoeira, o sentido da ginga incorpora esta ambiguidade metafórica, ratificando que o referido movimento transita entre a capacidade de mobilidade corporal no jogo, mas também assume a subjetividade nos comportamentos para a superação dos conflitos em sociedade. Tecnicamente, a biomecânica da ginga em capoeira possui uma função fluida, que mescla simultaneamente a capacidade de defesa, ataque e dissimulação de intenções”.
A intensidade dos tremores de Bebiano – possível por uma evidente e admirável técnica corporal – se dá por meio de um contraste interno da própria movimentação proposta. Seu corpo treme de forma rígida, contida. Associada a grunhidos emitidos pelo performer que remetem a dor, prazer, quase-grito/engasgo e ensaios de gargalhadas, tal gestualidade cria como possibilidade de leitura a imagem de um animal prestes a dar o bote em quem o ameaça, sendo o riso pleno uma possibilidade de ataque (gozo gracioso, amigável e feroz).
Bebiano parece prestes a atacar todos que o observam como objeto de uma obra artística, sendo sintomaticamente preto na sala branca que reflete a cor de pele da esmagadora maioria dos presentes. Ele vai atacar. Não vai. O que resta é gingar para, frente à própria sensação de ser consumido, poder jogar com a preservação da individualidade garantida pela touca-máscara, e, assim, apenas pelo olhar, poder consumir quem o consome, objetificar quem o objetifica.
Em verdade, a própria duração da iminência de um ataque pelo performer é sentida como provocação a ser enfrentada. Uma ou duas pessoas saem da sala antes de o cronômetro apitar o fim do jogo. Por vezes, Bebiano segue essas pessoas emitindo grunhidos de chateação enquanto seu corpo, já brilhando pelo suor do trabalho, fica ainda mais agitado, excitado. Depois, ele acalma, recua. Volta a encarar de forma fisicamente muito próxima um ou outro espectador sedento por sua potência.
O artista reage às reações de quem o observa, abrindo-se, assim, ao imponderável como composição intrínseca a toda performance. Ora Bebiano bate forte e repetidamente o pé no chão ao perceber uma mulher quase dormindo em meio ao público. Ora provoca e banca, por minutos, um flerte com um espectador marrento que demonstra não se intimidar com o desejo refletido proposto pelo artista aos presentes, que são, por vezes, vacilantes e desistentes frente ao proposital incômodo.
Quando os grunhidos animalescos se misturam com possibilidades de risadas ao longo da performance, o próprio corpo ali observado pelo público parece zombar do desejo a ele dirigido e também da possibilidade de seu horror escancarado pela obra. Bebiano instaura, torna opaco e simultaneamente ridiculariza o incômodo desejo.
O cronômetro apita. O tempo da performance-trabalho-excitação mútua acaba abruptamente. Qualquer relação com diferentes mercados de trabalho, inclusive os mais clandestinos, não parece ser mera coincidência. Ao invés de atenuar o corte no tempo-espaço, a saída do performer de cena de forma objetiva e protocolar acentua o estranhamento e parece nos dizer: o trabalho (artístico e sensualmente) consumido acabou, podem ir embora. Comandados, obedecemos, podendo seguir para novos e socialmente diferentes corpos-trabalhos em meio a um festival de artes.
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Mariana Queen Nwabasili é jornalista e pesquisadora, doutoranda e mestra em Meios e Processos Audiovisuais pela Escola de Comunicações e Artes da USP. Mestra em Curadoria Cinematográfica pela Elías Querejeta Zine Eskola, na Espanha, com bolsa do Projeto Paradiso. Curadora de curtas-metragens da Mostra de Cinema de Tiradentes 2023 e 2024 e do Cabíria Festival Audiovisual 2022. Participou da 10ª edição do Critics Academy do Festival de Cinema de Locarno, em 2021. Pesquisa autorias, representações e recepções cinematográficas vinculadas a raça, gênero, classe, colonialismo e (de)colonialidade.
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Notas de Rodapé
[1] Texto “Ginga…”, do Mestre Jean Pangolin, disponível AQUI