Crítica – Tu amarás | Feridas abertas

Imagem – Marcuse Xaverius
Por Lorenna Rocha
Licencianda em História (UFPE) e Crítica Cultural
Confrontar-se com obras que nos desestabilizam, nos deslocam e nos fazem desprender horas para compreender quais as motivações dessas incertezas diante daquilo que se viu é reflexo de uma angústia que move o ofício da crítica. Saí do espetáculo Tu Amarás, do grupo chileno Bonobo, contorcida, sem entender muito bem o que era a afetação produzida pelo espetáculo e o que havia de incômodo em mim devido a suas escolhas discursivas, procedimentais ou estéticas. Entre conversas pós-sessão e inúmeras mensagens e áudios trocados via Whatsapp com amigos, esse texto é ainda um contínuo desdobramento de ideias que, menos do que traçar análises finais sobre a obra, busca se relacionar com algumas dessas perturbações que permearam minha experiência.
A comédia dramática construída pelo Bonobo acontece numa situação bem específica. Um grupo de médicos chilenos estão se preparando para uma conferência internacional que discutirá sobre o preconceito contra os Amenitas na medicina, população extraterrestre que chegara recentemente à Terra. A trama se passa majoritariamente nos dias anteriores ao evento e, como se constrói visualmente no próprio cenário da peça, o que se vê no palco é um campo de batalha. As mesas longas cobertas de panos brancos estão agrupadas de modo a construir um ringue. A luz que se encontra em cima desse espaço cênico é um retângulo que também produz a imagem desse lugar de competição, o qual dialoga diretamente com o clima que se desenrola através dos impasses entre os personagens.
A premissa do encontro entre esses profissionais é de ordem, para eles, quase benevolente. Com o objetivo de discutir uma medicina mais democrática, pressionados invisivelmente por etiquetas do que vem a ser politicamente correto, eles buscam dar dignidade aos Amenitas. Os discursos cheios de floreios dos personagens escondem e, concomitantemente, escancaram condutas de corpos hegemônicos, de práticas colonialistas. É nesse ambiente de trabalho que os personagens acabam por abrir suas próprias feridas, esbarrando nos preconceitos praticados e promovidos por eles mesmos, que veem os Amenitas como animais, irracionais e subalternos. Os diálogos estruturados pela dramaturgia apontam para o processo de diferenciação de grupos sociais que promovem a hierarquização e exclusão daqueles que são lidos e tratados como não sujeitos.
Esse ódio à alteridade, ou seja, a tudo aquilo que é diferente, tão latente na sociedade brasileira (e globalmente) nos últimos anos, como bem foi discutido na mesa Políticas públicas para a cultura: confrontações ideológicas, é exposto por meio de uma dramaturgia cheia de ondulações, que flutua entre diferentes ritmos de estados emocionais, de um riso ingênuo até um tom demasiadamente dramático, para desvelar as violências sustentadas em discursos que muitas vezes se escondem, como se diz o ditado, em pele de cordeiro.
O espetáculo ocorrer nesse ambiente específico da produção da ciência, ligada à área da saúde, retoma também a um quadro histórico em que há um processo de patologização e de entrelaçamento entre aquilo que é de ordem biológica e de ordem social. As teorias raciais, por exemplo, é produto de sociedades que exercem a biopolítica como estratégia de dominação e de manutenção de estruturas hegemônicas, que partem da distinção para legitimar práticas imperialistas e colonialistas.
No entanto, e aqui talvez esteja um das minhas primeiras indigestões com o espetáculo, é que isso se constrói de forma tão focalizada na experiência individual daqueles personagens, que o argumento relacionado a questões de ordem estrutural parece se enfraquecer. A repetição contida nos diálogos presentes no enredo se, por um lado, demonstra uma busca do próprio grupo pela temática, por outro lado cai numa espécie de ingenuidade da forma em que se aborda o assunto. E isso se une a essa possível dúvida da forma que se comunica sobre o que está no plano individual e aquilo que é do plano estrutural, coletivo e histórico.
Uma metáfora muito usada nesse texto é o ato de cortar-se, de revirar-se, de descobrir-se, de abrir-se por dentro, como um ato de amor que se traduz numa investigação de nossas próprias fragilidades e de facetas que, por vezes, queremos ignorar e esquecer. Segundo o enredo, isso é uma forma de conseguir olhar e humanizar o outro. Mas, nesse movimento, recaí uma dúvida sobre o quão é possível estabelecer uma discussão sobre o Outro, exclusivamente na ausência dele. E aqui talvez esteja um segundo mal-estar produzido pela obra em mim, uma vez que o discurso hegemônico é exposto por corpos não minoritários, no contexto latino-americano, que apontam para a Outridade, mesmo compreendendo que enquanto latino-americanos estejam como o Outro numa ordem global, de uma forma que nos causa certa incerteza, produzida por uma possível ambiguidade que escorre como uma certa mea culpa impressa nas discussões da dramaturgia no que se refere aos grupos minoritários que estão em destaque nos diálogos, como as populações indígenas, negras e transsexuais.
Minhas incertezas não foram sanadas, minhas feridas continuam abertas.