Crítica – Ubuntu: uma linda aventura na floresta afrobrasilândia | O poder da palavra
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Imagem – Divulgação
Por Lorenna Rocha
Licencianda em História (UFPE), pesquisadora e crítica cultural
O espetáculo Ubuntu: uma linda aventura na floresta afrobrasilândia, livremente inspirado no livro Seis pequenos contos africanos, de Raul Lody, inicia sua jornada em direção às narrativas sobre a criação do mundo a partir das cosmologias africanas e da filosofia ubuntu com um epílogo marcadamente musical e rítmico, onde destacam-se as aproximações entre o continente africano e o território brasileiro. Apostando nas relações culturais entre essas duas territorialidades, há um aparente desejo de investigação e positivação das contribuições africanas para as culturas e geografias do Brasil.
Um dos primeiros sinais daquele gesto de ligação está assinalado no termo que compõe o título do espetáculo – afrobrasilândia – e em sua cenografia. Assim que avistamos o palco no arquivo audiovisual de Ubuntu, nos deparamos ao fundo com um grande pano branco demarcado com os contornos dos limites territoriais de África e do Brasil. Colocá-los lado-a-lado remonta uma certa suspensão do tempo, onde as conexões entre esses dois espaços se desenrolam distantes das conjunturas e eventos históricos violentos que impuseram tal encontro.
Chama-se África de Mãe e Brasil de Pai. Dentro desse campo simbólico, considerando os múltiplos universos que formam seus principais públicos (infâncias e juventudes), me pergunto, com certa desconfiança, quais as possíveis associações atreladas a essa metáfora. Esse sentimento, inclusive, é algo que compartilho durante toda a peça. Escolho, nesse texto, selecionar trechos de sua dramaturgia para elencar tópicos que me permitam expor a relação dúbia que estabeleci com Ubuntu.
Eu conto! Tu contas! Ele conta! ou Eu queria me sentir… representada…
Para adentrar aos contos que envolvem os orixás e sua relação com a manutenção da ordem e desordem do mundo, a dramaturgia do espetáculo se estrutura em duas tramas. A primeira apresenta ao público a Floresta Afrobrasilândia e suas personagens, flores que estão ansiosas e contentes com a possibilidade de contemplarem o arco-íris. Já na segunda, a chegada de presenças-pessoas-espectros de África (nomeadas por cores, fazendo uma alusão ao arco-íris) dá continuidade à história, através de um enigma enviado por Oxumaré, a ser decifrado para contornar uma situação sofrida por duas flores-personagens.
A circunstância que envolve as flores Preta Ilê (Clau Barros) e Preta Zambi (Brunna Martins) é desenvolvida em mais de trinta minutos de espetáculo, até que se adentre, de fato, nos contos africanos. As flores-irmãs sofrem por não verem suas cores no arco-íris. Onde está a minha cor… No arco colorido… A sensação de não-identificação e não-pertencimento é reforçada pela flor vermelha (André Lourenço): sendo a mais bela e bem cuidada, ela é o signo da promoção da exclusão justificada pelos seus atributos físicos, enquanto as outras duas (Preta Ilê e Preta Zambi) representam aquelas que sofrem com tal ação.
Fazendo alusão aos episódios de racismo cotidiano, a primeira parte da trama é carregada de performances estereotipadas (sobretudo, a maneira como a flor vermelha busca provocar o mal estar entre todas as flores), infantilizadas (com a utilização de emissão vocal supostamente mais compreensível ao público infanto-juvenil) e promovidas por meio de brigas desconexas (alimentadas por discursos recorrentes nas redes sociais, com expressões como mimimi), que, ao invés de ampliarem as possibilidades de aproximação do público ao espetáculo e às cosmologias africanas, dá efeito contrário e empobrecem a dramaturgia de Ubuntu.
Ao mesmo tempo, é fácil ouvir dos atores e atrizes expressões “adultas” (palavras como representada, significativa, contemplada foram recorrentes na apresentação), as quais fazem parte de um universo de conceituações um tanto específico e que pouco emergem poeticamente de forma consistente. Tal discursividade dificulta, até mesmo, a compreensão de parte dos conflitos desenvolvidos na trama. Se amontoando de maneira caótica, os diálogos produzem tantos atritos que se torna difícil lembrar sobre o que é o espetáculo ou onde poderíamos localizar suas personagens em certa parte da estória. Devido à ausência de retomada ao primeiro núcleo narrativo da dramaturgia, o conjunto de ações de quase metade do espetáculo torna-se consideralvemente volúvel.
O fato de criarem uma situação adversa (a de exclusão) para justificar, em certa medida, o caminho até o universo dos contos africanos, cria uma co-dependência em relação à narrativa da produção de diferença como aquilo que ocasiona e delimita o ponto de virada do espetáculo. O que fica circunscrito é que optou-se por operar dentro de cenários supostamente fáceis de serem reconhecidos pelo público (a de racismo, desavenças, provocações excessivamente cômicas e caricatas), para, enfim, chegar ao universo epistemológico e cosmológico africano. No entanto, essa escolha deixa a experiência cansativa e bastante confusa, desvalorizando o que há de mais rico em suas elaborações criativas.
Aqui, os contos brotam da terra…
Há um visível estímulo pela conexão entre os seres humanos e os mais-que-humanos na narrativa do espetáculo Ubuntu. Os elementos da natureza ganham destaque, sendo a terra o primeiro de todos eles. Utilizando pilões como objetos cênicos, para além da musicalidade conferida devido ao modo em que atrizes e atores interagem com os mesmos, eles também mobilizam simbolicamente a preparação do espaço cênico, do encantamento da massa terrosa que se tornaria o palco, criando uma superfície outra para a sustentação de tais histórias.
Com o decorrer da peça, o uso dos pilões ganha várias formas, significações e representações. Eles são instrumentos musicais, tornam-se arquitetura de algum lugar… Em outro momento, viram bancos e acessório para uma dança. Essa multifuncionalidade aponta para uma elaboração poética: a interligação das coisas que existem no mundo e as suas transformações correntes, o que muito se relaciona com as cosmologias que habitam o palco.
Como é bonito, como é bonito, cheio de cores, cheio de cores, viva o arco-íris…
Oxumaré é o orixá que rege Ubuntu. Na primeira parte do espetáculo, ele aparece como fenômeno da natureza (o arco-íris) e é chamado por Preta Zambi num momento em que ela e sua irmã não estão se sentindo muito bem, após terem sido excluídas pelas outras flores. Manifestado como arco-íris e cobra, a escolha de materializar Oxumaré em seus dois estados, num mesmo objeto cênico, dialoga com a história do próprio orixá, o que confere camadas simbólicas singulares ao espetáculo.
Após a chamada de Preta Zambi, Oxumaré envia três presenças-pessoas-espectros de África (que são representadas pelas cores do arco-íris, como se houvessem saído de lá ou formassem o próprio fenômeno) para auxiliá-las no momento de fragilidade. Nesse momento, as duas flores-personagens, juntas aos enviados por Oxumaré, percorrem toda a floresta, em busca dos seres encantados que fazem parte dessa jornada: Oxóssi, Ogum, Ibejis, Quianda e Quicimbe. A cada conto, os símbolos deles vão sendo revelados e suas cores vão tomando conta do palco, assim como suas histórias. Vemos, em um momento, a espada de Ogum. No outro, a flecha de Oxóssi (ofá). No próximo, as caldas das duas sereias, suas pérolas e seu leque espelhado. Os atores e atrizes também usam vestimentas dos orixás representando-os.
A água, o alimento, o mar e as árvores vão sendo revelados e interligados às funções dos orixás no mundo, se entrecruzando na narrativa que é movida pelo enigma de Oxumaré. Com muito vislumbre, Preta Ilê e Preta Zambi são convidadas a sentarem ao chão para conhecer a história da criação do universo, encontram todos esses seres encantados, aprendem lições sobre o mundo e se tornam cada vez mais unidas e fortes no decorrer dessa trajetória. O recurso cômico é ativado cenicamente, numa formulação que contrasta com as escolhas de encenação e dramatúrgicas da primeira parte do espetáculo. As personagens se desencontram, ficam com ar de dúvida ou se assustam, mas de forma bem mais descontraída e muito menos caricata.
Aquele povo, aquela paisagem, aqueles corpos dançantes envolvidos pelo som da pele preta, que bate fervorosamente a pele do tambor.
Ávidos pela reconexão com suas raízes africanas, a ancestralidade e o universo dos orixás, os contos africanos não é o único caminho para que se estabeleça a união entre Brasil-África: o espetáculo também é preenchido com um imaginário bastante específico sobre as africanidades. Se, por um lado, a peça infanto-juvenil dá um giro ao buscar a filosofia Ubuntu, por outro, está impregnado de certos discursos que associam diretamente os povos africanos a seres dançantes e ao que comumente se chama por ‘não-civilizado’.
Palavras como tribo ou frases como essa acima, que nomeia o presente tópico do texto, são utilizadas na peça. Além de corroborarem com alguns estereótipos, a trama reforça certa homogeneidade dentro do continente africano, o que poderia ser contornado dentro da dramaturgia. Se, por exemplo, o espetáculo utilizasse informações (ainda que breves) sobre as comunidades ou povos africanos, deixando um pouco mais evidente suas singularidades para o público, seria mais difícil cair no senso comum.
Operando ainda dentro dessa lógica, a essencialização da raça torna-se terreno fértil para o desenvolvimento da história de Ubuntu. Há um desejo inquestionável de valorização/positivação da negritude que, no entanto, reforça a ideia de pertencimento racial automático das pessoas negras devido à cor da pele e aos seus traços negróides. Essa escolha, que envolve concepções políticas e ideológicas, passa longe das diferenças que afastam e unem as experiências africanas e afro-diaspóricas. Enunciar que essa diversidade existe (como faz a personagem de Brunna Martins quando diz: ah, então quer dizer que vocês são de lugares diferentes, né?) não é suficiente para materializá-la dentro da cena. Então, como elaborá-las para seu público?
O poder da palavra
Nas tradições africanas, a contação de história é um dos principais modos de transmissão e preservação das culturas. A oralidade alimenta memórias, espalha sabedorias e fortalece o sentimento de comunidade. Nas formas de enunciação ou no canto, a palavra é possibilidade de vida: move os tempos, os imaginários, os costumes e as formas de encarar o mundo.
Ubuntu – uma linda aventura na afrobrasilândia tem um pouco disso em si, sobretudo nas canções e ritmos que compõem o espetáculo, de trilha sonora autoral executada por Hélio Machado e Dinho Dumonte. Sem tentar dar grandes explicações ou lições de moral, ao mesmo tempo que informa e revela sutilmente o universo dos orixás, a trama vai se desenrolando com uma inventividade muito simples, distante de didatismos mirabolantes, daqueles que são vistos comumente em peças para infâncias e juventudes.
No entanto, perde o que poderia ter de mais vigoroso: a fluidez da contação, o poder da palavra, a riqueza de sua plurissignificação. Sufocada em suas potencialidades fabulatórias, em sua capacidade de recriação imagética, sensorial e visual, essa força se perde significativamente com parte dos diálogos de Ubuntu e pela própria estrutura dramatúrgica da peça. Objetos cênicos e roupas coloridas não deveriam ser a terra que sustenta uma narrativa. Ubuntu tem potencial expressivo, mas, devido ao seu excesso de trama e de informação, o espetáculo se torna bastante frágil, além de cansativo por sua longa extensão temporal quase injustificada.
Esse texto foi produzido durante a cobertura crítica do Festival Luz Negra 2021 (Grupo O Poste), realizado na modalidade on-line com incentivo da Lei Aldir Blanc – Pernambuco.