Crítica – Vivência Artístico Pedagógica | Tempo e Memória em poesia cênica
Imagem – Jonas Araújo
Por Bruno Siqueira
Doutor em Letras (UFPE) e Professor da Licenciatura em Teatro (UFPE)
O pato não era apenas um pato. O diferencial daquele brinquedo era que o pato estava com o bico aberto. Foi com esse detalhe que uma das atrizes do Grupo de Teatro Bela Idade se identificou, na apresentação da Vivência Artístico Pedagógica, dentro da programação do Usina Teatral 2018, no SESC Santa Rita/PE. Trata-se de um elenco formado majoritariamente por pessoas da terceira idade, numa proposta de teatro documental.
Em meio a uma série de objetos à mostra, como numa vitrine, a atriz cuidadosamente pega em suas mãos um pato de borracha. Um simples e banal pato de borracha, que provavelmente remetia à infância daquela atriz, alcançaa categoria de signo quando se transforma em objeto mediador para um passado patriarcal em que o silêncio era impostoàs mulheres. Por outro lado, a foto de sua neta funcionava como contraponto a esse passado, parecendo anunciar novos tempos nos quais talvez não seja mais necessário à mulher estar no palco para poder falar e ser ouvida.
Essa foi apenas uma narrativa dentre outras que as atrizes e os atores teceram junto ao público. Foram apresentados retalhos de suas memórias, plenos de afetos, de sentimentos, de significados existenciais. O espetáculo nos permitiu ver que não somos apenas constituídos das memórias do que vivemos e vivenciamos: também somos capazes de construir nossas próprias memórias por meio da imaginação e da dimensão estética.
Os documentos vivos – fotografias, carta, recorte de jornal, objetos variados – serviram de mote para que Jailton Júnior, com a orientação pedagógica de Emanuella de Jesus, conduzisse o processo de criação de uma cena sensível na sua dimensão humana e existencial. Os condutores pedagógicos souberam valorizar poeticamente esses objetos na cena. Se, do ponto de vista da poiésis, faltou talvez um enlace mais consistente na tessitura dessas várias narrativas, a vivência teve seu ponto alto na dramaturgia convivial, tal como propõe o pensamento do crítico argentino Jorge Dubatti: o teatro como encontro entre pessoas em escala humana, numa encruzilhada espaço-temporal compartilhada. O público saiu visivelmente afetado do espaço cênico.