Das dores e dos prazeres de ser TRAVESTCHY: melancolia e gaiatice no espetáculo “BR-Trans”
Por Rodrigo Carvalho Marques Dourado
Professor da Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Pernambuco. Doutor em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia.
I
Meninos, eu vi. Vi Silvero Pereira fazendo “Uma flor de dama” – baseado no conto “Dama da noite” (Caio F. Abreu) – no Teatro Armazém, ali em 2006, na programação do IX Festival Recife do Teatro Nacional. Silvero tem dito, sempre que volta ao Recife, que aquela apresentação ficou marcada no seu repertório de traumas, como uma espécie de primeira e má impressão que teria deixado na cidade, como se aquele ator que primeiro conhecemos não fosse o mesmo de hoje. De fato, a pouca memória que me resta daquela noite me lembra que a montagem parecia ainda imatura, com muitas potências a explorar, mas já carregava uma crueza no trato com o universo travesti que chamava atenção.
Silvero retorna em 2014 com sua “Flor de dama”, a que seguiu rodando na roda, para o Teatro Capiba. Meninos, eu vi. Era outra montagem: madura, segura, ro-da-da. Silvero parecia mais senhor dos seus instrumentos de ator, a cena tecia discursos (formais e temáticos) com grande consciência e acabamento. Ao final da apresentação, o performer se dizia realizado, esta pedra no sapato chamada Recife, finalmente, deixava de incomodar.
OBS: Guarde esta imagem do trauma que faz avançar, da dor que faz criar, ela será útil mais à frente.
II
Ontem, 11 de abril de 2015, Silvero apresentou seu novo espetáculo, “Br-Trans”, no Teatro Hermilo Borba Filho, aqui no Recife. A montagem resultou de pesquisa sobre a vida de travestis do Ceará e do Rio Grande do Sul, dois extremos do País, numa tentativa de tecer uma etnografia afetiva desse universo no Brasil, ecoando algo do “BR-3” – espetáculo do Teatro da Vertigem -, no esforço por entender esta Nação tão cheia de disparidades, só que agora do ponto de vista das sexualidades marginais (o projeto está devidamente registrado no site).
A pesquisa empreendida por Silvero é muito consequente e passa por sua experiência com o Coletivo cearense As Travestidas, que vem se dedicando à investigação sobre o universo trans* e sobre as potências de uma cena transformista. Recuperando, assim, uma longa história performativa-teatral e explorando seus significados artísticos, sociais e políticos no contemporâneo. As travestidas surgem com “Uma flor de dama”, criam em 2008 o “Cabaré da dama” e, a partir de 2010, iniciam o flerte com procedimentos etno-documentais, com as montagens “Engenharia erótica – Fábrica de travestis” e “BR-Trans”. Agora, preparam o espetáculo “Quem tem medo de travesti!”, inspirado no clássico da antropologia das sexualidades, “Travesti”, de Don Kulick, um relato sobre a vida de travestis no Brasil.
Isso faz toda a diferença no trabalho de Silvero, a experiência de quem esteve lá, de quem viu e viveu o mundo das “travas”. Silvero é mais que performer, é testemunha, é mediador entre o mundo da cena e o mundo lá fora. Ele nos dá notícia, informa-nos, quase como um procedimento científico de observação, relato e análise. Mas a observação de Silvero é participante, ele se mistura com o objeto que analisa, ama-o, encobre-o de afeto e carinho, tatuando-o no próprio corpo.
III
“BR-Trans” inicia com o testemunho do ator sobre sua diáspora, do sertão do Ceará para a capital Fortaleza, e sobre o convívio com as travestis na nova cidade, o medo e o fascínio que lhe causavam. De saída, a violência que marca a experiência de vida trans* ganha primeiro plano na cena, através dos relatos do que Silvero viu e ouviu. Porque o espetáculo é também denúncia, documento sobre uma vivência invisibilizada num País que insiste em não enxergar a homofobia e o ódio contra os que se desviam da norma sexual.
Mas, logo, o humor entra em cena – atenção ao procedimento de articulação cênica permanente entre dor e prazer – e Silvero nos conta que, desde “Uma flor de dama”, nasceu seu alter ego Gisele Almodóvar – filha do cineasta Pedro Almodóvar e da modelo Gisele Bündchen -, personagem que, hoje, pouco ou nada se distingue da persona masculina Silvero. Gisele se comunica com a plateia em espanhol, contando um pouco sobre sua vida e jogando com sua identidade paródica (tanto do gênero como da nacionalidade), afirmando, entre outras coisas: “Uma mulher é mais autêntica quanto mais se parece com o que sonha para si mesma”.
O poder da travesti em sair da realidade, em fantasiar outras personas, excita e inquieta. Melhor dito, a figura da travesti põe em xeque o que conhecemos por realidade, ao contestar a verdade biológica dos nossos corpos e dos gêneros que nos foram socialmente atribuídos a partir da interpretação da nossa anatomia. Daí, o medo e o fascínio que causam. Mas os deslocamentos identitários das travestis não dizem respeito somente ao “sexo”, eles têm a ver com fantasias de raça, classe, nacionalidade e outros marcadores, como bem nos mostra a Gisele Almodóvar, primeira guia de nossa viagem pelo Brasil que, no entanto, fala espanhol e parece saída de uma película de seu pai postiço.
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“Somos todos travestis”, me dizia um jovem pesquisador num congresso em 20014. “Não somos, não”, respondi eu, pesquisador (cis)gênero que não vive as dores da abjeção e do preconceito que matam travestis diariamente. A figura da travesti foi colonizada pelos saberes acadêmicos e pelos fazeres artísticos, como imagem potente dos trânsitos identitários contemporâneos, mas entre as imagens de uma fronteira simbólica e a experiência real de quem transforma seu corpo para assumir um gênero que não lhe foi atribuído no nascimento, há uma grande diferença. Sim, as teorias contemporâneas avançaram no sentido de mostrar que nossas identidades não passam de um conjunto de máscaras e, nesse sentido, é possível falar em camadas de travestimento nos nossos “eus” cotidianos. Mas a travesti, essa que Silvero leva para a cena, não é só máscara, é sujeito. Ela não é teatral apenas, é indivíduo. E por isso, há uma enorme distância entre os artistas que se apropriam do travestimento como sinônimo de mascarada e a pesquisa empreendida por Silvero. Daí também, minha pronta resposta naquela ocasião.
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No espetáculo, aparece uma clara colagem entre a trajetória pessoal de Silvero: garoto que sai do ambiente empobrecido de origem para tentar uma carreira de artista; e a vida das travestis que ele leva para a cena. Estão em diáspora, buscam sair de suas cotidianidades. Então, o espetáculo equilibra-se o tempo todo entre essa realidade crua, da violência, da pobreza, da dor, do medo em contraponto às projeções de humor, glamour, poesia e performatividade que marcam a vivência travesti. A realidade está lá, mas a poesia permite escapar dela. A realidade está lá, mas ela não diz tudo sobre a identidade do “eu”. A realidade está lá, mas ela não é uma prisão.
A fala de Giselle sobre autenticidade e sonho nos remete ao que Judith Butler, maior filósofa contemporânea do campo de gênero e sexualidades, levanta no livro Undoing Gender (2004, p. 28, 29): “a fantasia é parte da articulação do possível, move-nos para além do real, para um reino de possibilidades. (Ela) não é o oposto da realidade, é o que a realidade esconde”[1]. E talvez seja mesmo esse poder da fantasia em indagar o real o que venha causando tamanha onda reacionária no Brasil, País que sempre teve no carnaval seu momento de escape para todo tipo de fantasia e que agora vê as fantasias de gênero e sexualidade ultrapassarem as fronteiras de tempo/espaço da festa para ganharem concretude no cotidiano. A travesti aparece na peça não como uma mascarada artístico-carnavalesca, mas sobretudo como sujeito que busca um lugar no tecido social.
IV
A encenação, assinada por Jezebel de Carli, faz de Silvero o operador da máquina cênica. Num espaço-instalação, que ele divide com um músico, o peformer manipula objetos, ilumina, canta, salta, sua, faz acontecer. O procedimento não é novo e lembra muito o Luis Antonio-Gabriela (BR), para ficar num exemplo recente. Mas aqui ele ganha novos sentidos, pois como etnógrafo-performer, Silvero é o responsável pela colagem daqueles fragmentos de memória pessoal e de memória alheia; como performer, ele vive a pesquisa, afasta-se e aproxima-se dos objetos, mistura-se a eles. Está inteiro, pleno, sua energia contamina a plateia. A cena é como que uma extensão do trabalho de campo, intenso, incansável.
A montagem desdobra-se em achados poéticos para nos oferecer as inúmeras histórias colhidas-vividas durante a pesquisa (realizada também em presídios): da crueza do noticiário que espetaculariza as mortes diárias de travestis; ao mundo de conto de fadas de Marcele (que como um abacaxi aprendeu na “pista” a ser amarga e doce); passando pela Bruna-Amélia (que se esforça para ser a dona de casa ideal para o marido); pelos conflitos da infância trans* (condensados no bullying escolar e no dilema sobre o uso de banheiros); chegando à narrativa daquela que sustentava um “boy” em troca do mínimo afeto. O que se tem é uma miríade de imagens TRAVESTCHYS, que se TRANS-formam e passam pelo dínamo que é o corpo de Silvero, ao ponto de não mais sabemos quem é ele e quem são as personagens.
V
Para além dos achados poéticos e das narrativas sobre as quais se constrói a dramaturgia, a maneira como o espetáculo lida com os afetos foi a que mais me chamou atenção. A cena oscila o tempo todo entre o prazer e a raiva, o humor e o ódio, a alegria e a dor, o medo e a ironia, a violência e a sátira. Isso me fez pensar em dois sentimentos-chave que têm sido utilizados para compreender as experiências sexuais desviantes: melancolia e gaiatice, com claro privilégio para o primeiro.
Tomado de empréstimo a Freud, o conceito de melancolia é utilizado pelos estudos de sexualidades contemporâneos para falar de um sentimento de perda que marca especialmente a comunidade gay (por conta da Aids, mas também de toda a violência à qual os desviantes sexuais estão submetidos) e é produtivo, inclusive como elemento agregador da comunidade. Porque diferente do luto (ainda de acordo com Freud), que aos poucos se liberta do objeto perdido, na melancolia o sujeito não pode e não consegue escapar da perda, precisa dela.
Alguns pesquisadores, como José Esteban Muñoz no livro Desidentifications (1999), não enxergam a melancolia como algo negativo, mas como uma estrutura de pensamento ambivalente, que trabalha para reter o objeto perdido e é parte integrante da afirmação de uma identidade. Se a “história gay pode ser lida como um livro-funeral”, conforme alerta Muñoz, a melancolia tem sido vista como mais importante material na construção de uma história e de uma memória coletivas, a fim de iluminar o presente.
Outros pesquisadores, porém, enxergam a melancolia como um afeto negativo e preferem destacar o aspecto lúdico, jocoso, irônico, camp e satírico que também marca e agrega a comunidade de desviantes, chamando-o de uma gaiatice (gaiety) anárquica, que possui grande valor político. Penso, imediatamente no trabalho “Ópera”, do Coletivo Angu (PE), que manipula essa veia “gay-ata” para tratar de vivências desviantes[2]. Ou como afirma Sara Warner em Acts of gaiety: LGBT performance and the politics of pleasure (2013, p. xiii):
“As emoções dolorosas, e o desejo de evitá-las ou erradicá-las, desempenham um papel importante na criação de mundos políticos. As feridas servem como elementos constitutivos da identidade de qualquer grupo desassistido. É a experiência do passado traumático que dá sentido ao presente e fornece motivação para criar um futuro melhor. Isso é especialmente verdade para o Feminismo e a Teoria Queer, dois projetos utópicos que são constituídos por potentes histórias de violência, estigma e sofrimento. Um efeito do foco dos estudos de sexo e gênero na perda, no abuso e na abjeção, tem sido o privilégio aos afetos negativos, emoções que nos fazem sentir mal (a exemplo da vergonha, do desespero e da alienação), mas são politicamente eficazes, à medida que levam os grupos desassistidos a reconhecer, contestar e alterar as circunstâncias culturais, legais e sociais que lhes causam dor. Este estudo (o livro em questão) redireciona nossa atenção a outros aspectos das histórias de vida queer, ao documentar e afirmar o papel do prazer, do humor, da alegria e da frivolidade em moldar as maneiras que as minorias sexuais vêm a se compreender e a compreender os papéis para os quais foram convocadas”.
Essa oscilação entre a dor e o prazer, a melancolia e a gaiatice é a chave do trabalho de Silvero. Os momentos em que convoca a realidade mais crua do mundo travesti são quase sempre amortecidos pela memória do cabaré, pela ironia gaiata tão marcante na performance transformista do clube noturno. Essa dramaturgia dos afetos tem sido também explorada pela televisão, só que a partir de uma lógica predatória, segundo a qual travestis e transformistas ou produzem imagens de sangue ou de humor. Mas Silvero sabe fazer diferença entre rir “da” travesti (o que faz a TV) e rir “com” a travesti, utilizando o mais sagaz deste legado humorístico.
No programa de intenções do projeto “BR-Trans”, o performer afirma buscar o fortalecimento da “arte transformista como gênero teatral (artes cênicas)”, almejando o desenvolvimento de “métodos provocativos para o ator-transformista” e a utilização da “cena marginal transformista para o circuito teatral, inclusive na formação do ator”. Arrisco dizer que é esta tensão fundamental entre a melancolia e a gaiatice a que alimenta seu trabalho de ator e anima seu corpo, nos estados emocionais antagônicos, nas explosões/retrações de tônus muscular, enfim, na composição de uma contradição/conflito fundante que habita seu ator e traduz poeticamente sua pesquisa. É, portanto, aí que está seu achado metodológico.
Enfim, o Silvero que alimentou por anos o trauma de uma difícil introdução nos palcos pernambucanos, fez de sua dor um importante instrumento de recriação e superação e nos provou que quando dubla Maria Bethânia ou Ellis Regina, pode, sim, sentir-se um Carlitos.
REFERÊNCIAS
BUTLER, Judith. Undoing Gender. Londres e NY: Routledge, 2004.
MUÑOZ, José Esteban. Disidentifications: queers of color and the performance of politics. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1999.
WARNER, Sara. Acts of gaiety: LGBT performance and the politics of pleasure. The University Of Michigan Press: 2013.
[1] Todas as traduções foram feitas pelo autor.
[2] Ver DOURADO, Rodrigo Carvalho M. Beautiful Gay(atices). Revista Ensaio Geral, v. 03, p. 01-10, 2011.