Filipe & Marcelo – ‘Até que a vida nos aproxime do que nosso corpo pode’ | Casamento, performatividade e agência
Imagem – Arthur Reis
Por Roberta Ramos
Profª Drª da Licenciatura em Dança (UFPE) e do Programa de Pós-graduação em Artes Visuais (UFPE/UFPB)
Sim, sim, sim, com certeza!
(Marcelo Sena)
Em meio a tantas performances recentemente incompreendidas, violentadas e ameaçadas de interdição, o ato nupcial de Filipe Marcena & Marcelo Sena, neste último 30 de setembro, no Recife, nos suspendeu, ainda que provisoriamente, de um mar revolto de ódios, ignorâncias, fascismos e outras violências (contra a arte, os artistas, as escolhas, a diversidade) e nos agraciou com a cerimônia e festa de casamento mais poética, política e divertida da qual pude participar até hoje.
Falar deste casório, longe de pretender ser uma cobertura à la coluna social com ares intelectuais, é um convite a pensarmos como sua performatividade, que extrapola e muito a declaração “aceito” (verbo considerado performativo por já fazer o que declara fazer no próprio ato de enunciar) vai na contracorrente da forma nefasta como as relações entre performance e cotidiano têm sido usadas por grupos manifestantes de valores e interesses reacionários em nosso país nos últimos meses.
O acontecimento foi uma performance em amplos sentidos. Em primeiro lugar, certamente, como um ritual, o casamento encontra-se entre as situações que o teórico da performance Richard Schechner indica como possibilidades de ocorrência de performance, uma vez que o autor revela que “a performance pode ser vista tanto no cotidiano quanto na arte”. Isso não significa que o teórico defenda que “tudo é performance, mas sim que tudo pode ser visto como se fosse performance” (COSTA, 2015, p. 43). Segundo ele, “[…] qualquer comportamento, evento, ação ou coisa pode ser estudado como se fosse performance e analisado em termos de ação, comportamento, exibição” (SCHECHNER, 2003, p.39). Já seria nesse sentido performance, mas sua intencionalidade de propor inovações neste ritual fez com que este casório apresentasse um ato de fala que se insurge frente aos tempos sombrios que estamos vivendo.
Foi performance, também, no sentido em que a trata a filósofa americana Judith Butler, normalmente discutindo o conceito “dentro do contexto das relações binárias entre os gêneros” (COSTA, 2015, p. 43). Para ambos os autores, a ideia de performance encerra um “duplo movimento”, que inclui repetição e inovação, mas, para tanto, é necessário que haja intencionalidade. A partir de Butler, a discussão de performance e gênero traz à tona a ideia de performatividade, como insurgência de condutas inovadoras (sobretudo no que se refere a gênero, em sua discussão) em relação às condutas tidas como cultural e socialmente impostas, “sedimentadas ao longo do tempo, e que gerariam um conjunto de estilos corporais que aparecem como uma organização natural” (COSTA, 2015, p. 45). As inovações nessas condutas, portanto, viriam a constituir uma desestabilização nessa naturalização do que é social e culturalmente imposto, logo, normativo.
Dessa forma, o casamento de Filipe e Marcelo fez-se compreender como performance, tanto em sentido amplo como o de Schechner, a partir do momento que, como um ritual, em parte repete, em parte inova, e cumpre, inclusive algumas das funções (sempre são possíveis várias concomitantemente) que o autor reconhece como sendo da performance, a exemplo de entreter, fazer alguma coisa bela, fazer ou estimular uma comunidade, lidar com o sagrado e o demoníaco. Mas também, assumiu o caráter de performática ou, mais propriamente, performativa, ao afirmar outros entendimentos de gênero, modos de viver e de existir, através das inovações no ritual do casamento tal como ele é mais comumente vivenciado no contexto ocidental e heteronormativo.
Além desses sentidos, o acontecimento também se reinventou por uma relação também performativa entre um ritual (ou performance) da “vida real”, por assim dizer, e a performance agora entendida em sentido bem mais específico, a performance com finalidade artística. Tratou-se, portanto, de um ritual para celebrar um acontecimento, uma união, pertencente ao regime do real, mas, nesse caso, contaminando-se bastante pelas possibilidades criativas da poesia, da dança, do teatro, da performance.
A suspensão proporcionada pelo casório, a que me referi no início, tem a ver como ele estabelece propositadamente uma relação tênue entre vida e arte (outra característica da performance), mas exatamente no sentido inverso ao que tem motivado ações intolerantes e ignorantes, sobretudo partindo do Movimento Brasil Livre (MBL), contra performances ou exposições artísticas recém propostas no país e em cartaz em instituições culturais, a exemplo da exposição Queermuseu – cartografias da diferença na arte da brasileira, com curadoria de Gaudêncio Fidelis e em cartaz no Santander de Porto Alegre, e que tinha como tema a diversidade sexual, o universo queer, e as questões LGBTQI, tendo sida interrompida com um mês de antecedência devido aos protestos.
Outro exemplo foi a performance La Bête, do artista Wagner Schwartz, apresentada no último dia 26 de setembro na 35ª mostra Panorama de Arte Brasileira. Neste caso, a motivação dos incômodos foram apenas o nu e a circunstancial interação de uma criança com a obra (e não o contrário, tendo em vista a condição passiva do corpo do performer em cena). O caso levou a uma polêmica sem fim e ainda em curso, que envolve o questionamento sobre a “idoneidade” do artista, da instituição e da mãe da criança (que a acompanhava), devido à permissão para que a criança presenciasse e participasse, interagindo com o artista em cena (tocando, por exemplo em seu tornozelo. Oh!).
Os dois casos, entre outros, que foram inclusive discutidos no Dossiê Cena e Censura deste site, têm nos espantado por serem motivados pela e multiplicadores da onda fundamentalista, fascista e reacionária que assola nosso país em vários âmbitos e iniciativas, a exemplo do projeto de lei Escola Sem Partido e da autorização de Juiz do Distrito Federal para psicólogos (caso o queiram) oferecerem a terapia de reversão sexual ou a cura gay (!!!), entre outras absurdezas e coisas esdrúxulas, sobretudo, aos nossos olhos de séculos XXI.
Mas ambos chamaram atenção, ainda, por indicarem a completa ignorância de uma boa parte da população conservadora brasileira sobre como a arte se pensa em relação à realidade, como outro mundo possível, como alternativa, etc.. Para um grupo da sociedade, esses possíveis outros mundos não interessam mesmo e, a partir disso, rejeitam qualquer dissenso ou debate que a arte propõe; já para outros grupos, esses outros mundos são invisíveis, pois, pela mesma ignorância, atribuem um sentido único, por exemplo, à nudez cênica, às interações entre público e cena nua (como se uma criança, por exemplo, não tivesse a capacidade de discernir as situações de real risco dessas em que “Ver e tocar as coisas não são, no final das contas, senão maneiras de pensá-las” (Adão no Paraíso, José Ortega y Gasset).
Frente a esses episódios, o casamento de Filipe e Marcelo propõe uma inversão importante. Nos episódios reportados aqui, a arte performática, como de resto a arte de modo geral, não é acessada de forma justa, uma vez que as lentes reacionárias só a vêem por um ângulo do cotidiano, a partir do qual, impõem sua posição conservadora no real ao sistema simbólico e aberto da arte. No casamento em questão, ao contrário, um ritual do cotidiano é performativo enquanto tal, pois alarga os paradigmas do que se entende por esse ritual e, para tanto, vale-se, justamente, das possibilidades de dialogar com o sistema simbólico da arte.
Ou seja, talvez possamos resumir assim: no primeiro caso, o olhar cotidiano conservador é a lente para olhar para o ato artístico e desejar normatizá-lo, ou mesmo interditá-lo; no segundo caso, o olhar poético da arte contamina o ato cotidiano, a fim de performatizá-lo. Isto também nos possibilita dizer, ainda à luz de Butler, que este casamento, bem como outras práticas que se ressignifiquem como experiência, produziu agência, ou seja, potência, capacidade de agir justamente frente a uma “ordem social hegemônica” (FURLIN, 2014, p. 397). Segundo Butler, o motor da agência é o desejo, como a “força inovadora e impulsora de mudança”, possibilitando a consciência reflexiva, que leva o sujeito a agir a partir precisamente do que está posto como norma, a fim de “produzir algo novo” (FURLIN, 2014, p. 398).
Mas vejamos por que isto acontece, de fato, no casamento em questão. Desde o lugar escolhido, o Tropicasa (na engajada Boa Vista), e da convocatória, os noivos situam sua decisão de casar como parte e/ou continuidade da luta da comunidade LGBTQI:
“Então, antes que venha mais um golpe, vamos exercer nosso direito e oficializar união no civil, também como uma forma de resistência, depois de 3 anos e meio dividindo a mesma cama na lendária Rua Cuba”
Além disso, a convocatória brinca com códigos do casamento tradicional, tais como a lista de presentes, que pode ser relativizada, caso algum convidado “prefira” (entendendo a condição não milionária dxs amigues): “É obrigatório dar presente da Jurandir? CLARO QUE NÃO! Pode levar livros usados, objetos decorativos medievais, itens de Sex Shop ou qualquer outra coisa que vocês acham que a gente vai curtir? PODE! Amamos invenção!”.
E ainda as dicas de “Dress Code (ou “traje” pra quem não for bicha)”:
“Muita gente perguntando sobre o dresscode: mores, pensem em ARCO-ÍRIS TROPICAL como tema. Nossa sugestão são roupas mais leves, pois não há ar condicionado (o Tropicasa tem um janelão de ponta a outra do salão e ventiladores). Não precisa ser formal, mas se quiser ir de vestidão, saltão e cabelão, venha por favor! E se vier de cisne e botar um ovo no meio da pista de dança vai a ser rainha do Fashion Police!!!”
São inúmeros motivos, que, reunidos e resultantes na cerimônia que pude presenciar, me fizeram, nela, “chorar como uma garotinha”, e aos mais emotivos do que eu, como a “padrinha” Elis Costa, igual a um bebê com cólica (aqui me permitam esse tom de coluna social). A emoção é, sem dissociação, gerada por entender, e ao mesmo tempo sentir, como esse casamento-performance indica que seu próprio ritual se construiu já como um projeto que é fruto de uma união, e não para atender a convenções sociais, apesar de dialogar e negociar com estas, sendo justamente por isso agência. Os noivos estão unidos e engajados, juntamente a outros amigos participantes da cerimônia performática que sela a união dos dois, para produzir, após (pasmem!) vários ensaios e um processo de fato criativo, o que vimos acontecer.
Após um “atraso” (será, ou parte da proposição performática?) de duas horas, ao som do já performativo Like a Virgin / Hollywood / Work It (Madonna, Britney Spears, Christina Aguilera e Missy Elliot) – Live from the VMAs (2003), chegam os dois noivos, que performam uma subida “desencontrada” por poucos segundos. Ambos em figurinos que, frente ao regime normativo desse ritual numa sociedade heteronormativa, já inscreviam sua performatividade e dialogavam entre si, num projeto comum, igualitário. Filipe Marcena, em camisa de renda azul piscina e bermuda verde água, grinalda, maquiagem, unhas pintadas e bouquet, foi o primeiro a subir a escadaria do Tropicasa, não acompanhado e nem ao ritmo etéreo das noivas tradicionais, mas sozinho, decidido, e em passos firmes e “lacrativos”.
Casamento de Filipe & Marcelo (Entrada) from Filipe Marcena on Vimeo.
Parecia ali experimentar e dar a ver a certeza que, antes, no rito judicial transmitida a partir do Fórum, aparecia também no “sim, sim, sim, com certeza” de Marcelo Sena, após a pergunta se ele desejava “contrair matrimônio” (de onde a sociedade tirou verbo mais infeliz para um momento tão feliz?). Também com unhas pintadas, maquiagem, grinaldas, bouquet e blusa em renda (porém rosa escuro) e bermuda lilás, pouco depois, sobe Marcelo Sena, com ares performáticos de míope, procurando algo (o outro noivo, o palco, alguém no público, ou a felicidade, que encontra logo ali e em seguida?).
Ambos encontram-se no palco colocado à nossa frente no salão do Tropicasa, onde normalmente ficam as atrações artísticas, seja ela a roda de samba ou o DJ. Em seguida, entram em cena Kiran Gorki e Edson Vogue, que performam (agora aqui bem no sentido de transformar mesmo) figuras próximas ao que seriam o “padre” e o “coroinha”, respectivamente. Onde o Padre é o Poder (Vide P de Poder, Abecedário de Deleuze), a figura performática, assombrosa, emocionada e sábia na figura de Kiran, é Potência. Onde o Coroinha é Submissão, a presença deslumbrante, dominadora de cada músculo e olhar, de Vogue, é Empoderamento. E foram, justamente, potência e empoderamento, além de sempre bastante humor, os ingredientes que constituíram o ato de fala deste ritual mais coreográfico do que falado (embora tenha havido os juramentos, também performativos, dos noivos, para o casamento e um para o outro).
“Music stations always play the same songs
We’re bored with the concept of right and wrong”
(Fim de Like a Virgin / Hollywood / Work It (Madonna, Britney Spears, Christina Aguilera e Missy Elliot) – Live from the VMAs 2003)
Outro aspecto que fez tremer de emoção, ainda movido pelos ingredientes da potência e do empoderamento, foi a presença inesquecível das mães dos noivos, Ana Maria Apolinário (mãe de Filipe) e Tereza Sena (mãe de Marcelo), e suas diretas participações no ritual, com a “benção” a esta união, ao juntarem as areias que trouxeram das praias baiana e pernambucana, para misturá-las em um único vaso e simbolizar um vínculo que é, antes, uma mistura de chãos e projetos comuns, do que qualquer tipo de aprisionamento. Destaca-se, ainda, como os próprios noivos realçam, em seu texto posterior de agradecimento, o “apoio incondicional” das famílias Apolinário, Sena e Oliveira.
Em meio a esse ambiente familiar nem sempre comum, à performatividade do ritual, do beijo, juramentos, valsa, e até dos docinhos, a exemplo dos de canela e os de sabor biscoito Oreo, esse acontecimento nos envolveu, a mim e a todos os amigos queridos e divertidos que tiveram a chance de participar, numa espécie de atmosfera heterotópica, como diria Michel Foucault acerca de espaços que, de alguma forma, suspendem a realidade, a exemplo dos jardins (entre outros espaços, nem tão paradisíacos assim).
No entanto, no tempo-espaço que estamos vivendo, mais do que uma heterotopia, a suspensão proposta foi um fazer-dizer (SETENTA, 2008) performativo, cujo ato de fala é a defesa de outros mundos possíveis, nos quais as pessoas possam escolher como ser felizes, no formato, nas cores, na dimensão, no sabor, e, sobretudo, em que tipos de projetos, relações e projeções para o futuro.
Por fim, vale notar que os bouquets literais, de cores alegres e material cênico, foram para Kiran (como um igual que celebra a união de seus iguais) e para Carlos Ferrera (olha aí, #Ficaadica para os pretendentes). Porém, com esse casamento performativo, um bouquet simbólico foi jogado para todxs nós, para que, ao agarrá-lo, saibamos viver e cultivar modos de vida mais potentes, libertadores e verdadeiros com o que nosso corpo deseja e pode.
Um brinde a cada dia a essa união e aos significados de seus muitos gestos generosos!
Para quem tiver interesse de conferir, seguem referências:
COSTA, Iracy Rúbia Vaz da. Interseções performáticas: o conceito de performance em Butler e Schechner. In: CARMARGO, Giselle Guilhon Antunes (org.). Antropologia da dança III – pesquisas do Ciranda – Círculo Antropológico em Dança. Florianópolis: Insular, 2015.
FURLIN, Neiva. Sujeito e agência no pensamento de Judith Butler: contribuições para a teoria social. In: Sociedade e Cultura., Goiânia, v. 16, n. 2, p.395-403. Jul./dez.2013.
SCHECHNER, Richard. O que é performance? In: Revista O Percevejo. Rio de Janeiro: UniRio, 2003.
SETENTA, Jussara Sobreira. O fazer-dizer do corpo: dança e performatividade. Salvador: Edufba, 2008.